Quando, em 1980, Edward Albee estreou a peça A Senhora de Dubuque, na qual trabalhou mais de 10 anos, levava consigo uma carreira recheada de êxitos que lhe haveriam de garantir a imortalidade nos palcos do mundo e três prémios Pulitzer, entre elas Quem tem Medo de Virgínia Woolf, que no cinema foi protagonizada pelo casa Elizabeth Taylor e Richard Burton, mas também Zoológico de Cristal.
As suas histórias, ácidas e absurdas, fê-las para provocar, sobretudo a alta burguesia americana, rica, culta e de esquerda, obcecadas em mostrar como as emoções mais primitivas acabam sempre por fraturar o verniz social, como a racionalidade é uma forma de pensar que deixa uma grande parte da experiência humana recalcada e impensada que nos momentos de crise explode e destrói tudo em redor. Essas foram as mesmas histórias que fizeram as delicias de uma América à procura de identidade.
Porém, A Senhora de Dubuque interrompeu essa marcha gloriosa de Albee. Estreou-se em Nova Iorque para umas breves 12 récitas antes de se apagar na história e na História. Depois do fracasso e da sensação de ser incompreendido por um público que, acusou, “não quer pensar sobre coisas duras e prefere sempre ter pensamentos seguros”, Albee partiu para Hudson, no Texas, onde iniciou uma carreira como professor universitário, embora nunca tenha deixado de escrever teatro, uma escrita que o levou a criar outra peça mítica, Cabra, ou Quem é Sylvia?, uma história que leva aos píncaros o teatro do Absurdo, iluminando a sua filiação em autores como Ionesco e Beckett.
A peça que agora se estreia no Teatro da Trindade, em Lisboa, só em 2007 seria repescada dos arquivos e estreada no londrino Haymarket, protagonizada pela atriz Maggie Smith. A sua força profética, o entrelaçamento entre realismo e fantasia, entre a factualidade do corpo e a irrealidade do sonho que repugnou o público em 1980, foi a partir de então encarada como um dispositivo dramatúrgico desafiante — os múltiplos significados, as leituras potenciais, as metáforas da América serviam afinal a todo o mundo ocidental.
A obra voltaria a estrear-se em Nova Iorque, em 2012, e agora o encenador e ator Álvaro Correia juntou um elenco encabeçado por Cucha Carvalheiro, Manuela Couto e Fernando Luís para fazer o debute nos palcos portugueses desta estranha senhora que vem de uma terra de ninguém chamada Dubuque, junto à encruzilhada de três estados americanos, uma espécie de sibila, que carrega a sabedoria dos deuses antigos (Albee venerava o teatro grego clássico) que exige decifração e generosidade. E a uma mulher, um casal e um país que estão a morrer ela oferece a sabedoria como libertação para a terrível dor humana, que afinal habita em todas as salas do mundo, onde supostos amigos se reúnem, mais para fugir do que para se divertir.
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“Afinal, quem somo nós?”
Uma das delícias das obras de Albee é, claro, a linguagem, a forma como as frases se equilibram entre o mais perverso sarcasmo, a raiva descontrolada, os insultos diretos ou velados, entre referências culturais sofisticadas, jogos de palavras que, em simultâneo, agridem e imploram por empatia. No primeiro ato desta peça, o casal Jo e Sam recebem quatro amigos que se prestam a ser violentamente maltratados em troca de álcool e alguma pausa no tédio aflito das suas vidas. A cena remete-nos para o casal de Quem tem medo de Virgínia Woolf?, mas aqui há um facto que vai determinar toda a história; Jo (Manuela Couto) está a morrer e o marido Sam (Fernando Luís), um homem fraco — que se perguntará várias vezes, como Édipo, “quem sou eu?” — tenta fingir que não estão a viver um momento trágico, que a morte não se tentacula no corpo de Jo.
