O Prémio Nobel da Medicina 2023 foi atribuído a Katalin Karikó e Drew Weissman pelas descobertas que permitiram o desenvolvimento de vacinas de mRNA eficazes contra a Covid-19. O anúncio foi feito esta segunda-feira, pelas 10h45 (hora de Lisboa).

É uma atribuição de um prémio que é mais do que justa. Aliás, era antecipada, na medida em que todos reconhecem que sem esse trabalho pioneiro não teríamos chegado onde chegámos”, diz Miguel Prudêncio, investigador do Instituto de Medicina Molecular, à rádio Observador.

Katalin Karikó, no entanto, pensou que estavam a gozar quando lhe disseram que tinha sido laureada com o Nobel da Medicina. Ao telefone, a cientista contou ao representante do Nobel, Adam Smith, que há 10 anos tinha sido despedida da Universidade da Pensilvânia — o local onde fez as descobertas que agora lhe valeram o Nobel — e foi obrigada a reformar-se.

Foi então que se mudou para Alemanha e se tornou vice-presidente da BioNTech, a empresa biotecnológica que em parceria com a farmacêutica Pfizer produziu uma das vacinas de mRNA contra a Covid-19 — cargo que manteve de 2013 a 2022. Atualmente, a investigadora de 68 anos é consultora externa da BioNTech. Karikó é professora na Universidade de Szeged, na Hungria, e professora na Faculdade de Medicina Perelman na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. É a décima segunda mulher a receber um Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina — e a primeira desde 2015.

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Katalin Karikó contou ainda a Adam Smith que a mãe — falecida em 2018 — sempre acreditou que a filha ganharia um Prémio Nobel. Todos os anos, em outubro, ouvia o anúncio na esperança de poder ouvir o nome da sua filha.

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Karikó vai partilhar o prémio de 11 milhões de coroas suecas (cerca de 950 mil euros) com Drew Weissman, de 64 anos, com quem trabalhou na Universidade da Pensilvânia nas descobertas que agora lhes valeram o Nobel da Medicina. Weissman é diretor do Instituto Penn para as Inovações com RNA e diretor da Investigação em Vacinas na Universidade da Pensilvânia.

A Assembleia do Nobel no Instituto Karolinska (Suécia) atribui assim o prémio, de acordo com a vontade de Alfred Nobel, a quem “teve a mais importante descoberta dentro das áreas da Fisiologia ou Medicina”. Sendo indiscutível a importância que as vacinas contra a Covid-19, em particular as vacinas baseadas em mRNA, tiveram no controlo da pandemia e na prevenção da morte e doença grave.

“[Foi] um trabalho absolutamente fundamental para tudo o que veio a seguir, no domínio da utilização do mRNA como terapêutica e como vacina”, diz Miguel Prudêncio, investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM), à rádio Observador. “Sem o trabalho de Katalin Karikó e Drew Weissman não teria sido possível desenvolver estas vacinas que vieram mudar a face da pandemia como todos, hoje, sabemos.”

O investigador do IMM admite que a pandemia de Covid-19 pode ter acelerado o reconhecimento dado aos dois investigadores, mas considera também que “mais tarde ou mais cedo, o trabalho de Katalin Karikó e Drew Weissman iria traduzir-se em aplicações terapêuticas importantes” e, consequentemente, num Prémio Nobel. Aliás, a tecnologia está a ser explorada para desenvolver vacinas contra outros vírus e tratamentos contra o cancro, por exemplo.

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A dupla Weissman-Karikó tinha sido também distinguida com o Prémio Bial de Biomedicina 2021 pelo ensaio pré-clínico de uma vacina contra o vírus zika baseada na tecnologia genética de mRNA. Os dois investigadores, os dois fundadores da BioNTech — o casal Ugur Sahin e Ozlem Tureci —, e ainda o biólogo canadiano Derrick Rossi, a vacinologista britânica Sarah Gilbert e o bioquímico americano Philip Felgner, receberam o Prémio Princesa das Astúrias para a Investigação Científica e Técnica 2021.

