É o primeiro livro de Eleanor Catton em dez anos e chega como um colosso. A Floresta de Birnam é o terceiro livro da autora publicado em Portugal, seguindo-se a Os Luminares (Bertrand, 2014), com que a autora venceu o Booker, sendo a mais jovem de sempre a receber o galardão, e O ensaio (Gradiva, 2011).

Assim que o leitor se adentra em A Floresta de Birnam, vê-se numa espécie de sátira deste tempo, com os dilemas e as polarizações actuais. Um colectivo de cultivo de guerrilha dá nome ao romance – a Floresta de Birnam é o grupo ilegal fundado por Mira Bunting. Criminoso para uns, altruísta para outros, o grupo de activistas ocupa e cultiva terrenos na clandestinidade, de forma sustentável. Como justificação para isso, há uma espécie de elevação moral e de acto de resistência, ou mesmo ataque, contra o capitalismo, que aparece como ameaça ambiental ao planeta.

A garantia da auto-suficiência, contudo, é uma luta, até que Mira descobre uma possibilidade: após um deslizamento de terras junto ao desfiladeiro de Korowai (que não existe fora do livro, o que não o impede de ter corpo), numa das partes mais inóspitas da ilha, crê-se estar ali a possibilidade de garantir o trabalho a longo prazo. Graças ao deslizamento, a passagem para a cidade de Thorndike fica cortada, e por isso encontra-se ali uma quinta de dimensões para lá de consideráveis, longe dos olhares públicos, o que torna o lugar cobiçado para negócios ilícitos – em que se incluem as plantações ilegais do grupo.

A discrição do lugar conta ainda com o interesse de Robert Lemoine, multimilionário, que lá chegou primeiro, e que, diz ele, lá quer construir um bunker para se precaver de um apocalipse. Achando graça à audácia de Mirna, Lemoine põe-lhe o caminho livre, dizendo-lhe que pode servir-se das terras. Mas, com duas visões de mundo tão díspares – ele a construir riqueza através das novas tecnologias, ela a tentar pôr um travão no ritmo do mundo –, torna-se difícil saber onde acaba a confiança e começa a colisão.

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Título: “A Floresta de Birnam”
Autora: Eleanor Catton
Editora: Bertrand Editora

Tradução: Maria Dulce Guimarães da Costa e Vasco Teles de Menezes
Páginas: 416

Ora, partindo principalmente do grupo criado por Mirna, o leitor tem acesso a uma exposição dos temas prementes da coetaneidade. Isto vem bem integrado na narrativa – ao invés de uma lição, temos personagens em acção. Vivas, falam umas com as outras, com identidades próprias, não sendo meros suportes do seu discurso – armadilha em que seria fácil a autora cair. Falam, discordam, discutem, e com isto vão dando provas da polarização do debate da actualidade. Ver isto a acontecer é o ponto alto do romance, uma vez que da polarização se vai ao extremismo com frequência e que uma ou outra personagem vai caindo numa teorização tal que se vão perdendo os fios de ligação com o real.

Nas primeiras dezenas de páginas do romance, o leitor tem a sensação de estar a ver uma crise entre a esquerda, com visões que acantonam os activistas, com um discurso que não dá lugar a pausas. Isto é particularmente visível no momento em que Tony entra na narrativa – e que é o momento em que regressa à acção. Anos antes, Tony era próximo de Mirna; agora, tendo partido, emigrado, não se percebe bem se foi o grupo que mudou, se foram os seus olhos, mas sente-se o embate de uma coisa coesa, aparentemente estática, com alguém cuja visão se diferencia. E, com isto, Eleanor Catton introduz de forma brilhante este embate do indivíduo face ao colectivo, e na discrepância de opiniões com um sabor de traição. Aliás, este embate já ficara claro – embora aqui seja mostrado através do discurso directo – num simples parágrafo relativo a outra personagem:

E Shelley queria sair. Sair do grupo; da sufocante censura moral, do fingido sentimento de camaradagem, da constante frugalidade obrigatória; dos riscos em termos financeiros, do apartamento; da relação com Mira, que não era romântica em nenhum sentido físico, mas que tinha acabado por se tornar, por qualquer razão, exclusiva e possessiva; e, acima de tudo, do seu papel de comparsa previsível, sensata e fiável, nunca tão rebelde como Mira, nunca tão livre-pensadora, nunca – nem mesmo quando agiam juntas – tão corajosa.  Queria sair com uma intensidade de sentimento que era tão abrupta e absoluta como quando soubera que queria entrar, e, quando analisou essa convicção, descobriu que era tão incapaz de explicar a razão para o seu desencanto como o era em relação ao que, para começar, a atraíra tão fortemente para o colectivo – e mais ainda: descobriu que não queria explicá-la, não queria compreendê-la, não queria sujeitar a um escrutínio aquela terrível certeza escondida de que fosse o que fosse que dissesse ou fizesse, fosse como fosse que agisse, fosse qual fosse a vida que escolhesse, estaria sempre errada, sem direção, mal preparada e incompleta.” (p. 25/26)

A estrutura do romance é densa, e a construção da psique das personagens não parece ter seguido atalhos. Há, pelo próprio acto da escrita, da decisão dos temas, da construção dos diálogos, um compromisso com o tempo coevo e os seus dilemas morais. E, acima disso, parece que o romance é usado como terreno de exposição das contradições, o que é uma lufada de ar fresco num mundo em que se polarizam as lições e as certezas.

Claro que o conflito entre grupos díspares também vai ocupando espaço no romance, que não será coisa pouca, e que tanto dirá também sobre a coetaneidade. Lemoine cumpre esse papel na narrativa, dando o outro lado da vida, este que vai lucrando de forma exponencial com os seus drones de vigilância. Mas um conflito entre partes opostas dificilmente tem a mesma pujança moral ou o mesmo interesse filosófico que a dúvida no meio da certeza, as arestas limadas para que se chegue a um caminho. Por isso, é a própria ideia de polarização que aparece como tendo particular pendor conflituoso – como sendo mais insensata do que o próprio conflito. A visão de Tony, e o contraste que traz, ainda que quase de nicho, ainda que entre aliados, chega a ser encarada como uma voz vinda do outro lado da trincheira, e aqui fala-se de paradigmas atingidos. É que, erigidos os paradigmas sobre a desconstrução de verdades absolutas, estes tornam-se noutras verdades absolutas que não podem ser questionadas.

Nisto, a autora vai construindo um debate político e, em simultâneo, filosófico. A prosa é escorreita, e a opção de a acção ser apresentada por via das consequências das decisões das personagens é o que transforma A Floresta de Birnam num romance coeso e corpóreo. Uma vez que o enredo engole a propaganda, malgrado os temas e as discussões que metem o mundo a perspectiva, tudo sabe a exploração, nunca a resposta, para que muito contribuem o diálogo entre as personagens e, em simultâneo, o diálogo entre estas e o leitor. O romance é acção e personagens em acção, o que significa que é, ainda, as consequências dos actos. As escolhas e os pontos de vista, ao invés de catequizarem, adensam a construção psicológica das personagens, muito por via das suas posições políticas face ao mundo.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico