A investigação do Ministério Público à gestão de Rui Rio durante o tempo em que foi líder do PSD pode ser esvaziada ainda antes de produzir qualquer resultado. Basta que os socialistas, que já anunciaram disponibilidade para clarificar a lei das subvenções partidárias neste ponto concreto, encontrem no Parlamento, com o previsível apoio do PSD, uma solução jurídica que elimine as “zonas cinzentas” e retire bases às suspeitas da prática dos crimes de abuso de poder e peculato.

É essa a convicção unânime dos especialistas em Direito Penal ouvidos pelo Observador: se o quadro jurídico for alterado no sentido de dizer que os factos imputados ao PSD não constituem crime, qualquer caso contra Rui Rio e contra o PSD será avaliado à luz de um quadro jurídico mais benigno.

Logo, se a lei for alterada, como o PS já admitiu fazer, com o o PSD disposto a estudar essa mudança e com o próprio Presidente da República sugeriu que ela se fizesse, o caso contra Rui Rio e demais antigos dirigentes do PSD cairá por terra. É um princípio importante do Direito Penal, até do Direito Constitucional, que se cumpra a aplicação retroativa do regime penal mais favorável em qualquer caso.

A possibilidade de PS e PSD encontrarem uma solução no Parlamento para anularem de vez a questão já foi antecipada por André Ventura, que aproveitou a audiência com Marcelo Rebelo de Sousa, na segunda-feira, para antecipar a existência de um alegado “conluio entre os dois grandes partidos para calar ou condicionar a justiça”. O tema será levado por Augusto Santos Silva à conferência de líderes esta quarta-feira e é muito provável que daí venham a surgir sinais sobre a discussão da atual lei das subvenções.

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O caminho para se chegar a uma solução que acomode as preocupações dos partidos é que diverge. “A questão poderá ser dirimida através de uma uma lei interpretativa, que o Ministério Público e os tribunais terão de acatar”, admite Paulo Sá e Cunha, penalista e membro da Abreu Advogados. Paulo Saragoça da Matta, também especialista em Direito Penal e sócio da DLA Piper ABBC, sugere uma outra hipótese. “O que poderá haver é uma clarificação da lei das subvenções, que seria vista como só valendo para o futuro. [Ora], dependendo de como for escrito o preâmbulo do diploma, ele pode ser elemento interpretativo da norma anterior vigente”, argumenta.

Igualmente ouvido pelo Observador, Rogério Alves propõe uma hipótese mais definitiva, sugerindo que o recurso ao elemento interpretativo é um “demasiado complexo”, uma vez que a “margem de subjetividade é muito grande”. Em alternativa, e apenas num plano meramente teórico, o antigo bastonário da Ordem dos Advogados sugere que os deputados poderiam optar pelo “cenário mais radical” e fazer aprovar uma lei que desse aos partidos a hipótese de alocarem as verbas atribuídas pela Assembleia da República para um leque muito mais alargado de situações.

“Acabar-se-ia a distinção entre o que é partido e grupo parlamentar e, acabando essa distinção, a conduta que constitui [o crime] de peculato atribuído a Rui Rio e ao PSD teria sido descriminalizada. Não seria bem uma alteração da lei penal; seria a alteração de uma regra de distribuição de dinheiro. Os partidos utilizariam o dinheiro da subvenção parlamentar como quisessem e o crime morria”, teoriza.

Os três especialistas ouvidos pelo Observador convergem num ponto: a partir do momento em que vários dirigentes de outros partidos, no passado e no presente, assumiram fazer o mesmo que o PSD, o Ministério da Público tem a obrigação de alargar a investigação uma vez que o peculato, por exemplo, é um crime público.

“Sendo o crime público, o Ministério Público deve oficiosamente instaurar as ações penais sempre que adquira a notícia da prática de crimes ou indícios da sua prática”, explica Paulo Sá e Cunha. “Ou o Ministério Público vai investigar tudo, ou se altera a lei e se descriminaliza aquela conduta. Que é o que me parece mais sensato. Caso contrário seria um flop total”, sintetiza Rogério Alves.

Uma lei, muitas interpretações

A lei do Financiamento dos Partidos Políticos e das Campanhas Eleitorais foi aprovada em 2000 e já foi alvo de alterações por oito vezes em 20 anos. É esse mesmo diploma que enquadra as subvenções públicas (eleitorais, partidárias e parlamentares) entregues aos partidos e que se presta às mais variadas interpretações.

Se as primeiras se esgotam durante os períodos de campanha, as outras duas não. No caso das subvenções para financiamento partidário, cada força tem direito a receber uma “quantia equivalente à fração 1/35 do valor do IAS, por cada voto obtido na mais recente eleição de deputados à Assembleia da República”, a que se retira uma fatia de 10%, um corte aprovado ainda no tempo da troika.

Já as subvenções parlamentares são entregues a cada grupo, ao deputado único representante de um partido e ao deputado não inscrito em grupo parlamentar da Assembleia da República. São atribuídas, anualmente, para “encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em que participem e para outras despesas de funcionamento, correspondente a quatro vezes o IAS anual, mais metade do valor do mesmo, por deputado, a ser paga mensalmente”.

Ora, é precisamente a referência dupla a “atividade política e partidária” que motiva grande parte do debate entre os que defendem que a lei permite ao PSD fazer aquilo que fez — usar estas verbas para pagar a elementos do staff que faziam trabalho exclusivamente (ou quase) para o partido, (quase) sempre fora do Parlamento porque os universos são inseparáveis; e os que entendem que a intenção do legislador foi sempre separar a água entre o que é trabalho parlamentar e trabalho partidário.

É precisamente essa a suspeita do Ministério Público, que tem indícios de “utilização de fundos de natureza pública, em contexto político-partidário, existindo suspeitas da eventual prática de crimes de peculato e abuso de poderes (crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos)”.

Rui Rio e outras figuras políticas, dos mais variados quadrantes, discordam desta interpretação, ainda que outros líderes partidários (André Ventura, Rui Rocha ou Paulo Raimundo, por exemplo) tenham vindo dizer que a lei é bastante clara. No caso dos líderes do Chega e da IL, ambos consideram que a lei não permite a situação que levou às buscas. Já o líder do PCP considera igualmente que a lei é clara a permitir a situação que o PSD praticava e que outros partidos praticam. Apesar de não ter comentado diretamente o caso, Marcelo Rebelo de Sousa explicou publicamente a complexidade da lei.

“A legislação de financiamento, foi mudada em 2010 e desde então prevê que os deputados recebam uma subvenção para vários fins. E, na última versão de 2015, diz que é atribuído a cada grupo parlamentar um montante para encargos de assessorias aos deputados e para atividade política e partidária. Fica uma zona cinzenta, e aí entra possibilidade de entrar as despesas da atividade de assessoria. Não é muito fácil definir as fronteiras, entre o grupo parlamentar como órgão do partido ou como órgão do parlamento. Deve-se clarificar o que pode ser ou não pode ser”, sugeriu o Presidente da República.