D o outro lado oceano chegavam cartas com histórias de sucesso. Relatos de quem conseguia contratos de trabalho, negócios garantidos, promessas de uma vida nova. Embora olhados de soslaio pelos locais – que tinham conquistado a independência alguns anos antes, em 1825 –, milhares de portugueses sonhavam emigrar para o Brasil. Afortunados ou despojados, homens, mulheres e crianças, antes da partida de barco todos eles passavam na rua do Loureiro, onde ficava uma pequena loja que lhes carimbava o sonho a troco de alguns contos de rei: um passaporte.

Bernardo Luís Vieira de Abreu era um “brasileiro de torna-viagem”, como eram chamados os portugueses emigrados no Brasil que regressavam à pátria. Algumas experiências de negócio na Bahia deram-lhe o impulso para seguir em Portugal. Foi assim que, em 1840, fundou a mais antiga agência de viagens do mundo, que permaneceria nas mãos da mesma família até hoje. À Agência Abreu – que começou por um negócio de burocracia e papeladas de viagem – estariam reservados momentos históricos: foi pelas mãos desta família que muitos refugiados fugiram às invasões da Primeira Guerra Mundial e, depois, à expansão da Alemanha nazi, numa altura em que a agência publicava anúncios em alemão e inglês na imprensa estrangeira.

“Havia sobretudo emigrantes para o Brasil, que precisavam de documentação para viajar, o que não era fácil de conseguir. Chegavam de sacola às costas, com um cajado e nada mais”, recorda um antigo colaborador, contratado nos anos 70 e que seguindo a tradição da empresa prefere não se identificar. “Respondi a um anúncio publicado no Comércio do Porto. Sem mencionar o nome da empresa, dizia assim: ‘cerca de 27 anos, boa apresentação, serviço militar cumprido, cultura geral’. No dia 8 de outubro de 1970 – sei a data porque dias depois fiz 25 anos – foi-me oferecida a possibilidade de fazer uma viagem pela Europa, dali a três semanas, durante 34 dias, com tudo pago. Foi o meu primeiro trabalho: guia correio.” Ou seja, a pessoa que levava toda a documentação, reservas de hotéis e restaurantes. Era tudo em papel.

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A memória deste colaborador – a palavra funcionário ou empregado não fazia parte da política da empresa – é quase um louvor ao homem que fundou a Agência Abreu, situada num local estratégico do Porto, perto do Governo Civil, por onde passavam viajantes, refugiados e despachantes oficiais. “Comprou uma janela a uma vizinha e abriu o estabelecimento, sobretudo para tratar de passaportes e papeladas de viagem. Nessa época, havia uma forte emigração para o Brasil”, lembra o também coordenador do arquivo histórico da Abreu. Longe de ser uma agência de viagens como hoje as conhecemos, a empresa só passaria às famosas excursões na quarta geração da família.

Após 57 anos na rua do Loureiro, a agência abria portas na avenida dos Aliados para organizar viagens turísticas. O alvará que legalizava o negócio chegou a 11 de maio de 1938. Um balcão em forma de ‘U’ recebia os clientes à entrada. Os primeiros três funcionários tratavam dos passaportes, os outros das viagens de comboio e barco, e os últimos ocupavam-se dos turistas. Os contratos com as empresas de caminhos de ferro francesas e britânicas eram um argumento de confiança para os clientes.

“A aviação e os autocarros vieram mais tarde”, recorda a mesma fonte, lembrando as suas primeiras viagens, em autocarros alugados de 44 lugares.

“Levávamos pesetas, marcos, liras e dólares, e pagávamos tudo em dinheiro: o combustível, autoestradas, almoços, jantares, dormidas. A pasta do dinheiro era uma pequena mala, a que na altura chamávamos ‘a famosa 007’”, conta. De Lisboa partiam autocarros com diferentes itinerários e destinos: Madrid, Barcelona, Londres, Paris, Milão, Berlim e muitos mais. Numa certa viagem chegaram a estar concentrados em Paris 40 autocarros ao serviço da Agência Abreu, cada uma com o seu guia turístico previamente contratado pelos serviços em Portugal. As excursões mais concorridas duravam 36 dias na Europa. Antes da partida, os turistas tinham oportunidade de visitar Lisboa, Sintra e Cascais, para depois atravessarem a fronteira em Badajoz.

“Logo no primeiro dia chegávamos a Madrid.” Com as malas carregadas no tejadilho, os autocarros tornaram-se tão famosos nas estradas como as brochuras que vendiam as férias de sonho em quase todo o país. Muitas eram desenhadas e assinadas pelos melhores artistas plásticos e pintores da época, como Nuno Barreto e Júlio Resende. Augusto Abreu, da quarta geração da família, era um respeitado mecenas e um dos maiores colecionadores nacionais. Conheceu Picasso e Dalí, chegou a ter pelo menos um Picasso e um Monet, e na década de 1960 vendeu duas mil obras a outro colecionador, Jorge de Brito. Na primeira exposição de Júlio Resende, deixou a vernissage acabar e comprou-lhe todas as peças. Também por isso, uma vez recebeu um quadro das mãos do pintor de Gondomar, que escreveu no verso: “Augusto Abreu sempre me acompanhou na minha trajetória na pintura. Vinha aos domingos de manhã e deixava uma marca com sabor a profecia.”

Com as famosas brochuras distribuídas em toda a parte – à porta das igrejas, estações de comboio e portos de mar –, o fim da Segunda Guerra Mundial, o aparecimento da tap e a vontade de os portugueses conhecerem a nova Europa deram uma enorme força ao negócio. E se hoje a família Abreu tem 73 lojas em Portugal, em tempos chegou às 145 e ao milhar e meio de colaboradores a nível global. Poucas serão as empresas tão antigas que se mantiveram nas mãos da mesma família. Para o atual diretor-geral, há cinco anos na empresa, Pedro Quintela, os quase 180 anos do negócio respiram juventude: “A história mostra como estivemos sempre a reinventar-nos. E isso ainda hoje permanece. Espírito jovem.”

Este artigo foi originalmente publicado em julho de 2022, na revista Observador Lifestyle n.º16.