Amit Soussana disse que não. Quando o guarda a mandou tomar um banho nas primeiras horas da manhã de 24 de outubro, esta refém israelita do ataque de 7 de outubro argumentou que a água estava demasiado fria. Mas Muhammad não aceitou um “não” como resposta. Nem a essa ordem, nem às que se seguiram.

O guarda do Hamas decidiu, então, soltar Soussana e levá-la à cozinha, onde lhe terá mostrado uma panela com água a ferver no fogão. Alguns minutos depois, os dois terão voltado para a casa de banho, tendo a refém acabado por aceitar lavar-se com a água quente.

Pouco depois, a refém lembra-se de ter ouvido gritos junto à porta. “Depressa, Amit, depressa”, disse em entrevista ao New York Times, publicada esta semana, cerca de cinco meses depois de ter sido libertada das mãos do grupo terrorista.

Virei-me e vi-o ali de pé. Com a arma“, recordou, ao jornal. Amit terá agarrado numa toalha para se cobrir, quando o guarda avançou para lhe bater. “‘Amit, Amit, despe-te‘, disse ele. Acabei por despir-me”, referiu.

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A refém, libertada a 30 de novembro, durante uma pausa de tréguas, decidiu quebrar o silêncio sobre os abusos sexuais que terá sofrido às mãos do Hamas. Fê-lo depois da publicação do relatório da ONU que aponta “motivos razoáveis” para acreditar que o grupo cometeu atos de violência sexual contra os cidadãos em cativeiro e que esses abusos “ainda podem estar em curso”.

ONU aponta “motivos razoáveis” para acreditar que Hamas cometeu violações

O New York Times refere que esteve oito horas à conversa com Soussana e com os médicos a quem ela contou os alegados abusos logo imediatamente após ter sido libertada, tendo também avaliado relatórios médicos, vídeos, fotografias e mensagens.

“Sou mau, sou mau. Por favor, não contes a Israel”

A advogada israelita, de 40 anos, recordou o dia em que foi alegadamente atacada pelo guarda que a vigiava, tendo, no entanto, sublinhado que os abusos começaram antes. Foi pouco após ter sido raptada de sua casa, no kibutz de Kfar Azza, que fica a cerca de 24 quilómetros da fronteira com Gaza.

Soussana contou que tinha passado o dia anterior em casa da mãe, situada na cidade de Sderot, a recuperar de uma constipação, e que esta a tinha pressionado a passar lá a noite. Mas acabou por rumar até casa, alegando que tinha de alimentar os três gatos.

Por volta das 9h46 ouviu vários homens armados no exterior da casa, o que a levou a esconder-se no armário do quarto. Minutos depois, escutou “uma grande explosão”. “No segundo a seguir, alguém abriu a porta do armário”, relembrou.

A advogada recordou ainda ter sido “arrastada como um objeto” até Gaza, tendo sido agredida e amarrada com um lençol branco, até chegar finalmente à casa onde passou maior parte do seu tempo em cativeiro. Uma residência que, segundo ela, pertencia ao filho de um elemento do Hamas, que se tinha mudado para outro local para que aquela casa servisse de abrigo aos reféns.

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A refém tinha estado em casa da mãe no dia anterior, que a pressionou a passar lá a noite, tendo esta recusado

Soussana ficou entregue a um guarda, Muhammad, que terá dormido todas as noites fora do quarto onde ela ficava – que seria de uma criança, já que estava revestido de imagens do desenho animado Spongebob Squarepants. No entanto, o guarda entrava regularmente no seu quarto vestido apenas com “roupa interior”. Nestas interações, o homem terá aproveitado para fazer insinuações íntimas, referindo-se a massagens corporais e fazendo perguntas acerca da sua vida sexual e do seu ciclo menstrual.

Vítimas israelitas de alegados crimes sexuais do Hamas devem “quebrar silêncio”

“Perguntava-me diariamente: ‘Já tiveste o período? Já tiveste o período? Quando tiveres o período e ele acabar, vais lavar-te e às tuas roupas”, contou a refém israelita.

A advogada disse que quando o seu período começou, ela estava tão cansada e assustada, que a menstruação durou apenas um dia. No entanto, conseguiu convencê-lo que tinha durado uma semana.

Mas, no dia 24 de outubro, 17 dias após ter sido raptada pelo Hamas, não conseguiu evitar o que já lhe parecia inevitável. Após ter cumprido a ordem de Muhammad e de se ter despedido na casa de banho, ele terá agarrado nela, fazendo com que se sentasse na berma da banheira.

