Março de 1949. Na República Socialista Soviética da Estónia, Estaline ordenou a deportação de cerca de 20 mil pessoas, consideradas inimigas do regime, para a região russa da Sibéria. Duas dessas dezenas de milhares de pessoas eram a a avó e a mãe da atual primeira-ministra estónia, Kaja Kallas. “A minha mãe foi deportada para a Sibéria quando ela tinha seis meses”, contou a política na sua conta pessoal do X (antigo Twitter).

A história da família Kallas parece ter voltado a repetir-se esta terça-feira, ainda que em moldes diferentes. O Ministério da Administração Interna da Rússia colocou a primeira-ministra da Estónia na lista de mais procurados, juntamente com o secretário de Estado estónio, Taimar Peterkop, e o ministro da Cultura da Lituânia, Simonas Kairys, e ainda outros dirigentes das repúblicas bálticas.

O Kremlin acusa Kaja Kallas de “destruir monumentos de soldados soviéticos”. “Crimes contra a memória dos libertadores do nazismo e fascismo devem ser julgados”, escreveu na sua conta pessoal do Telegram a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Maria Zakharova, que deixou ainda um aviso sem concretizar a que se referia: “Isto é apenas o começo”.

Por sua vez, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que Kaja Kallas e os restantes dirigentes políticos colocados na lista de mais procurados são pessoas “responsáveis por decisões que são essencialmente profanação da memória histórica”. “São pessoas que tomaram ações hostis quer conta a memória histórica, quer contra a Rússia.”

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Estados bálticos protestam contra lista russa de procurados

Desde o início da invasão da Ucrânia, a Estónia tem removido vários monumentos da época soviética. A primeira-ministra do país justificou a decisão, porque o conflito em território ucraniano abriu “feridas na sociedade” e os “monumentos comunistas lembram” essas feridas.

Vários especialistas consideram, não obstante, que a questão dos monumentos não terá sido o que motivou o Kremlin a colocar Kaja Kallas na lista de mais procurados. Conhecida como a “dama de ferro” da Estónia, a política de 46 anos pertencente ao Partido Reformista Estónio — de matriz liberal — é uma das apoiantes mais vocais da Ucrânia.

Na conta do X, Kristi Raik, pertencente ao Centro Internacional da Defesa e Segurança de Tallinn e professora de estudos russos na Universidade de Tartu, recordou que a primeira-ministra tem sido umas principais líderes europeias a incentivar o esforço de guerra da Ucrânia quer na NATO, quer na União Europeia. “Não admira que a Rússia a veja de forma negativa”, afirma a especialista.

Sendo o nome de Kaja Kallas o primeiro de um chefe de um governo da União Europeia a ser colocado na lista de mais procurados, Kristi Raik acredita que a Rússia pode estar a tentar “minar a unidade do Ocidente e o apoio à Ucrânia com ações como estas”. “Contudo, é improvável que possa ter o efeito desejado. Não há dúvidas de que a Estónia e Kaja Kallas vão continuar os seus esforços para apoiar a Ucrânia e incentivar os aliados a fazer mais.”

Além disso, a docente universitária sugere que a Rússia pode querer estar a desafiar a NATO e quer testar se as suas ações “contra os Estados Bálticos podem ter algum sucesso”. “O foco principal [russo] é a Ucrânia, mas o maior inimigo é a NATO. Não é segredo que existe a ambição de restaurar a influência [da Rússia] na Europa Central e de Leste.”

Em reação, a primeira-ministra da Estónia assinalou que a movimentação russa “não era nada surpreendente”, provando que está a fazer a “coisa certa”. “A Rússia não mudou. Ao longo da história, a Rússia ocultou as repressões. Eu sei disso pela história da minha família. Quando a minha avó e a minha mãe foram deportadas para a Sibéria, o KGB emitiu um mandado de prisão em nome delas”, recordou esta terça-feira na sua conta pessoal do X.

“O Kremlin espera agora que esta medida me silencie, a mim e a outros. Mas não o fará”, garante Kaja Kallas, para rematar: “[Farei] o oposto. Continuarei o meu forte apoio à Ucrânia. Continuarei a defender o aumento da defesa da Europa”.