Um termo figurativo como “constelação” bem serviria a função de pretexto para de tudo ou de nada se falar, como a escolha dissimulada — e à partida malograda — de armar o texto sob um significante supostamente neutral. Isto se aquele que o usasse não estivesse ciente da complexidade que uma mesma palavra inscreve ou não soubesse exatamente o que lhe interessasse tratar. Isto, ainda, se esse mesmo autor não começasse, porventura, por se demorar nas várias possibilidades e nos limites (como o descompasso produtor de sentido) que uma mesma imagem e que uma mesma palavra detêm. Não é o caso de Bragança de Miranda que, ao longo do seu último livro — Constelações. Ensaios sobre cultura e técnica na contemporaneidade — discorre sobre assuntos como a arte, a comunicação e o arquivo, a partir do problema da técnica. Tópicos tratados, note-se, na antevisão e na iminência, desde logo atuante, do seu fim enquanto temáticas autónomas e isoladas. Com efeito, também este livro, enquanto objeto circulável e endereçável — e, daí, em desaparecimento, desde logo esquecido, visto que arquivável — configura uma espécie de constelação. Logo no início é definido um centro: “O centro desta constelação é a técnica” (23), sobre a qual se procederá a uma série de desconstruções desmistificadoras: “Desconstruir a visão essencialista da técnica passa por desmontar as teses que a determinam como algo exterior e unificado, embora produto dos humanos. Com efeito, as máquinas fazem parte da vida, como os humanos ou os animais, e tudo depende das composições ou arranjos onde entram, podendo servir a guerra ou o capital, ou as necessidades humanas imprescindíveis” (26).

A técnica é entendida enquanto processo de articulação entre natureza e história, sendo a responsável pela constituição do homem enquanto ser histórico, ao passo que a physis nos constitui enquanto seres orgânicos. Ser processo articulatório não obsta a que as suas comunicações, suas configurações rizomáticas, sejam sempre bem-sucedidas. É partindo, aliás, de uma impossibilidade de fazer a mensagem chegar ao seu destino que a técnica se desenvolve enquanto processo — além de sintoma de um desfasamento entre o homem e physis — não só vivo, como integrável em todas as esferas da sociedade: da arte à política. Não nos situamos, neste sentido, na conceção da técnica — cuja demonização ou angelização, escreve Bragança, são contraproducentes de um pensamento crítico rigoroso — enquanto exterioridade deslocável segundo interesses mais ou menos precisos por parte do homem. A técnica é, pelo contrário, similar à natureza e ao homem pelo simples facto de estes viverem, revelando-se, por meio da repetição e pela prossecução de determinados mecanismos. Assim, não interessa tanto defender-se uma naturalização da técnica, mas antes uma desnaturalização do homem e da physis para o homem.


Título: “Constelações — Ensaios sobre cultura e técnica na contemporaneidade”
Autor: José Bragança de Miranda
Edição: Documenta
Páginas: 272

O que está em causa é sempre a intervenção, não sobre, mas no real: “A câmara [dispositivo técnico], como o bisturi, ao introduzir-se entre o olhar e as coisas, penetra na carne, divide-a, extrai-lhe as imagens virtuais que contém. A técnica que dirige a operação é uma espécie de escalpelo do real. Essas imagens só existem porque passam pelo corpos, afectando-os” (111). O movimento é, contra o que prometem as infindas possibilidades de armazenamento em clouds, como o espaço sempre expansível do cyberspace, de desapropriação e preparação de uma terra comum: “Abre-se, assim [na constelação do planetário], um espaço onde cada um dos elementos se torna produtivo, palco de apropriação, de aumento de potência.” (152) Nada está agora, na contemporaneidade, propriamente mais próximo, nem a conservação da massa indescritivelmente volumosa de dados — talvez, precisamente, tão-só descritível por códigos — tampouco assegura qualquer prolongamento da memória, mas precisamente, e no limite, a virtualização da experiência, da qual se procura extrair, conferindo-lhe o primado soberano da totalidade, um arquivo, como a reunião dos fragmentos de que a memória, como passagem, se compõe. “Com a introdução do hiperespaço arquivial, torna-se bem problemática uma distinção nítida entre suporte e inscrição. A reversibilidade de ambos tenderá a aumentar, abalando essa própria distinção” (266), o que comporta efeitos múltiplos, passando pela virtualização da experiência e a consonante e progressiva desmaterialização do arquivo.

Servindo-se de um conjunto de autores — de Heidegger a Stiegler, de Benjamin a Adorno, de Giordano Bruno ao poeta Manoel de Barros — os quais compõem uma biblioteca e uma tradição de leitura privadas de Bragança de Miranda, o autor procura pensar os diversos prólogos de uma série de problemas que o nosso tempo nos vai colocando. Trata-se, em todo o caso, de um exercício de sair do tempo, sair do lugar de sujeito participante de um determinado paradigma e de uma contingência ativa e localizada, a que podemos apor datas e lugares mais ou menos precisos, e procurar os interestícios que só uma perspetiva tão crítica quanto inventiva pode habitar e, assim, tornar legível: “Estar à altura do acontecimento significa inventar outras formas de vida” (22).

Se o real está sempre em excesso, relativamente às operações e mecanismos que o procuram totalizar, desmontando-o, procedendo à sua catalogação, então o que resta é assumir o excesso enquanto bitola da contingência como esteira sobre a qual viver e pensar, bem como do carácter provisório de todo e qualquer gesto. Criar um espaço habitável, que José Bragança de Miranda edifica, servindo-se de uma série de perspetivas teóricas, às quais procura atribuir um ritmo e uma palpabilidade mais colorida pela referência a objetos concretos, tais como peças de arte e poemas. Ao procedimento algo datado de recorrer a objetos particulares para exemplificar as ideias primeiramente estampadas na página, segue-se a justa respiração do texto, pela coincidência recorrente entre a frase declarativa e o anúncio mobilizador de um problema. Assim convidando o leitor a assumir-se enquanto parte da empresa filosófica aqui começada, remete-se este escrito ao estatuto de texto inscrito num tempo e num lugar, a cujas coordenadas não poderemos escapar enquanto passageiros, viajantes ativos e pensantes. O fim do texto agudiza o apelo de que parte, relançando o convite: “É preciso abandonar a mística da salvação que só relança o processo. Aceitando a finitude, vivendo numa errância longe dos arkhai, habitando no abismo da medialidade sem fim, surge a questão da política como imperativo absoluto.” (269).

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