Num debate sobre o reconhecimento do Estado da Palestina marcado por iniciativa do Livre — cuja líder parlamentar acabou por falar em lágrimas — o Governo justificou a decisão de não dar já esse passo, explicando a posição diplomática portuguesa, que considera “de mediação” e mais “útil” do que o “mero” reconhecimento imediato da Palestina. O assunto dividiu o Parlamento, com a esquerda a defender que se avance já e o tom a azedar entre PS e PSD.

Pelo Governo, coube ao Ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, explicar a posição portuguesa, depois de ter sido desafiado pelo Livre a preparar-se para poder concretizar o reconhecimento da Palestina “de um dia para o outro” e a ter um guião já pronto nesse sentido. Assegurando que Portugal está a “lutar pela solução do reconhecimento dos dois Estados”, Pedro Duarte assegurou que a aposta por um debate “alargado e equilibrado que permita preservar o consenso“, com Portugal a colocar-se como mediador, é mais “útil e eficaz” do que o reconhecimento tout court da Palestina enquanto Estado independente.

A prova de que a posição portuguesa faz sentido, argumentou o governante, é que é “apreciada” pela própria Autoridade Palestiniana e por países árabes, tendo também já ajudado a influenciar outros estados no sentido de passarem a ter uma posição favorável quanto ao reconhecimento da Palestina. E acrescentou que Portugal assinou uma carta, que será discutida a nível europeu a 24 de junho, que prevê que a Autoridade Palestiniana se prepare logisticamente para controlar a Faixa de Gaza depois do conflito — durante o debate, foram vários os partidos que pediram que se dê mais força à Autoridade Palestiniana para que possa assumir o controlo da Faixa de Gaza, reduzindo ou eliminando a influência do Hamas.

O Governo garantiu ainda assim que não considera que seja necessário chegar à paz no terreno ou cumprir todos os procedimentos jurídicos necessários para reconhecer a Palestina (o Bloco de Esquerda usaria o exemplo da Ucrânia, admitida como candidata a estado-membro da UE apesar de estar em guerra e ainda não cumprir os critérios exigidos, para pedir que não sejam usados “dois pesos e duas medidas”). E admitiu que o cessar-fogo pode ser defendido sem que esteja necessariamente ligado à libertação de todos os reféns, lembrando que Portugal já reconheceu a Palestina como membro de pleno direito da ONU. Ainda assim, para já, a posição portuguesa mantém-se: “não há dúvidas” de que o “caminho” a percorrer vai acabar com o reconhecimento de ambos os estados, mas neste momento é preciso dar outros passos “do ponto de vista diplomático”.

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A posição do PSD foi questionada pelo PS, que defende agora que o reconhecimento do Estado da Palestina seja feito de forma imediata, tendo em conta a “evolução” do conflito em Gaza e o “consenso” que se tem gerado nas últimas semanas a nível internacional. À líder parlamentar, Alexandra Leitão, coube defender que “a indiferença” face à situação “é criminosa” e que o Governo e a UE devem agir de forma “decidida”, em vez de esperarem por uma unanimidade que adiará “para sempre” a solução. O reconhecimento da Palestina será “um passo na direção certa que Portugal deve dar”, argumentou.

Mas a posição socialista foi mal recebida pelo Executivo: Pedro Duarte disparou ataques contra o PS por não ter feito esse reconhecimento quando estava no Governo, acusando os socialistas de fazerem um “flic-flac à retaguarda” — “uma ferida na credibilidade do PS” –, de não terem “convicções, mas conveniências” e de quererem ser um “governo de bancada”, que só quer agir quando está na oposição. Do CDS ouviram-se acusações semelhantes, com Paulo Núncio a atirar que o PS “fez bola” sobre a Palestina enquanto podia e a rematar: “Tenha vergonha”.

Acusações de “extremismo” e “sonsice”

Ainda à direita, a Iniciativa Liberal foi defendendo que este não será o momento certo para o reconhecimento da Palestina, classificando como “contraproducente” a mesma atitude tomada por Espanha (porque não houve entretanto negociações para libertar mais reféns). O deputado Rodrigo Saraiva defendeu esforços diplomáticos no sentido de chegar à paz e também de reforçar a Autoridade Palestiniana, para garantir que haverá uma “autoridade credível” encarregue de governar a Palestina quando for independente.

Mas boa parte das intervenções dos liberais centraram-se também em atacar o Livre, citando um “tempo de antena” em que o partido de Rui Tavares defendia uma Palestina “livre do rio até ao mar” — uma expressão que pode ser interpretada como um apelo à extinção de Israel. Rodrigo Saraiva atirou, por isso, acusações de “extremismo” e “sonsice” contra Rui Tavares, que se foi defendendo da “pergunta rasteirinha” com a lembrança de que o Livre foi o primeiro partido a condenar os ataques do Hamas no Parlamento português.

O Chega foi o partido que mais desvalorizou o debate, com o líder parlamentar, Pedro Pinto, a garantir que o tema não interesse aos portugueses. “Realmente, para os portugueses que não conseguem pagar as rendas ou faturas a preocupação é o Estado da Palestina”, ironizou. “Por amor de Deus. O Livre tem zero, bola, para apresentar”. Quanto à posição do Chega, foi no sentido de defender que “a meio de uma guerra” não é o momento para reconhecer um novo estado; de argumentar, pela voz de Diogo Pacheco Amorim, que é preciso garantir que a Palestina não fica entregue a outro “bando de assassinos”; e de acusar a esquerda de “patrocinar manifestações antissemitas”.

Esquerda quer reconhecimento. PCP acusou Governo de “cumplicidade” com Israel

Mais à esquerda, os partidos não tiveram dúvidas em defender o reconhecimento imediato da Palestina. Pelo Bloco de Esquerda, Marisa Matias argumentou que este ato não acaba diretamente com o conflito, mas que não o fazer também tem consequências “reais, graves e sérias” e “de certa forma alimenta, indiretamente” a ofensiva israelita por não der esse sinal político importante para a Palestina, permitindo que “a matança continue”.

E o PCP chegou mesmo a acusar o Governo português de “cumplicidade” com as posições de Israel, questionando: “De que está à espera Portugal para dar um contributo decisivo para que se cumpram as resoluções da ONU?”. A líder parlamentar comunista lembrou que quase metade dos países da UE já reconheceram a Palestina — “é uma decisão soberana, que não depende de ninguém. O Governo não o faz por opção política” — e ouviu de volta a resposta de Pedro Duarte, que acusou o PCP de ter alinhado historicamente com “regimes sanguinários”.

No PAN, Inês Sousa Real classificou a ideia da importante mediação portuguesa como “ingénua” e frisou que o reconhecimento do estado não seria apenas “simbólico” num momento em que acontece um “genocídio”. No final, Jorge Pinto, do Livre, ainda atirou ao Governo uma pergunta que ficou sem resposta — queria saber se o Executivo cumpriria, se se colocasse esse cenário, o pedido de detenção do Tribunal Penal Internacional para membros do Governo israelita.

A líder parlamentar do partido, Isabel Mendes Lopes, acabou por fechar o debate em lágrimas, enquanto falava do “trauma” que levará “gerações para ser ultrapassado”: “Não sei como é que se reconstrói um país depois desta destruição”. Enquanto chorava, ainda argumentou a custo sobre a necessidade de Israel participar financeiramente na reconstruição de Gaza, e acabou por ser aplaudida pelos restantes partidos de esquerda (no caso do Bloco, um aplauso de pé).