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Nos anos 1990, Katalin Karikó estava convencida de que o ARN mensageiro (mRNA) seria um importante agente terapêutico, mas a potencial utilização destas moléculas enfrentava ainda muitas dificuldades técnicas, o que tornava difícil conseguir financiamento. Até que começou a trabalhar com o imunologista Drew Weissman —interessado em células dendríticas, que têm funções importantes na vigilância imunológica e na ativação de respostas imunes induzidas por vacinas —, refere o comunicado de imprensa do Nobel. Ambos focaram-se na interação de várias moléculas de mRNA com o sistema imunitário.

Surpreendentemente, os investigadores verificaram que as células dendríticas identificavam o mRNA produzido in vitro como um ‘invasor’, mas se o mRNA fosse produzido por células de mamíferos não. Teria de haver algo neste processo que tornava os dois tipos de moléculas diferentes e que levavam a uma reposta imunitária com o mRNA era produzido in vitro. Certo era que a inflamação provocada pelo mRNA produzido in vitro inviabilizava a sua utilização em futuros tratamentos.

Para começar, o mRNA contém as instruções para o fabrico de proteínas: uma molécula de mRNA por cada proteína, porque cada uma terá uma mensagem específica. Estas moléculas de mRNA são como frases traduzidas de um texto maior codificado que é o ADN — o nosso material genético que tem as instruções para todas as funções do organismo. Cada molécula de mRNA é composta por uma combinação de letras, as bases — adenina (A), guanina (G), citosina (C) e uracilo (U) —, que são também moléculas (uma combinação de átomos com um formato específico).

Até aos anos 1980, as moléculas de mRNA produzidas em laboratório tinham sempre de recorrer à utilização de células, que têm a maquinaria específica para passar as instruções do ADN para o mRNA, mas a partir dessa altura passou a ser possível fabricar moléculas de mRNA — ou seja, montar as letras (bases) na sequência certa — sem precisar da intervenção das células. A diferença, perceberam depois Karikó e Weissman, é que as bases produzidas pelas células tinham pequenas alterações, como adereços no cabelo de uma menina: a menina era a mesma, mas os adereços faziam com que as células dendríticas a olhassem de maneira diferente.

Os ‘adereços’ marcavam a diferença entre reagir ao mRNA produzido in vitro (sem alterações) ou não reagir ao mRNA produzido nas células (com alterações nas bases). Esta descoberta mudou significativamente o conhecimento que se tinha sobre a forma como as células dendríticas reconhecem e interagem com diferentes tipos de mRNA e abriria as portas à utilização de moléculas de mRNA em contexto terapêutico. Os resultados foram publicados na revista científica Immunity, em 2005.

Nos anos seguintes, os investigadores perceberam que não só as alterações nas bases reduziam a resposta inflamatória (por parte do sistema imunitário), como aumentavam a produção da proteína cujas instruções de fabrico estavam contidas na molécula de mRNA. Desta forma, os dois cientistas tinham eliminado aquilo que era um dos maiores obstáculos às potenciais aplicações clínicas do mRNA — não é aceitável que vacinas dadas a pessoas saudáveis provoquem reações graves.

Na altura, não houve muita gente que tivesse dado a importância que a descoberta veio a ter. Foi considerado um trabalho de investigação fundamental interessante, mas passou ao lado de muita gente o potencial que isto tinha par, mais tarde, se desenvolverem terapias baseadas na molécula de ARN mensageiro. O que é certo é que, sem esse conhecimento, não teria sido possível estas vacinas, que hoje em dia sabemos serem altamente eficazes, altamente seguras”, diz Miguel Prudêncio.

Depois destas importantes descobertas, foram fundadas as farmacêuticas BioNTech, em 2008, e Moderna, em 2010. A primeira procurava vacinas personalizadas contra o cancro e a segunda tinha como objetivo entregar proteínas terapêuticas no organismo. Antes disso, no ano 2000, a CureVac tinha sido fundada com o objetivo de desenvolver vacinas contra infeções e contra o cancro. Com a pandemia, cada uma das empresas focou-se no desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19.

