Nos últimos anos, o mundo editorial tem apostado as fichas na viagem de Ludmila Ulitskaya para o Ocidente. Escritora russa de mão rija, Ulitskaya tem usado o terreno literário para a exploração dos conflitos civilizacionais contemporâneos. Depois da primeira publicação, em 2007, com selo da Campo das Letras, a Cavalo de Ferro tem vertido a obra para português europeu, obra essa que já tem traduções para mais de 40 línguas.

Há não muito tempo, escrevemos aqui sobre Medeia e os seus filhos, romance em que a autora mostra o mundo a partir de uma casa. Com uma personagem ampla a funcionar como pedra de toque, vê-se o mundo a partir do indivíduo, estando Ulitskaya activamente a manter acesa essa parte da tradição russa: o leitor, deixando-se enganado, pode julgar que segue a vida de alguém; em vez disso, os traços constitutivos da personagem exploram os biográficos e a densidade psíquica e social mostram tanto alguém como alguém no contexto do seu mundo.

Neste Mentiras de Mulher, temos outra estratégia ficcional, e o mesmo efeito. Facilmente este romance poderia transformar-se num conjunto de contos. O seu eixo condutor é Génia, e é ela que permite criar um todo orgânico entre tantas histórias que tocam em tantos pontos – sem ela, teríamos um conjunto de mosaicos – belo; ainda assim, um conjunto de mosaicos. A personagem de Génia agarra o leitor – intelectual soviética, mãe, atrai, como uma romancista, as histórias das mulheres com quem se cruza, que aqui equivale a confidências e inconfidências. Ao mesmo tempo que Génia as ouve, o leitor lê-as, o que faz com que a informação chegue aos dois planos em simultâneo. O leitor, claro, para lá das suas impressões sobre o que lê em discurso directo, ainda tem acesso ao fluxo de pensamento de Génia sobre a informação a que acede. Através desta estratégia, a autora cria acção por parte de quem lê, já que não há uma leitura acrítica. Em vez disso, há o confronto permanente, o paralelismo permanente com uma personagem com acção na história – essa, que, longe de ser omnisciente, se vai deixando enganar como o leitor. Este acesso a Génia, e o mesmo plano temporal, permitem ao leitor a construção de empatia, a sensação de que não há uma volta esperta que o vá manipular. Não que não exista, claro, mas existe por via autoral. A questão é que, como Ulitskaya vai criando a narrativa em torno de Génia, ainda que esta, na maior parte do texto, seja ouvinte, quase recipiente das histórias, é em relação a ela, e não à própria autora, à própria manipulação autoral, que o leitor vai formando a leitura.


Título: “Mentiras de Mulher”
Autora: Ludmila Ulitskaya
Editora: Cavalo de ferro
Tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra
Páginas: 160

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O título diz ao que vem, e espanta por isso que se sinta surpresa quando se chega ao ponto da mentira, e de noção da mentira. O benévolo leitor mantém-se enganado mesmo quando tem um aviso prévio sobre o logro – mas é fácil olhar para a narrativa sem pensar no que lhe dá nome. Génia espanta-se ao saber que alguém lhe deu a volta – que o leitor se deixe espantar pelo mesmo é que é outra história, que só depende da mão arguta de Ulitskaya. As pequenas histórias, sempre incisivas, inteiras, envolventes, não apenas revelam uma mão capaz de atar os pontos, fazendo de histórias aparentemente desligadas um todo orgânico que não cede à composição formulaica – sendo, em vez disso, narrativa e prosa escorreita –, como revelam ainda várias vidas numa só peça literária.

Já se tinha sentido o mesmo em Medeia e os Seus Filhos: um pequeno quadro servia para mostrar um mundo. Aqui, a partir da intimidade, a autora vai mostrando um país. Com histórias aparentemente corriqueiras, voltadas para o indivíduo, para a sua (in)capacidade de regeneração, para a criação da mentira como combate ao status quo, como sobrevivência a uma vida amorfa e triste, Ulitskaya cria um panorama de condições humanas, de gente a existir dentro da sua condição e apesar dela – mas, em especial, dentro da sua condição. É aí que as personagens da autora russa voam em pleno, no momento em que nos traz a vida interior de quem, ao invés de partir para outra vida, repete a que tem e inventa tragédias para lhe fugir. Nisto, a personagem de Irene será particularmente forte: num cenário de vida quase banal, inventa um passado de fazer chorar as pedras da calçadas, com maridos mortos, filhos mortos. Traz à narrativa um drama tal que o leitor se esquece de que está a ser enganado e, como Génia, deixa-se enganar. Há a evidência de uma falta de esperança – ainda que cómica, por ser tão exageradamente trágica – em quem prefere os maiores horrores à lassidão do dia-a-dia; em quem inventa para si as maiores dores para conseguir arrebanhar a pena alheia. Veja-se:

– Aos vinte anos eu era mãe de dois filhos mortos – continuou Irene sem preâmbulo, no ponto preciso em que parara na véspera. – Ainda demorei dois anos a aprender a viver, a continuar. Tinha ajuda, claro – fez um gesto indefinido na direcção dos céus.” (p. 24)

Feitas as contas, será essa necessidade delirante e doentia a merecer mais pena – mais do que se tivesse realmente motivos para a provocar nos outros. Já calibrado, o leitor avança para as histórias seguintes, e desta vez tem vantagem em relação a Génia. É que agora não há como ir ao engano, já se sabe que os discursos directos trarão fantasias, o que vai criando um plano de leitura em que o leitor se sente adiantado em relação à personagem – e sempre atrasado em relação à mão autoral que o encaminha.

Com isto, Ludmila Ulitskaya mostra a plenitude da sua aptidão, em simultâneo, de contista e romancista. As pequenas histórias são curtas, e bastam para a absorção, a empatia e o estalo. Ao mesmo tempo, fazem-se durar através de uma personagem que é fio condutor e gente viva, dando mais à narrativa do que cola. É que, finda a leitura, ainda que o leitor esteja a ler outras vozes em discurso directo, foi com a cabeça de Génia que esteve o tempo todo.

A autora não escreve segundo o novo acordo ortográfico.