Os venezuelanos vão este domingo às urnas para participar num referendo consultivo proposto pelo Presidente Nicolás Maduro sobre o futuro de Essequibo, um território rico em minerais e em petróleo em disputa há mais de um século com a vizinha Guiana.

Com uma extensão de 160 mil quilómetros quadrados, a região, que aparece nos mapas venezuelanos como “zona em reclamação” e que está sob mediação da ONU desde 1966, compõe cerca de dois terços do território total atualmente controlado pela Guiana e é casa para cerca de 125,000 pessoas.

O Presidente Nicolás Maduro foi este domingo um dos primeiros a votar no referendo que questiona os venezuelanos sobre o seu apoio à criação do Estado de Guiana Essequiba, que na prática levaria à anexação de uma região que corresponde a 70% da Guiana, e à concessão da cidadania venezuelana e de bilhetes de identidade à população local. “Exerço o meu direito ao voto no histórico referendo consultivo pela defesa da nossa Guiana Essequiba“, partilhou durante a manhã numa publicação na rede social X (antigo Twitter).

Nicolás Maduro assegurou que o país vai sair “mais forte” do referendo, que avançou apesar do Tribunal Internacional de Justiça — o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas — ter apelado a que a Venezuela se abstivesse de realizar qualquer ação com o objetivo de anexar território da Guiana, incluindo a região de Essequibo.

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“Estamos a resolver, por meios constitucionais, pacíficos e democráticos, uma pilhagem imperial com 150 anos. (…) Estou certo de que, a partir de hoje, vamos sair mais fortes. Estou otimista, tenho a esperança renovada de que hoje vamos sair mais fortes como país para falar alto, claro e forte”, sublinhou Maduro em declarações ao canal estatal VTV, após votar pouco depois da abertura das assembleias de voto. O primeiro efeito do referendo, acrescentou, será “sentar o Presidente da Guiana”, Irfaan Ali, que “tomou o caminho do confronto”, para retomar o Acordo de Genebra como forma de resolver o diferendo através de um mecanismo de “negociação pacífica e diplomática”.

Em resposta, o Presidente da Guiana sublinhou que o país não deve recear o referendo venezuelano. “Quero garantir aos guianenses que não há nada a temer nas próximas horas, dias, meses. Estaremos vigilantes, mas estamos a trabalhar incansavelmente para garantir que as nossas fronteiras permanecem intactas e que a nossa população e país continuam seguros”, afirmou numa transmissão em direto a partir das redes sociais.

Como começou a disputa por Esequibo?

A disputa entre a Venezuela e a Guiana pela região de 160 mil quilómetros quadrados prolonga-se há mais de um século. Compreendê-la requer, no entanto, que se recue ainda mais no tempo, mais precisamente até 1777, ano em que o Império Espanhol fundou a Capitania Geral da Venezuela, uma subentidade territorial que incluía o território de Essequibo.

Quando a Venezuela assegurou a sua independência do império espanhol, em 1811, garantiu também o controlo do agora disputado Essequibo. Mas a situação complicar-se-ia numa questão de três anos, quando o Reino Unido assinou um pacto com a Holanda para adquirir cerca de 51.700 quilómetros quadrados a leste da Venezuela, num tratado que não deixava clara a fronteira ocidental do que viria a ficar conhecido como a Guiana Britânica.

Numa tentativa para ultrapassar a falta de clareza sobre a fronteira, as autoridades britânicas viriam a nomear o explorador Robert Schomburgk para definir os limites da região. Em 1840, era inaugurada a Linha Schomburgk, uma rota que ocupava quase 80.000 quilómetros quadrados adicionais. Como recorda a BBC, a disputa começava oficialmente pouco depois, com a Venezuela a denunciar uma incursão do Império Britânico no seu território.

Referendo proposto por Maduro para anexar 70% da Guiana faz soar os alarmes

A “Linha Schomburgk” ainda voltaria a ser ampliada quatro décadas mais tarde, uma mudança que levaria os Estados Unidos a intervir sob a Doutrina Monroe e a denunciar uma expansão “misteriosa”, recomendando que a disputa fosse resolvida num processo nos tribunais internacionais.

O processo avançou, mas a decisão só viria a ser conhecida em 1899. Na altura, um tribunal internacional decidiu a favor do Reino Unido, deixando Essequibo sob domínio britânico. A Venezuela nunca aceitou a determinação e, segundo a BBC, os sucessivos governos venezuelanos dos últimos 60 anos têm declarado que se trata de uma medida injusta.