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A descoberta foi crucial para o desenvolvimento de vacinas baseadas em mRNA, mesmo que Karikó e Weissman não o tivessem almejado na altura, comenta Miguel Prudêncio. Desde então, já foi identificada mais de uma centena de modificações que as bases podem apresentar, embora se tenha ainda conhecimentos muito limitados sobre as funções da maior parte delas, destaca o comunicado de imprensa do Nobel. O que se sabe os tipos de modificações estarão dependentes da utilização deseja para as moléculas de mRNA, seja para o tratamento do cancro, vacinas contra outros vírus ou introdução de proteínas com fins terapêuticos.

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O investigador do IMM destaca ainda que o conhecimento que levou ao fabrico de vacinas de mRNA contra a Covid-19 foi acumulado ao longo de décadas e que, por isso, caem por terra as alegações de que as vacinas não eram seguras porque tinham sido desenvolvidas muito rapidamente. “As vacinas contra a Covid-19 não apareceram de um dia para o outro”, afirma. “O trabalho que levou à produção destas vacinas assentou sobre o trabalho de décadas de investigação.”

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A investigação com vacinas começou muitos séculos antes do trabalho de Karikó e Weissman e foram produzidas muitas vacinas seguras e eficazes ao longo dos anos. Entre as vantagens das vacinas de mRNA estão a facilidade de produção: não precisam de culturas celulares, que são mais difíceis de manter do que uma produção totalmente in vitro; e podem ser criadas mais rapidamente — basta ter acesso à sequência genética, como aconteceu com o vírus SARS-CoV-2. Anteriormente, as vacinas eram baseadas em vírus atenuados ou mortos, em partes dos vírus ou nas toxinas (e proteínas) que produziam. Estas tecnologias também serviram de base a vacinas que estavam a ser desenvolvidas durante a pandemia, mas o processo foi muito mais lento.

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Katalin Karikó é a décima segunda mulher a receber um Nobel da Medicina

O prémio, tal como Alfred Nobel o indicou em testamento, inclui Fisiologia e Medicina, porque, na altura, a Fisiologia dizia respeito à investigação pré-clínica e a Medicina à investigação clínica. Assim, indica o site do Prémio Nobel, a distinção pode ser atribuída em qualquer área da biomedicina ou das ciências comportamentais. E, à semelhança dos prémios Nobel em outras áreas do saber, deve ser atribuído a uma descoberta específica e não como prémio de carreira.

Todos os anos, há uma lista de potenciais candidatos. As previsões dos especialistas para este ano incluíam como candidatos favoritos a investigação sobre as células imunitárias capazes de combater o cancro, o estudo da microbiota humana e os trabalhos sobre as causas da narcolepsia, noticiou a Lusa. A descoberta que se veio a relacionar com a mais recente emergência de saúde pública em termos globais acabou por vencer.

Alfred Nobel tinha previsto que os laureados tivessem feito as descobertas no ano anterior à atribuição do prémio, mas, como o prémio deste ano demonstra, muitas vezes só passados vários anos é possível perceber o verdadeiro impacto da descoberta.

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Entre 1901 e 2023 foram atribuídos 114 prémios Nobel da Medicina a 227 laureados — mas houve nove anos sem prémios atribuídos, sete deles coincidentes com a Primeira e Segunda Guerra Mundial. Entre os prémios atribuídos, 40 foram para uma única pessoa, 35 para duas pessoas e 39 para três pessoas (o número máximo de laureados em cada ano).

O prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina 2022 foi atribuído a um único investigador, Svante Pääbo, “pelas suas descobertas sobre os genomas dos hominíneos extintos e a evolução humana”. Entre os feitos científicos mais importantes atribuídos a Svante Pääbo estão a sequenciação genética de um neandertal (a leitura dos genes deste homem pré-histórico) e a descoberta de uma nova espécie de hominíneo, os denisovanos.

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Em 225 laureados com o Nobel da Medicina, apenas 12 eram mulheres. O último prémio tinha sido entregue em 2015.

Última atualização às 14h15