Enquanto criadores para televisão, Donald Glover e Phoebe Waller-Bridge ascenderam à Liga dos Campeões em 2016. O primeiro com Atlanta, ela com Fleabag. Quase em simultâneo com a segunda e última temporada, Waller-Bridge viu-se envolvida na adaptação para televisão de Killing Eve. O jogo do gato e do rato entre psicopata e detetive transforma-se num sucesso internacional, levou frescura ao mundo geométrico do thriller com espiões e assassinos, uma contracurva que fazia falta na televisão. Acresce que era uma série ambígua, muito bem-humorada — ou só desconfortável e incompreensível para alguns. Uma montanha-russa descontrolada.
Waller-Bridge ficou em altas, quando em 2021 a Amazon confirmou que a adaptação de Mr. & Mrs. Smith para a televisão teria luz verde (depois do sucesso de 2005 do filme com Angelina Jolie e Brad Pitt). Ela foi “naturalmente” convidada. Donald Glover também, os dois assumiriam o controlo criativo da série bem como os papéis dos protagonistas. Algures nesse processo, desentenderam-se e Phoebe saiu.
Convenhamos: não é surpreendente que dois dos criadores mais brilhantes da atualidade se desentendam. Pode-se fantasiar sobre como incrível seria a série se a duple se tivesse mantido, também se pode especular sobre como eventualmente não daria em nada. “Essas coisas acontecem”, diriam muitos e dizemos nós. Glover ficou, trouxe Francesca Sloane para o barco criativo (com quem trabalhou em Atlanta) e Maya Erskine foi contratada para ser a “Mrs. Smith”. Não sabemos o que sairia da colaboração Waller-Bridge/Glover, mas sabemos o resultado de Glover/Sloane: é um encanto.
[o trailer de “Mr. & Mrs. Smith”:]
Em 2005, o filme com Jolie e Pitt despertava curiosidade especial porque o casal Smith do filme era também um casal fora das salas de cinema — na altura uma relação bem recente. Mas na realidade, aquela carga sexual tão popular junto do mainstream (que em tempos vendia revistas e bilhetes) e a especial vontade de ver um “casal real” nas malhas da ficção, juntava mais voyuers do que espectadores. A versão de 2024, além de ser fatiada em capítulos, está totalmente alheada desse labiritno mediático. Interessa a história, protagonizada por um casal em construção.
Eis a premissa da série que se estreia esta sexta-feira, 2 de fevereiro: ele e ela são assassinos que nunca se conheceram e que aceitam um trabalho que paga bem. A missão implica que se comportem como um casal que irá aceitar trabalhos ultrassecretos e que, geralmente, envolvem gente muito rica. Parte desta informação é transmitida ainda antes de vermos os dois juntos. Na abertura, ainda estão noutra vida, a desfrutar de algum descanso numa casa isoladíssima, com a quase certeza de que cada garrafa de vinho que abrem pode muito bem ser a última.
Passamos para Smith & Smith, no momento em que são entrevistados por um computador que lhes faz umas quantas perguntas genéricas e que nos conduzem mais ou menos para o tipo de personagens que iremos encontrar — não precisamos de muito para perceber porque é que combinam tão bem. Daí a estarem a viver num apartamento em Nova Iorque é um instantinho, estamos apresentados à estranheza: dois desconhecidos vivem debaixo do mesmo teto, sem saberem o que quer que seja um do outro e, contudo, espera-se que tenham uma química sem precedentes para aquilo que foram contratados — matar.
O que esta versão de Mr. & Mrs. Smith faz — e muito bem – é potenciar o bom, o mau e os receios e inseguranças de uma relação de uma forma (e seguindo uma fórmula) instantânea, brincando bem com o contexto em que os dois se conheceram e, também, com aquele em que vivem. Ou fazendo uso de um preconceito romântico, aquele que diz que por vez basta existir uma simples coisa em comum — neste caso, o jeito para a matança.
Erskine e Glover têm dinâmica. Com atenção às devidas distâncias — nem todos somos assassinos muito bem pagos —, sente-se como real e terrena a ligação entre ambos. A forma como nada poderá afetar o trabalho seguinte vai de mãos dadas com a certeza de que nem tudo está controlado. Tudo sem lamechice, pelo contrário, a espaços trata-se de um exercício de comédia.
E depois as missões asseguram o resto do encanto. Mais do que a casa, é no trabalho que eles se poderão conhecer melhor, porque interpretarão diferentes personagens para se integrarem nos cenários em que precisam de se infiltrar. Durante esse jogo, conhecem-se a sério. As tarefas a cumprir são um verdadeiro delírio, não se repetem, são fluídas, demenciais e jogam com o imprevisível. Seja nas ruas de Nova Iorque ou numa estância de esqui, até se pode adivinhar para onde a coisa vai, mas nunca se adivinha aquilo que nos fará sentir.
Mr. & Mrs. Smith joga com o fascínio do imprevisível e a resposta imediata. A dupla adapta-se, joga o jogo que tem de ser jogado. Adaptado aos tempos ou não, a verdade é que funciona, é divertido e excitante. E Donald Glover tem um jeito único para quebrar noções de géneros televisivos, fundir o inesperado e transformar a contemporaneidade em entretenimento de qualidade.