Na estreia literária do texano Rye Curtis temos, em capítulos quase paralelos, o ponto de situação de duas personagens: Cloris Waldrip, que, aos 72 anos, foi a única sobrevivente de um desastre de avião em Montana, em 1986, isolada na montanha, num embate a solo contra a natureza; e Debra Lewis, guarda florestal, agora com a missão de encontrar e resgatar Cloris. A primeira, que viajava com o marido, tem, além da luta pela sobrevivência, de lidar com a recente viuvez; a segunda encontra-se a braços com o vício e a tentar superar um divórcio recente.

A luta de Cloris é a luta de qualquer um. Sem ferramentas e sem aptidões especiais para a sobrevivência, e ainda por cima com idade avançada, cada momento sabe a desafio, cada dia é uma incerteza. De encher o estômago a hidratar-se com água potável ou a encontrar superfícies seguras, de temperatura adequada, para dormir, tudo é um puzzle a precisar de solução. A movê-la, está a sobrevivência como um tem-de-ser que não é questionado, e por isso a senhora vagueia, deixando rastos da sua passagem, rastos esses que Lewis, com o seu grupo, vai seguindo a ver se consegue encontrá-la. À medida que os dias se transformam em semanas, a esperança parece perder a força, mas a obrigação da sobrevivência não cede. À volta da guarda florestal, ninguém parece achar que uma senhora de 72 ombrearia com a natureza tanto tempo.

A narrativa chega a atingir alguma complexidade, em parte pela opção do autor, de dar dois pontos de vista entrelaçados. Por um lado, temos alguém normal em face de uma circunstância extraordinária; por outro, temos a percepção do quão extraordinário é alguém normal encarar essa circunstância. O romance inclui ainda descrições minuciosas da paisagem, que têm ritmo de livro de aventura, mas o ponto alto será a personagem de Cloris: bem delineada, o tom nunca lhe falha. Mesmo estando ela a vaguear pela montanha, o leitor nunca se esquece de que está ali alguém daquela idade a vir de uma vida pacata, com uma caracterização credível que a torna em gente a sério.


Título: “Na terra como no céu”
Autor: Rye Curtis
Editora: Quetzal
Tradução: Vasco Teles de Menezes

Páginas: 352

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O romance desenvolve-se entre cenas simples e complexas, num equilíbrio bem doseado que vai agarrando o leitor. Por exemplo, o contraste entre as duas protagonistas nunca chega a perder o interesse: viúva, Cloris avança em direcção à sobrevivência, parecendo já despojada de tudo; divorciada, Debra deprime face ao vício do álcool, e ganha ritmo esperando garantir a sobrevivência da primeira. No caso da primeira, o trauma emocional inesperado – chocante – funciona como motor, e o luto é chutado para canto para ser factor com que lidar mais tarde. Ainda assim, a sombra do marido, o “Sr. Waldrip”, como é referido, está sempre na cabeça de quem lhe sobreviveu e tenta alongar a vida.

Os eventos são narrados já 20 anos depois de terem acontecido, com Cloris num lar de assistência em Vermont – sobreviveu ao ar livre para acabar naquilo. Animais selvagens, fome, condições climáticas adversas, ossos que não resistem, tudo foi ultrapassado até se chegar àquele fim. Esta opção permite ainda ao autor manipular o leitor de forma eficaz: como quem lê já se sabe a priori que Cloris vai sobreviver, a atenção fica na forma e não na hipótese. Com isto, lê-se como quem ouve a história, sem a cogitação de uma dúvida, tendo o livro aberto à frente. Ao mesmo tempo, como tudo é narrado a posteriori, o leitor tem acesso, em simultâneo, à sensação in loco, no momento, aos pensamentos da mulher que vive aquela solidão contra a natureza a braços com o luto e a incerteza; à descrição do rumo que seguiu, ainda que deambulando com frequência; e aos pensamentos tidos depois, com Cloris a acrescentar o que não podia ter pensado no momento.

Para o leitor, isto implica ver toda a vida da personagem em panorama. É que, por um lado, o leitor conhece de antemão a vida pacata que Cloris teve com o marido; por outro, sabe já que a grande aventura surgiu aos 72; e que o fim foi o previsto logo depois do imprevisto. De uma velhice ainda mais velha do que a narrada do livro, a personagem vê as décadas que ficaram para trás, e não há como indagar que fim teria havido se não fosse o imprevisto. É que em nenhum momento a personagem se torna heróica ou aventureira; nunca sai da normalidade com que vê com as coisas; encarando o extraordinário, transforma-o em banal também. Tudo é feito com pragmatismo, e é esse pragmatismo que encanta.

A personagem, por isso, contrasta com a de Lewis, que também não terá o mesmo alcance. Parte de um lugar diferente: a vida privada tem mais solavancos, o álcool troca-lhe as voltas, a solidão agride-a de forma a que a vida perca interesse. Mas, ao acreditar que Cloris está viva, arrasta com ela, para a acção e para o livro, um conjunto de personagens que lhe vão dando vida, e que também vão sendo, na psique da personagem, supõe-se, uma espécie de preenchimento de vazio. Ao mesmo tempo, Lewis permite abrir a narrativa para a vida fora da luta pela sobrevivência na montanha e, como o que apresenta tem alcance no passado, há ali uma janela no texto que permite ao autor trazer o que quer para a narrativa, e isto vai desde um ex-marido preso por trigamia a um eremita que usa a roupa interior de raparigas como jóias ou a um artista um tanto psicótico que cria esculturas a partir do lixo. Dentro da narrativa, isto permite ao autor meter elementos que extravasem o que seria uma conduta linear, muitas vezes dentro da onda do grotesco, e que dão mais peso ao regresso a esses capítulos, criando relações dinâmicas, entre analepses e prolepses, entre as duas linhas de capítulos.

Com isto, entende-se que a primeira incursão de Rye Curtis na narrativa longa está já imbuída da vontade de tocar em vários prontos. Para lá disso, a prosa vem calibrada para que o texto seja dado ao leitor de forma harmoniosa, sem arestas por limar, as personagens estão bem construídas, muito diferentes entre si, e nuns capítulos e noutros o tom não se perde, havendo duas vozes distintas que o leitor nunca confunde.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.