Fechei as penas e resisti. E ele continuou a bater-me e a colocar a arma dele na minha cara. Depois, arrastou-me até ao quarto”, disse a refém libertada. Aí, Soussana terá sido forçada a ter relações sexuais com Muhammad. Depois, o guarda saiu do quarto para se lavar, tendo alegadamente deixado a refém sozinha, nua, na escuridão, até voltar a abrir a porta. “Sou mau, sou mau. Por favor, não contes a Israel”, terá dito Muhammad, algo que Soussana interpretou como um sinal de arrependimento.

Penduraram-na “como uma galinha” e convidaram os outros reféns a assistir às agressões

Nesse dia, o guarda terá voltado ao quarto para lhe oferecer comida, como demonstração do seu arrependimento, tendo esta aceitado, por sentir que não tinha outra escolha. “Não aguentas olhar para ele, mas tens de o fazer. É ele que te está a proteger, é o teu guarda“, recordou Soussana. “Estás ali com ele e sabes que, a qualquer momento, pode acontecer outra vez. Estás completamente dependente dele.”

A última vez que a refém viu o seu alegado abusador foi a 27 de outubro, o dia em que Israel começou a grande incursão em Gaza, levando a que tivesse de mudar de abrigo, devido aos fortes bombardeamentos junto ao local.

Nesse dia, Soussana encontrou outros reféns israelitas – cujos nomes foram mantidos em privado pelo New York Times, de forma a proteger os que ainda se encontram em cativeiro –, mas não foi isso que determinou o fim das agressões da parte das guardas.

A advogada recordou o dia em que foi pendurada “como uma galinha” num pau que se estendia entre dois sofás, tendo os guardas convidado os outros reféns para assistirem ao espancamento a que a submeteram. Alguns dias depois, Soussana foi levada para os túneis, que ficavam a cerca de 40 metros da superfície, onde ficou até ao dia em que ouviu as palavras: “Amit. Israel. Tu. Uma hora”.

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No final de janeiro, a refém fez um discurso em frente à sua antiga casa

Horas após ter sido libertada, juntamente com outros 105 reféns, a advogada falou com a ginecologista israelita Julia Barda e a assistente social Valeria Tsekhovsky, que confirmaram os seus relatos ao New York Times, tendo inclusivamente fornecido a ficha médica com os testemunhos.

“Amit falou imediatamente, fluentemente e em pormenor, não só sobre a sua agressão sexual, mas também sobre as muitas outras provações por que passou”, disse a ginecologista. No dia seguinte, Soussana falou ainda com um médico do Instituto Nacional de Medicina Legal de Israel, de acordo com uma ficha médica a que o jornal teve acesso.

Além disso, a refém libertada procurou aconselhamento médico junto do professora Siegal Sadetzki, da faculdade de medicina de Telavive, que disse que os seus testemunhos são coerentes.

Soussana também falou com a enviada especial da ONU que escreveu o relatório publicado a 4 de março, Pramila Patten, sobre os alegados abusos sexuais ocorridos durante o tempo em que esteve em cativeiro, mas o New York Times não conseguiu ter acesso ao testemunho.

Representante da ONU nega que Guterres tenha silenciado relatório sobre abusos sexuais

Contudo, a representante da ONU referiu que, apesar de ter feito 34 entrevistas, incluindo sobreviventes e testemunhas dos ataques de 7 de outubro, reféns libertados, profissionais de saúde e outros, não conseguiu falar com nenhuma vítima de violência sexual,  “apesar dos esforços concertados para as encorajar a apresentarem-se”, pode ler-se nesse relatório.

O New York Times contactou o Hamas para um esclarecimento sobre a situação, tendo o porta-voz, Basem Naim, dito que o grupo ia investigar as alegações narradas pela antiga refém, mas que neste momento tal seria impossível, “dadas as circunstâncias”.

O porta-voz disse, no entanto, duvidar da versão de Soussana, perguntando por que só agora falou publicamente sobre o que lhe aconteceu. Basem Naim disse ainda que o nível de detalhe “faz com que seja difícil acreditar na história, a menos que tenha sido concebida por alguns agentes de segurança”.

Os relatos de abusos sexuais que têm surgido não visam apenas o Hamas. Em fevereiro, também diversas mulheres palestinianas denunciaram agressões que tinham sofrido da parte dos soldados israelitas, após terem sido detidas. Denúncias que foram consideradas “credíveis” por alguns especialistas da ONU, noticiou na altura o The Independent.