Os “riscos associados a um cenário de maior incerteza na condução da política económica, no quadro de um novo modelo de regras orçamentais europeias“, são uma das principais ameaças para a estabilidade financeira do País, afirma o Banco de Portugal. O supervisor, liderado por Mário Centeno, destaca essa como uma das suas principais preocupações, a par das “tensões geopolíticas” e o “prolongamento da restritividade das condições monetárias“.

A mais recente edição do Relatório de Estabilidade Financeira (REF) foi apresentada esta terça-feira pelo governador do Banco de Portugal, um momento que Mário Centeno aproveitou para comentar as notícias de que o Governo português se prepara para dar uma garantia pública parcial à compra de casa por parte dos mais jovens.

Referindo-se à limitação do endividamento para a compra de casa, reforçada em 2018, Mário Centeno diz que “a recomendação macroprudencial é para ser levada muito a sério, mesmo muito a sério“.

Centeno lembrou que “Portugal teve, no seu passado recente, uma dificuldade de se aproximar das boas práticas em termos macroprudenciais do contexto europeu, e isso esteve muito ligada às dificuldades próprias que o sistema bancário sofreu”.

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Todas as dimensões de sobreendividamento que o país enfrentou, que eram um grande entrave ao crescimento do país, foram sendo vencidas paulatinamente. Hoje temos níveis de endividamento inferiores aos da área do euro, quer para as empresas quer para as famílias”, afirmou Mário Centeno.

Uma vez conquistada uma posição de maior robustez, “não nos parece muito prudente pô-la em causa“, afirmou o governador do Banco de Portugal, repetindo que “todos os critérios que estão na recomendação macroprudencial são para ser levados muito a sério” porque são uma força que impede um regresso ao endividamento excessivo.

A recomendação macroprudencial é para cumprir, é um pilar da estabilidade financeira do país. E o Banco de Portugal, que é o representante de Portugal no contexto europeu, não vai abdicar da recomendação macroprudencial porque achamos que é o melhor sinal que se pode dar a todos os agentes, bancos incluídos”, afirmou Mário Centeno.

O governador do Banco de Portugal acrescentou que “não teve conhecimento do decreto-lei antes de ser aprovado [no conselho de ministros da última semana] mas o trabalho com o Ministério das Finanças é contínuo”.

O trabalho legislativo é complexo, é longo, há várias entidades que estão a ser ouvidas, incluindo o BCE, e nós devemos entender e dar espaço e deixar respirar o processo legislativo, porque ele é essencial para que o país cumpra todos os seus objetivos”, afirmou Mário Centeno.

A vice-governadora Clara Raposo, também presente na apresentação do REF, acrescentou que “os bancos têm a obrigação de fazer sempre uma gestão muito criteriosa do risco das suas carteiras e um acompanhamento dos créditos que concedem”. “Os bancos, além de seguirem as recomendações, têm a obrigação de conhecer bem o cliente e, a partir daí, definir as taxas, os spreads, e ao longo da vida acompanham a qualidade daquele crédito, não é apenas na concessão de crédito”, lembrou.

Relatório de Estabilidade Financeira vê “redução das vulnerabilidades”

O REF é um estudo que avalia semestralmente os riscos para o setor financeiro português, salienta que, “no último semestre, observou-se uma redução das vulnerabilidades, em resultado da melhoria das condições económicas”. Pontos positivos são, também, a “perspetiva” de que “a inflação prossiga a trajetória de redução” e que o “crescimento económico em Portugal se mantenha positivo e superior ao da área do euro”.

Porém, o Banco de Portugal salienta que “o contexto geopolítico de conflitualidade e o novo ciclo político em países relevantes poderão impactar a atividade económica, tal como a persistência de condições monetárias restritivas ou com efeitos mais prolongados do que antecipado”. É provável que o Banco Central Europeu (BCE) faça uma primeira redução das taxas de juro na próxima semana, mas o caminho daí para a frente deverá ser de uma redução muito gradual, indicou na segunda-feira o economista-chefe do BCE.

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O supervisor liderado por Mário Centeno acrescenta, além disto, que “no plano nacional destacam-se ainda os riscos associados a um cenário de maior incerteza na condução da política económica, no quadro de um novo modelo de regras orçamentais europeias, que colocarão novos desafios à condução da política orçamental“.

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No relatório divulgado esta terça-feira, o Banco de Portugal diz que “os riscos associados à situação financeira das administrações públicas têm diminuído com a trajetória de descida do rácio da dívida pública, refletindo-se na melhoria do rating da República”. Porém, “a dívida ainda elevada expõe os diversos setores à persistência de taxas de juro altas e à volatilidade nos mercados financeiros internacionais”.

