Quem quer estar informado sobre o mundo tem várias opções ao seu dispor: ver noticiários na TV (se tiver uma hora e meia para gastar a ouvir comentadores políticos), ouvir rádio, assinar um jornal. Ou então dirigir-se ao Twitter, plataforma de escrita curta cujas  ruínas se chamam agora X, e ler o que os media lá publicam, bem como os comentários dos especialistas nos mais variados assuntos que por lá andam.

Uma hipótese mais divertida é, desde que Elon Musk quase destruiu a aplicação, ler o que pessoas que não seguimos dizem – porque no seguimento do despedimento da maior parte dos engenheiros o X põe-nos à frente tweets de gente que não fazemos ideia quem seja, retira-nos da bolha que cuidadosamente havíamos criado e expõe-nos a todo o tipo de ideias, credos de todo o tipo de maluquinhos.

Em geral o conjunto de algoritmos que serve o X privilegia agora gente que professa a anti-vacinação, a xenofobia, etc, mas por vezes revela-nos mensagens verdadeiramente chocantes. Um tweet chocante, no X, tem um tempo de vida que pode ir de 6 a 24 horas – este ocupou a comunidade durante um dia inteiro: uma rapariga afiançou que o sucesso de Taylor Swift se deve ao facto de a cantora exprimir com precisão os sentimentos das mulheres; e depois perguntou (ingenuamente ou não) se os homens tinham algum compositor assim na sua vida.

[“No Caffeine”:]

Passando ao lado do facto de durante séculos as mulheres não poderem compor, é difícil não ter reparado que, de Dylan a Kurt Cobain, há centenas ou milhares de estrelas e semi-estrelas folk, pop, indie, que se tornaram referências exatamente pela sua capacidade de descrever emoções (algumas conotadas com a “masculinidade”). Umas boas centenas de rapazes repetiram este argumento, mas uma moça mais atenta à diversidade biológica da nossa espécie saiu-se com um tweet admirável: “Por favor, alguém mostre a PJ Harvey a esta rapariga”.

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Podemos ir mais longe do que Polly Jean, recuar até Joni Mitchell, que expressava os sentimentos das mulheres (em particular das que sentiam o apelo do lar mas preferiam ser livres); ou avançar no tempo e chegar até aos dias de hoje, quando Adrianne Lenker expressa os sentimentos de todas as pessoas (homens ou mulheres) que amam (homens ou mulheres) ao mesmo tempo que sentem que o seu GPS emocional avariou há muito; ou recuar até Liz Phair, que expressava os sentimentos das raparigas vindas de terras pequenas e não se sentiam muito bonitas mas queriam ter sexo ou usavam o sexo para escapar ao tédio.

Desde que se começou a gravar e a comercializar discos que surgiram mulheres a expressar o que bem lhes apetecia (ou o que cada época aceitava); mas nos últimos anos houve uma espécie de explosão de compositoras com talento para a confessionalidade e a intimidade – talvez tenha começado com Sharon van Etten e Angel Olsen, e foi parar a Mitsky, Snail Mail e, entre outras, Marika Hackman.

[“Slime”:]

Hackman não é fácil de caracterizar: tanto o seu mini-álbum de estreia (That Iron Taste) como o primeiro longa-duração, We Slept at Last (2017), eram pequenas joias de folk sombria; mas desde então ela pareceu querer fugir à catalogação de rapariga deprimida com uma guitarra acústica: foi à pop de guitarras com laivos punk, ou cruzou esses elementos com aparelhagem eletrónica; podiam chamar-lhe tudo menos rapariga da folk.

Os dois primeiros singles de Big Sigh, o seu recém-lançado disco, os dois primeiros singles (dizia) No Caffeine e Slime, não ajudam a colocá-la numa prateleira: no intervalo de uma só canção ela passa por dois ou três géneros, com ótimos resultados: No Caffeine começa com piano e voz mansas, uma guitarrinha a acompanhar a melancolia subjacente e quando colocamos uma lupa sobre a letra ouvimo-la cantar “maybe try and fuck / stay away from love /../ ’cause you got me good / and I feel so stupid”. Até aqui tudo bem: apesar do piano isto pode encaixar na folk confessional (e ficaria bem no Folklore de Taylor Swift); mas depois vem a batida, tudo acelera, há uma guitarra a serrar madeira a meio e é todo um outro mundo, chegam as as cordas a subir e estamos perante um portento que não tem género — e o refrão, com Marika a cantar “cause you got me good / and I feel so stupid” enquanto as cordas rodopiam como um furacão é das coisas mais admiráveis dos últimos muitos meses.

[“The Yellow Mile”:]

Slime também começa em registo folk confessional (guitarra acústica, Marina a cantar “stranger, I want to rearrange you / climb your spine and shake your mind / slide back and feel your bones crack”, para um par de frases de teclas bem pop depois chegar a um ótimo refrão pop, uma justaposição tão inusitada quanto feliz. A tendência para começar lento e à guitarra acústica antes de botar uma mudança abaixo e arrancar mantém-se em Big Sigh (a faixa homónima ao disco), que desagua num refrão grandalhão à guitarra, meia grungy, o tipo de canção que esperaríamos que Kurt Cobain fizesse, se tivesse vivido até aos 35 anos e estivesse divorciado. Vai dar alto cenário nos concertos, as cabeças a abanar, as moças a moshar.

Uma parte do disco atém-se a questões amorosas, mas os dilemas existenciais individuais ocupam uma parte da psique musical de Marika, que as explora com uma crueza e honestidade altamente sedutoras, mesmo quando, em Vitamins (que começa lenta, ao piano, antes da aparição da eletrónica), descreve o seu próprio corpo como “a sack of shit and oxygen”. Em Hanging (de novo o piano), ele descreve-se “pushed underwater” pela dor. Os refrões podem ocasionalmente subir, mas em geral Marika está no sopé da montanha das emoções humanas.

[“Big Sigh” na íntegra no Spotify:]

Alguma coisa aconteceu à senhorita Hackman ali por 2019, quando lançou o seu penúltimo disco de originais, Any Human Friend – e cinco anos sem música nova, no século XXI, é uma eternidade. Ela descreve o sucedido como o típico caso de “writer’s block” mas soa a um caso de coração mal resolvido: depois de Any Human Friend ela separou-se da sua companheira de longa data, Amber Bain (mais conhecida por Japanese House) e deixou de conseguir compor. Em compensação, em 2020, durante a pandemia, lançou Covers (que era o que o título indica, e incluía canções de Beyoncé e de Elliott Smith, mais uma vez demonstrando o ecletismo de Marika) e desde então nada, até agora.

Portanto, a resposta à menina que no X/Twitter perguntou se nós, homens, temos alguém que consiga exprimir com precisão os nossos sentimentos, a resposta seria: sim, temos Marika Hackman – uma mulher, lésbica, cujas obsessões (o amor, o sexo, a decadência dos corpos, a proximidade da morte) são suficientemente universais para dispensarem separações por género (musical ou biológico).

E agora um pouco de psicologia barata: quando Marika tinha 12 anos começou a sentir dores na região do apêndice e não ligou; dias depois estava em coma no hospital com uma septicemia. O acontecimento marcou-a de tal modo que desde então não consegue deixar de olhar para corpos como o conjunto de órgãos falíveis que são, não consegue evitar pensar que tudo tem um fim (e não costuma ser bonito).

Marika carrega – como todos nós – o seu fardo. A diferença é que quando o pousa transforma-o em canções admiráveis.