Há uns dias pedi ao meu filho de 2 anos que me olhasse nos olhos. Quando finalmente garanti que tinha a sua atenção, perguntei: “plata o plomo?”. Fiquei perplexo com a reacção: uma sonora gargalhada, só ao alcance de quem não compreende o significado desta pergunta celebrizada em Narcos, série produzida pela Netflix que conta a história do traficante Pablo Escobar. Plata o plomo, prata ou chumbo, aceitas o suborno ou preferes ser enterrado? A minha reacção à gargalhada do meu filho foi, adivinharam, uma sonora gargalhada.

Nem de propósito. Pablo Escobar é uma das figuras mais queridas do rap norte-americano, um homem astuto e ferozmente ambicioso cuja existência aterrorizou milhões e matou milhares. Não foi esse o objectivo, mas é por personagens reais como Pablo que, hoje, criaturas de sofá que nem eu se dão ao luxo de fazer uma espécie de equilibrismo moral em frente à TV, umas vezes torcendo por Pablo y su familia (os maus), outras celebrando as vitórias fugazes do exército colombiano (os bons).

Ó homem, desembucha.

Desculpem. A história real de Pablo Escobar serve como ponto de partida porque inspirou muitas outras, reais ou imaginadas, contadas por rappers norte-americanos. Duvidam? Uma pesquisa pelo termo “pablo” no site genius.com — comunidade de recolha e interpretação de letras, especializada no rap — devolve 7903 resultados. É verdade que encontramos um ou outro Picasso, até o ocasional Neruda, mas a maioria é uma referência, perdão, é reverência a Pablo Escobar.

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E porquê? Para resumir uma história muito longa, porque as condições sócio-económicas das comunidades afro-americanas produziram, de facto, alguns desvios à lei, mas acima de tudo foram e são berço de gente genial, boa parte versada sobre beats, cuja narrativa se construiu em torno de um dos mais interessantes relativismos morais do século XX. Tupac é um dos nomes maiores deste movimento musical, literário, artístico e político, senão mesmo o maior. A sua vida, interrompida há 20 anos por uma bala aos 25 anos, teve de tudo: miséria, tragédia, descoberta, sucesso, fortuna, aclamação, crime, punição, mais sucesso, mais fortuna, mais aclamação, e, finalmente, tragédia. Bem contada, a história dará (finalmente) um belo filme (chama-se “All Eyez On Me”: façam figas, tem sido um parto difícil).

[o trailer de “All Eyez on Me”, que estreia em Novembro]

A obra — que, além da música, inclui filmes e poesia — persiste duas décadas depois, com méritos intactos. Não a ouvem na rádio? Experimentem o youtube e o spotify, onde soma centenas de milhões de audições apesar de ter morrido há 7300 dias, ou as tabelas da Billboard em que continua a ter alguns dos discos rap mais vendidos de sempreMe Against The World (1995), All Eyez On Me (1996), The Don Killuminati (1996), Greatest Hits (1998). Fica mal dizer que os rumores da sua morte foram manifestamente exagerados, mas agora já está. A verdade é que nunca mais ninguém o esqueceu.

(…)

I played the cards I was given, thank God I’m still livin’
Pack my nine til it’s time to go to prison
As I’m bailin’ down the block that I come from, still gotta pack a gun
Case some young motherfuckers wanna play dumb
I guess I live life forever jugglin’

But I’ll be hustlin’ ’til the early mornin’ cause I’m strugglin’

[de “Definition of a Thug Nigga”]

(…)

A ciência diz-nos que ninguém nasce Thug Nigga, mas Tupac terá andado lá perto. Cresceu sem pai à vista, conviveu desde cedo com um padrasto que chegou a constar da lista de mais procurados do FBI, e, ao longo de todo o seu tempo de vida, foi educado por uma mãe Black Panther que se defendera a si própria em tribunal de acusações de terrorismo, aguardou pelo seu julgamento na prisão — grávida de Tupac — e ainda passou pela toxicodependência. Esta é a mulher a quem mais tarde o filho dedicaria “Dear Mama”, canção-hino das mães afro-americanas e uma das melhores deste menino da mamã. Preparem-se para sentir vergonha daqueles postais que escrevem no dia da mãe.

When things went wrong we’d blame Mama
I reminisce on the stress I caused, it was hell
Huggin’ on my mama from a jail cell
And who’d think in elementary, hey
I’d see the penitentiary one day?

And running from the police, that’s right
Mama catch me, put a whoopin’ to my backside
And even as a crack fiend, Mama

You always was a black queen, Mama

[de “Dear Mama”]

tupac

Tupac Amaru Shakur nasceu em Nova Iorque em 1971. Morreu em Las Vegas, a 13 de Setembro de 1996

Tal mãe, tal filho. A dualidade que Tupac homenageou — a da mãe que faz de pai, a da mãe que não acerta sem errar — tornar-se-ia, no fundo, a sua própria história. A entrada na Baltimore School for the Arts, conseguida pela mãe em final de 80s, foi um prenúncio: aí estudou dramaturgia e dança, apaixonou-se por Shakespeare e descobriu que queria ser rapper. Não encontram esta combinação de factores em mais nenhum rapper daquele tempo. E por isso mesmo nada mais seria igual.

