Depois de ter massacrado “Um Crime no Expresso do Oriente” e esquartejado “Morte no Nilo”, Kenneth Branagh regressa à pele de Hercule Poirot para o “desconstruir” mais uma vez, e ao mundo de Agatha Christie para o continuar a descaracterizar, e a desfazer tudo o que ela fez bem. Desta vez, em “Mistério em Veneza”, que transporta para o sereníssimo pós-II Guerra Mundial a intriga do livro A Festa das Bruxas, ambientado numa sumptuosa casa situada na Inglaterra rural, e de cujo enredo Branagh e o argumentista Michael Green conservaram apenas o passar-se durante o Halloween, ou Dia das Bruxas. Do resto, nada ficou.

[Veja o “trailer” de “Mistério em Veneza”:]

Poirot está reformado (!) e vive em Veneza, onde recebe a visita da sua amiga Ariadne Oliver, que agora é americana (!!) e já não inglesa, e é responsável por tornar Poirot famoso (!!!), ao tê-lo transformado no herói de um dos seus livros policiais. Oliver é interpretada desenxabidamente por Tina Fey, e não podia estar mais distante da personagem excêntrica e despassarada vivida pela magnífica Zoë Wanamaker na série dos “Poirot” com o inigualável David Suchet. Ela vem convidar Poirot para uma festa de Dia das Bruxas, seguida de uma sessão espírita, no tumular e decadente “palazzo” de uma famosa cantora de ópera cuja filha se suicidou após o noivo ter rompido com ela, atirando-se de uma varanda para o canal.

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[Veja o elenco falar sobre o filme:]

Após a médium ser assassinada e ninguém poder sair da casa por causa da tempestade que se abateu sobre Veneza, que também cortou as comunicações, Poirot fecha-se lá com os convidados, para que o assassino não saia, e volta à atividade. Tal como Kenneth Branagh o personifica, este Poirot não tem nada a ver com a genial e imortal criação de Agatha Christie. Não passa de Branagh com uma bigodaça ridícula colada nas beiças, um sotaque comicamente pythoniano e um físico oposto ao do atarracado e redondinho Poirot. Também ao contrário deste, um fervoroso católico, o Poirot de Branagh é agora um ateu amargo. E o seu impenitente racionalismo e a sua crença nos poderes do cérebro humano (as célebres “celulazinhas cinzentas”) cedem, em “Mistério em Veneza”, e de maneira totalmente inverosímil, porque contrária à natureza e ao carácter da personagem, às tentações do irracional e ao temor do sobrenatural.

[Veja uma cena do filme:]

Além de ser um aglomerado de disparates e absurdos que desvirtuam de forma descarada, grotesca e deplorável, o espírito e a letra do universo policial de AgathaChristie, e que transforma HerculePoirot num “travesti” risível da personagem original, “Mistério em Veneza” é também um filme com uma história arrevesada, personagens sem relevo (a criancinha precoce é especialmente irritante, tal como os irmãos “étnicos”) e um assassino cuja identidade adivinhamos ao fim de pouco tempo. Para instalar uma atmosfera de história de fantasmas “gótica”, Kenneth Branagh usa e abusa da grande angular, da profundidade de campo e dos pontos de vista esdruxúlos. Dizer que parece Ken Russell a fazer um filme de terror para a Hammer nos anos 70, é insultar quer Russell, que esta produtora de clássicos do género.

[Já saiu o último episódio da série em podcast “Um Espião no Kremlin”, a história escondida de como Putin montou uma teia de poder e guerra que pode escutar aqui. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo episódio aqui, o terceiro episódio aqui, o quarto episódio aqui e o quinto aqui ]

Nalguns planos, Branagh tem mesmo o descoco de pretender “citar” Orson Welles, mas só consegue mostrar que é impossível a um realizador cabotino camuflar o seu cabotinismo com pretensas referências e pseudo-“homenagens” cinéfilas. Por onde quer que se olhe para ela, “Mistérios em Veneza” é uma fita retorcida e intragável, em que KennethBranagh insiste no aviltamento da personagem de HerculePoirot e na desconsideração de AgathaChristie. E já que nela se fala tanto em fantasmas, só podemos desejar que o espectro da escritora venha assombrar toda esta gente associada a tão ruim produto cinematográfico.