A Guiana só viria a alcançar a independência em 1966. Três meses antes de se oficializar, o Reino Unido e a Venezuela firmavam o que ficaria conhecido como Acordo de Genebra, documento que reconhecia a reivindicação da Venezuela ao território e procurava encontrar soluções satisfatórias para resolver a disputa.

Até agora todas as tentativas falharam. A Guiana continua a defender o seu direito ao território de Essequiba, com base na decisão de 1899 quando ainda pertencia ao império britânico. Já a argumentação da Venezuela apoia-se no Acordo de Genebra de 1966, que descreve “como o único instrumento jurídico válido para alcançar uma solução prática e satisfatória” para solucionar o diferendo.

As tensões entre a Venezuela e a Guiana nunca desapareceram e ganharam força em 2015 quando dezenas de depósitos de petróleo começaram a ser encontrados pela multinacional ExxonMobil na costa de Essequiba. Desde então, a empresa e os seus parceiros fizeram várias descobertas que elevaram as reservas de petróleo da Guiana para cerca de 11 mil milhões de barris, o que representa cerca de 0,6% do total da produção mundial. Não é só o petróleo que faz de Essequiba um território tão importante. É também lá que se situa a mina de ouro Omai, uma das maiores do Escudo das Guianas e uma das principais fontes de rendimento da Guiana.

Em 2018, a Guiana levou a disputa para o Tribunal Internacional da Justiça (ICJ, na sigla em inglês), num processo que se arrasta desde então. Só passados dois anos é que se completou o primeiro passo e o tribunal das Nações Unidas determinou ter jurisdição para avaliar o caso. Até agora ainda não chegou a uma decisão sobre se a decisão de 1899 em atribuir o Essequibo à Guiana é válida.

O que diz o referendo?

No referendo deste domingo, que deixou a comunidade internacional sob alerta, os venezuelanos são chamados a responder a cinco perguntas:

  • Concorda em rejeitar, por todos os meios e de acordo com a lei, a linha fraudulenta imposta pela Sentença Arbitral de Paris de 1899, que pretende privar-nos da nossa Guiana Essequiba?
  • Apoia o Acordo de Genebra de 1966 como o único instrumento jurídico válido para alcançar uma solução prática e satisfatória para a Venezuela e a Guiana em relação à disputa sobre o território da Guiana Essequiba?
  • Concorda com a posição histórica da Venezuela de não reconhecer a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça para resolver a disputa territorial sobre a Guiana Essequiba?
  • Concorda em opor-se, por todos os meios e de acordo com a lei, à reivindicação da Guiana de dispor unilateralmente de um mar pendente de delimitação, ilegalmente e em violação do direito internacional?
  • Concorda com a criação do estado Guiana Essequiba e o desenvolvimento de um plano acelerado para o atendimento integral da população atual e futura desse território, que inclui a concessão de cidadania e de identidade venezuelana, de acordo com o Acordo de Genebra e o Direito Internacional, incorporando consequentemente esse estado no mapa do território venezuelano?

Os analistas políticos esperam que a proposta tenha adesão, apontando a falta de oposição à campanha encabeçada por Maduro à volta do referendo e a grande probabilidade de os venezuelanos que se opõem às medidas não irem às urnas. Além disso, o referendo é consultivo e não há um número de votos mínimo para a sua aprovação.

“Este referendo já está aprovado porque os venezuelanos não vão votar contra ele. A questão é se a consequência disso será uma ação para a anexação de Essequibo ou não”, disse ao jornal Globo Ronaldo Carmona, professor de geopolítica da Escola Superior de Guerra.

Os analistas consideram que há mais em jogo na realização do referendo, que não separam das eleições presidenciais do próximo ano. “O governo está a realizar o referendo por razões internas. Precisa de testar a máquina eleitoral”, defendeu em declarações à agência Reuters Benigno Alarcon, diretor do centro de Estudos Políticos da Universidade Católica Andres Bello, em Caracas. “Se a oposição se unir e houver da parte dos venezuelanos vontade para participar [nas eleições de 2024], Maduro está fora”, acrescentou o analista Rocio San Miguel, prevendo que o Presidente pretende ativar um cenário de conflito para eventualmente suspender as eleições.