O relógio aproximava-se das três da manhã quando as dores das contrações despertaram Talita Cantoni e os dois filhos, que dormiam no mesmo quarto. Naquele momento, a cidadã brasileira — a viver em Portugal desde 2007 — percebeu que não podia adiar mais o que tentou esconder durante vários meses. Os bebés — estava grávida de gémeos — tinham mesmo de nascer. Apesar de aquela gravidez não ter sido planeada, Talita nunca ponderou recorrer a uma interrupção involuntária. Mas nada fazia prever o que fez depois de os gémeos nascerem naquele quarto.

Quando, a 5 de maio de 2021, a esteticista, de 36 anos, descobriu que estava grávida pela quarta vez, abraçou as roupas largas e decidiu ocultar a gravidez da família até que os bebés nascessem. Isto por alegadamente “temer a reação dos progenitores”.

Durante quase sete meses, marcados por “elevados níveis de stress” — não apenas pela gravidez não planeada, mas também pelo “internamento do filho mais velho, quando foi submetido a transplante hepático” —, o seu plano funcionou. No entanto, tudo mudou a 4 de dezembro. No dia em que deu à luz dois bebés, Taliana tirou-lhes a vida.

O Tribunal de Cascais tinha condenado a mulher a uma pena de prisão de 18 anos. Mas, agora, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) deu razão ao recurso do Ministério Público (MP), que discordou da pena inicial, e agravou-a para os 20 anos de prisão. Em causa, segundo a sentença que o Observador consultou, está o que aconteceu naquele dia de inverno, no mesmo quarto onde dormia com os dois filhos, que têm hoje 13 e seis anos.

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Quando começou a sentir as dores e as contrações, Talita Cantoni estava “perfeitamente ciente de que se deviam ao estado final da gravidez”, refere o acórdão do STJ, de 23 de novembro, a que o Observador teve acesso. No entanto, “decidiu prosseguir com o parto sem recorrer aos serviços hospitalares”, optando por ter os dois filhos no quarto.

Passadas três horas, a mulher deu à luz “duas crianças com vida” e “sem qualquer tipo de formação visível”. A primeira do sexo feminino e a segunda do sexo masculino.

De seguida, a esteticista colocou em prática “o propósito de por termo à vida daqueles dois filhos”. Contra a menina, “desferiu pancadas” na cabeça, tendo depois estrangulado o seu pescoço, o que acabou por levar à sua morte. Já ao bebé do sexo masculino, “esganou o seu pescoço”, tendo também sido detetadas lesões no crânio, alegadamente resultantes de quando a mãe o deixou cair ao chão.

Os dois filhos mais velhos assistiram ao cenário de violência, tendo também visto a mãe a “embrulhar” a bebé do sexo feminino em édredons, colocando-a no chão, e a deitar o bebé do sexo masculino no “caixote do lixo que tinham no quarto”.

Era este o plano de Talita Cantoni para conseguir omitir os bebés não só da família, como das autoridades. No entanto, como explica o Jornal de Notícias, a “hemorragia forte” que sofreu a seguir ao parto acabou por obrigá-la a chamar os bombeiros.

Quando chegaram, encaminhados pelo filho mais novo da arguida, revela o Correio da Manhã, depararam-se com um cenário de sangue, que presumiram inicialmente pertencer apenas à esteticista. Contudo, quando viram o bebé no caixote do lixo, perceberam que estavam perante algo mais do que um simples parto à moda antiga.

Abandonado junto ao caixote do lixo, largado “à sua sorte”

Nascida em 1987, Talita cresceu numa “dinâmica familiar descrita como disfuncional”. A sua infância foi marcada por “episódios de violência doméstica” protagonizados pelo pai à mãe, “que se perpetuaram após processo de emigração para Portugal”, refere o acórdão.

A cidadã brasileira começou a frequentar a escola em “idade regulamentar”, mas abandonou os estudos aos 13 anos de idade, após ter sido expulsa do instituto na sequência de um “episódio de conduta de oposição com agressão a professor”.

Taluta começou depois a trabalhar em “salões de estética e em lojas de roupa”, quando ainda vivia no Brasil. Cerca de sete anos depois, apanhou o voo para Portugal com o pai, para passar a viver com a mãe, que tinha começado “o processo de emigração um ano antes”. Já a viver na zona de Cascais, prosseguiu com a “atividade laboral em salões de cabeleireiro”, como “empregada doméstica e de balcão na restauração e pastelaria”.

Era assim que se sustentava desde 2007, conciliando o trabalho com os relacionamentos afetivos que foi tendo ao longo dos anos. O primeiro, segundo disse à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), começou um ano após ter chegado a Portugal e terminou quando engravidou do primeiro filho, que acabou por ser assumido pelo tio paterno, visto que “o progenitor o terá recusado”.

Em 2010, teve um novo “relacionamento fugaz”, que resultou numa segunda gravidez. Dessa vez, tal como fez com os gémeos, Talita omitiu o bebé até ele nascer, tendo-o largado junto a um caixote do lixo, “sem se importar com a sua sorte”, refere o STJ.

Nesse caso, o recém nascido acabou por ser encontrado a tempo e sobreviveu. Talita foi submetida a um inquérito judicial, tendo sido alvo de uma suspensão de provisória do processo, por ser delinquente primária, sem antecedentes criminais.

Já em 2014, começou um “novo relacionamento afetivo com um ex-namorado que reencontrou num período de férias”, do qual nasceu o terceiro filho, que tem atualmente seis anos.

Apesar dos homicídios cometidos, que a colocaram atrás das grades a 9 de dezembro de 2021, a arguida foi descrita pela mãe como “muito boa cuidadora dos filhos” e pelo irmão como “mãe o mais dedicada possível, apesar das dificuldades económicas”.

Ainda assim, o STJ deu razão ao MP, que contrariou a decisão tomada pelo Tribunal de Cascais — que teve em atenção o facto de as mortes terem acontecido no seio familiar da arguida —, dizendo que Talita, “durante todo o período da gravidez, permaneceu indiferente ao estado de saúde dos bebés, não comparecendo em qualquer consulta ou ecografia”.

Desconhecia, portanto, se estavam vivos ou mortos. Logo após o parto, ao verificar que estavam vivos, não hesitou em colocar-lhes termo à vida”, apontou o Ministério Público, no recurso apresentado após a condenação.

Além disso, o MP sublinha que a “arguida praticou os factos na presença dos dois filhos menores” — “circunstância que lhe é especialmente censurável e perversa” — e que o “meio escolhido para perpetrar o ilícito” foi um caixote do lixo, equiparando o bebé “a um objeto sem valor”.

Desta forma, o STJ decidiu agravar a pena única de prisão, pela prática de dois crimes de homicídio qualificado e por um de profanação de cadáver, a 20 anos de prisão, dizendo que a arguida “revelou ser detentora de uma personalidade com características altamente censuráveis, que exigem o seu acompanhamento e uma particular necessidade de educação e de apoio”.

Segundo o Jornal de Notícias, a defesa da arguida pediu uma redução da pena, por ter confessado os crimes e por ter mostrado arrependimento, mas o STJ negou o pedido.