Os amigos, também eles, não sabendo lidar com a morte e a doença, fingem uma euforia e uma alegria que, à medida que a noite avança e o grau alcoólico cresce, se vai transformando em ressentimento, agressividade, desespero. A fraqueza dos homens, a força das mulheres forjada no facto de terem que ser mulheres e mães daqueles maridos. Sam, representa a decadência americana, vinda do fracasso da Guerra do Vietname e do escândalo Watergate; Fred, o macho alfa, vagamente psicopata, com a namorada bela e burra, como as atrizes de cinema que preenchem o imaginário americano.
Em todos a mesma falta de empatia, a mesma falta de generosidade, que conduz a situação a uma apoteose de futilidade e absurdo, que só os gritos de dor que saem da garganta de Jo fazem calar. E a sala, desenhada em geometrias modernistas e frias, torna-se claustrofóbica. Ali, ninguém ouve ninguém, por isso, várias vezes as personagens se dirigem ao público, como quem diz “vocês também estão nesta sala, esta história também é a vossa”.
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Álvaro Correia, que já encenou outras peças de Albee, explica que esta peça se tornou com a passagem do tempo “uma profecia”. “Quando, a certa altura uma personagem afirma: um dia virá alguém pior do que Nixon, esse dia é agora. É a América de Trump, é o Brasil de Bolsonaro, é Portugal hoje, com um cenário político que nos obriga a perguntar: afinal quem somos nós?”. Com novas guerras a devastarem o mundo ocidental, com o racismo por resolver, com os direitos cívicos a serem desmantelados, A Senhora de Dubuque desenha-se sobre uma crítica feroz a uma classe burguesa, de esquerda, coberta de verniz civilizacional, mas onde afinal mora a racialização, a identificação entre masculinidade e brutalidade, entre feminismo e ódio às mulheres.
Porém, no segundo ato, Albee, verte sobre o realismo uma forte carga de fantasia, irrealidade e absurdo, com a chegada da senhora de Dubuque e de um homem negro que a acompanha. A sua chegada, que representa também Albee a pôr um pé em questões metafísicas, abstratas, a fazê-las conviver com o real identificado com o factual. Eles convocam o caos e o temor que trazem sempre os que vêm de fora, os estrangeiros, os de pele mais escura. Quem é a senhora de Dubuque, fantasma, mãe, anjo da morte, barqueiro de Caronte? É certo que só Jo, a morrer, parece reconhecê-la e, pela primeira vez consegue desenvolver com ela uma relação empática e redentora.
Albee é um cínico e, tal como a personagem de Jo, acossa as aparências a partir da sua tectónica, espreita para dentro das casas, das famílias, dos casais, com uns olhos de periscópio para expor à luz as feridas que todos aprendemos a esconder em prol do que chamamos “civilidade”, “bons modos”, “boa educação”. Nesta peça, ao usar a morte como desencadeador da ação dramática, o escritor traz outra questão que se agudizou bastante depois da escrita, mas que ela já expõe: a nossa incapacidade individual e social em lidar com a doença e a morte, sobretudo quando a juventude, o corpo saudável, atlético, sem qualquer marca da passagem do tempo, se transforma num fator de exclusão, ainda mais para as mulheres. A morte tornada um tabu social e a doença vista como forma de derrota, nunca foram tão cruas como no século XXI, onde a juventude e a beleza se identificam com sucesso, triunfo, sentido primeiro e último da vida.
Albee, que cuidou do seu amante doente e esteve com ele até à morte, sabia, já em 1980, como era terrível esta viagem que vai da negação à aceitação. Que é a viagem que fazem Sam e Jo. Esta é pois uma peça de teatro dura, mas também uma festa da linguagem e do jogo teatral, levantado por um conjunto de atores e atrizes capazes de tornar tátil a tragicómedia humana. No final, só uma questão paira, como pairava em Ibsen: quem são aqui os que estão mortos e os que estão vivos?
O elenco de “A Senhora de Dubuque” é constituído por Alberto Magassela, Álvaro Correia, Benedita Pereira, Cucha Carvalheiro, Fernando Luís, Manuela Couto, Renato Godinho e Sandra Faleiro. O cenário é de Nuno Carinhas e a peça está em cena entre 29 de fevereiro e 21 de abril. De quarta a sábado às 21 horas e domingos às 16h30. Tem a duração de cerca de uma hora e cinquenta minutos