Existe a ideia generalizada de que o futebol é o desporto mais democrático que existe. Basta pegar num conjunto de folhas de papel enroladas, envolvê-las com fita-cola e rematar contra uma parede, sem que seja preciso ter uma rede, uma raquete, um cesto ou qualquer outro adereço adicional. Para jogar futebol, basta uma bola e uma parede. E é esse caráter democrático que faz com que as crianças mais desfavorecidas de hoje se tornem as estrelas mais aplaudidas de amanhã.

Esta quinta-feira, contra o Vietname, Portugal marcou o primeiro golo de sempre num Campeonato do Mundo feminino — e dificilmente teria existido uma marcadora que encarnasse melhor esse caráter democrático do futebol. Natural do problemático Bairro das Malvinas, no município madeirense de Câmara de Lobos, Telma Encarnação respondeu da melhor maneira ao cruzamento de Lúcia Alves e abriu a porta à primeira vitória portuguesa num Mundial.

“O sonho mais importante era a vitória, pôr Portugal mais à frente e fazer mais história. Isso é um dos maiores objetivos. Este é o golo mais importante da minha carreira, por ser o primeiro de Portugal num Mundial. É um orgulho enorme e acho que para Portugal inteiro também. Só pensei em rematar à baliza. Foi o meu foco. Assim que a Lúcia cruzou, rematei. Não tenho palavras para descrever este momento, ainda nem tive tempo para ver o telemóvel. Quero falar com a minha família, devem estar orgulhosos. Estou muito feliz e as palavras não me saem neste momento”, disse a avançada, que também fez a assistência para o golo de Kika Nazareth e foi eleita a melhor jogadora em campo, à RTP.

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Telma tem apenas 21 anos e começou a jogar no Xavelhas, um pequeno clube da terra. Antes, porém, já tinha seguido as pisadas do pai Alfredo ao jogar na rua — muitas vezes descalça, no alcatrão, não só para poupar os sapatos como para ter ainda mais agilidade. Fazia as bolas na escola, com as tais folhas de papel enroladas e envoltas em fita-cola, e ia para casa já a dar toques. O foco sempre foi o mesmo: o golo.

“O meu crer é o golo. A força que tenho é saber que precisamos de um golo, queremos ganhar e eu posso marcar. A minha vontade de querer rematar está na vontade de ganhar. A força que tenho, a vontade que tenho, é o golo”, explicou a jogadora, que tem naturalmente Cristiano Ronaldo como ídolo, numa entrevista ao Canal 11. As boas prestações e o nome que foi conquistando em Câmara de Lobos levaram-na a saltar para o Marítimo, com apenas 14 anos. Quando começou a receber dinheiro para jogar, dispensou o salário e preferiu que o dinheiro fosse traduzido em compras de supermercado, para ajudar os pais.

Já no Marítimo, começou a ser chamada para as camadas jovens da Seleção Nacional, tornando-se uma presença assídua nas convocatórias e marcando 39 golos em 37 internacionalizações. Estreou-se pela Seleção A em abril de 2021, contra a Rússia, e leva agora 25 internacionalizações e seis golos marcados, tendo marcado presença no Campeonato da Europa do ano passado.

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Normalmente convocada como uma espécie de wildcard que pode entrar a qualquer momento para mexer com o jogo, Telma Encarnação tem vindo a provar cada vez mais que pode disputar a titularidade na frente de ataque portuguesa. Foi dos melhores elementos da Seleção contra os Países Baixos, tendo protagonizado a única oportunidade portuguesa pouco depois de entrar, e tornou-se crucial contra o Vietname, com um golo e uma assistência.

“Tenho de treinar muito e dar o meu máximo, é daí que vem a titularidade”, atirou depois do jogo, sem esconder que a entrada no onze inicial de Francisco Neto é um claro objetivo. Figura central de um Marítimo que ficou no 11.º lugar (e penúltimo) da Liga BPI na temporada passada, marcou 96 (!) golos no principal escalão feminino nas últimas cinco épocas e deverá estar prestes a dar o salto para um dos principais clubes portugueses. Não é segredo para ninguém que já teve várias oportunidades, mas ainda não quis deixar a Madeira e a família — terá de ser no “momento certo”.

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“Não é medo… É o deixar a família. Tenho de ir devagarinho e esperar por um momento mais certo, agarrar a oportunidade mais a sério. É disso que estou à espera. Do momento certo, do dia certo, da hora certa. Ver que aquele é o momento certo para ir embora”, explicava a avançada, há cerca de dois anos, ao Canal 11.

Independentemente dos momentos, dos dias ou das horas, algo é mesmo certo: esta quinta-feira, na Nova Zelândia e contra o Vietname, Telma Encarnação fez o que já fazia no alcatrão de Câmara de Lobos. Marcou um golo. Desta vez, porém, esse golo tornou-se num dos mais importantes da história do futebol feminino português.