“Reduções discricionárias de imposto contam como aumento da despesa”

Na conferência de imprensa, esta terça-feira, Mário Centeno voltou a lembrar que “vivemos 80% dos dias do século XXI, até 2017, em procedimento por défice excessivo”. Por isso, o País “aprendeu a conviver com as restrições que isso colocou na nossa dinâmica económica e financeira”.

Com a entrada em vigor das novas regras orçamentais, estas vão passar a estar “mais focadas na despesa, na componente cíclica e nos investimentos financiados com fundos europeus”. Para um país como Portugal, que ainda tem uma dívida superior à fasquia de 60% do PIB, vai haver limites ao crescimento da despesa – e “há um risco de procedimento por dívida excessiva se existir um incumprimento desses limites na despesa”.

“Os desvios num ano têm de ser compensados com desvios contrários no ano seguinte”, acrescentou Mário Centeno, notando que “a dinâmica da despesa tem um teto e reduções discricionárias de imposto contam como aumento da despesa“.

Mário Centeno terminou a conferência de imprensa citando Ernest Hemingway, que dizia em referência às dívidas que os problemas geralmente começam devagar e, depois, depressa. “Vamos estar ainda sob aperto financeiro durante algum tempo”, afirmou Mário Centeno, recusando-se a comentar medidas concretas tomadas pelo novo Governo, na frente orçamental.

Estas preocupações já tinham sido referidas por Mário Centeno na apresentação do último Boletim Económico, em março. Neste relatório de estabilidade financeira, o Banco de Portugal acrescenta, a este respeito, que este efeito relacionado com a “dívida elevada” é “mitigado pelo papel estabilizador do BCE”.

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Riscos no endividamento das famílias menos graves devido às limitações no crédito

O Relatório de Estabilidade Financeira nota que as famílias continuaram a reduzir o rácio de endividamento, “seguindo a tendência observada desde 2010”. “A melhoria do perfil de risco do crédito a particulares tem beneficiado da recomendação macroprudencial introduzida em 2018, que contempla limites à taxa de esforço como um dos critérios de aprovação de novos créditos”, diz o Banco de Portugal, em referências às limitações que o Governo irá, em breve, “contornar” com a garantia pública dada aos jovens até 35 anos.

Num quadro de subida das taxas de juro, a contenção do incumprimento dos particulares beneficiou ainda da robustez do mercado de trabalho e do aumento do rendimento disponível real”, salienta o Banco de Portugal.

Nas empresas, também se continuou “a melhorar a autonomia financeira e a reduzir o endividamento”, diz o Banco de Portugal, notando que “a rendibilidade das empresas resistiu ao aumento do serviço da dívida”.

No último ano, não se observou uma subida material das insolvências, e a qualidade do crédito concedido a empresas não tem apresentado deterioração. Em todo o caso, o efeito acumulado da manutenção de taxas de juro elevadas na atividade económica e nos custos de financiamento, em conjunto com eventuais subidas dos custos de produção e perturbações nas cadeias de abastecimento, poderão potenciar a materialização de risco de crédito, em particular nas empresas mais vulneráveis”, diz o Banco de Portugal.

Tal como tem acontecido nas anteriores edições deste relatório de estabilidade financeira, o Banco de Portugal aponta para outro risco: “um cenário de prolongamento da restritividade de política monetária e de agravamento das condições económicas poderá também originar uma redução dos preços no mercado imobiliário, por via do seu impacto sobre a procura”.

Neste ponto, porém, o Banco de Portugal diz que, caso se confirme essa redução dos preços, “os efeitos sobre o sistema bancário nacional deverão ser contidos” – em parte devido à tal medida macroprudencial que foi lançada em 2018 e que fez com que “a percentagem da carteira de crédito à habitação dos bancos que tem rácios loan-to-value (LTV) elevados é reduzida, o que diminui o impacto de uma potencial descida dos preços deste mercado”.

O Banco de Portugal conclui, de um modo geral, que “caso se materializem condições adversas, nomeadamente na atividade económica, com implicações sobre o desemprego, poderemos assistir a uma deterioração da qualidade de crédito, incluindo nos rácios de incumprimento no crédito”. “Ainda que o rácio total de non-performing loans (NPL) tenha continuado a diminuir em 2023, verificou-se um aumento de empréstimos com deterioração do risco de crédito (stage 2), em particular no crédito à habitação, maioritariamente a taxa variável”, diz o supervisor, acrescentando que isso “reflete um aumento do risco de crédito associado ao maior peso do serviço da dívida no rendimento das famílias mais vulneráveis”.