But I’ll be hustlin’ ’til the early mornin’ cause I’m strugglin’
Like drinkin’ liquor make the money come quicker
Gettin’ pages from my bitch it’s time to dick her
I ain’t in love with her, I just wanna be the one to hit her
Drop off and let the next nigga get her

That’s the way it goes, it’s time to shake a ho, make the dough
Break a ho when it’s time to make some mo’

[“Definition of a Thug Nigga”]

Tupac começa por discorrer sobre como é nascer obrigado a fazer omeletes sem ovos, para no final se debater acerca dos meios mais ou menos discutíveis que possibilitaram a sua acumulação de riqueza, com um discurso que soa misógino (e também é) mas que ouvidos mais atentos remeterão para o tema central da sua história: hustlin’, que é como quem diz, fazer pela vida e ser bom nisso.

Ninguém disse que ser Thug Nigga era para todos, meus amigos. Mas muitos dos versos mais criticáveis de Tupac, em especial aqueles que envolvem mulheres, encaixam numa narrativa maior da qual é aliás um dos principais mentores: quem nasce no ghetto e finta a adversidade também tem direito a celebrar um pouco, muitas vezes de forma excessiva. Não o lixem. Queria ver se fossem vocês. Carpe diem, demonstrariam os poemas em “The Rose That Grew From Concrete”, livro de poemas escritos entre 1989 e 1991, publicado 3 anos após a sua morte.

[“Hit ‘Em Up”]

2Pac vs. The Notorious B.I.G. (ou Biggie). East Coast vs. West Coast. Bad Boy vs. Death Row. Já não se fazem rivalidades assim. Não é que as de hoje não sejam divertidas, mas ver Meek Mill publicar algo na internet ao primeiro espirro de Drake é uma versão higiénica do que aconteceu há 20 anos. Isso e as rivalidades são hoje menos assentes nas geografias/editoras e mais nos egos ou nas senhoras que este ou aquele cortejou. Nos anos 90 shit got real, o que é trágico porque nos levou gente como a que estamos aqui a homenagear, mas, escrito direito por linhas tortas, também nos deu rappers de um lado e outro dos EUA que continuam a moldar o género.

Na costa este: Wu-Tang Clan e suas múltiplas ramificações individuais, Nas, Mobb Deep, Jay-Z ou Notorious B.I.G.; a costa oeste deu-nos Dr. Dre, NWA, Snoop Dogg e Tupac. Bom, em apenas 6 meses levaram-nos os dois melhores escritores e intérpretes de versos desta geração inteira. Tupac morreu em Setembro de 1996, Biggie em Março do ano seguinte. Mas estes não nos deixaram sem antes assistirmos a algumas diss tracks (malhas rap destinadas a causar danos reputacionais a um adversário) memoráveis. “Hit ‘Em Up”, single de All Eyez On Me (Junho de 1996, três meses antes da morte de Tupac), é uma das melhores e mais importantes, toda ela ginga ameaçadora e humor mordaz, num beat saído do cânone-anos-90 da costa ocidental. Diz assim:

(…)

First off, fuck your bitch and the clique you claim
Westside when we ride, come equipped with game
You claim to be a player, but I fucked your wife
We bust on Bad Boys, niggas fucked for life

A coisa segue por ali fora, com Tupac a apontar a todos os alvos da Bad Boy, muito em especial ao seu ex-amigão Christopher Wallace (Biggie), a quem chegou a emprestar o sofá em noites menos opulentas deste:

(…)

Thug livin’, out of prison, pistols in the air
Biggie, remember when I used to let you sleep on the couch
And beg a bitch to let you sleep in the house?
Now it’s all about Versace, you copied my style
Five shots couldn’t drop me, I took it and smiled
Now I’m back to set the record straight
With my AK, I’m still the thug that you love to hate
Motherfucker, I’ll hit ’em up

A malha é uma resposta a “Who Shot Ya”, editada em 1995 por Biggie, e o maior elogio que posso fazer é dizer-vos que enfiou Biggie num chinelo e ainda hoje se encontra no panteão das diss tracks. E olhem que o Biggie era anafado. Este é um dos alicerces para explicar a realidade e o mito de Tupac: poucos rappers terão desenvolvido uma escrita tão ferozmente adversarial como ele, em especial durante os últimos 5 anos de vida. Biggie foi importante para este esquema mental, sem dúvida, mas era apenas um dos adversários.

All Eyez On Me

Quando All Eyez On Me é dada a conhecer ao mundo (1996), Tupac já era uma estrela à escala planetária, com uma história cheia de mácula, contradição, controvérsia, alguns filmes e grandes malhas. Ou seja, uma tonelada de street cred. Só para se ter uma ideia: se Tupac se registasse hoje num LinkedIn do rap, um dos seus principais “achievements” no início dos anos 90 seria ter disparado sobre polícias e ter tido a indecência de antes escrever sobre isso no álbum 2pacalypse Now (não é um nome brilhante, não): “Drop them or let them drop you? / I choose droppin’ the cop”. Dan Quayle, vice-presidente de Bill Clinton, chegou a pedir às lojas de discos que deixassem de vender os álbuns de Tupac. Boa sorte com isso.

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A capa de “All Eyez On Me”, de 1996

Só para esclarecer: não estou a tentar glorificar um tipo que dispara sobre polícias. Mas os seus 25 anos de vida, mais os 20 que se seguiram, obrigam a admirar a sua complexidade e até o humor da situação, para quem o conseguir encontrar. Não conseguem? Eu explico-vos com a ajuda de 43 segundos de um episódio de “Boondocks”, magnífica adaptação televisiva da história de banda desenhada homónima criada por Aaron McGruder, um retrato da cultura afro-americana com uma auto-ironia quase nunca vista, antes ou depois (a sério, é assim tão bom). O excerto chama-se “Rappers snitch on themselves” e é um apontamento delicioso sobre a máxima “no snitchin’” — “ninguém se chiba” não soa tão bem — que ao longo do tempo tem oposto, mais do que heróis a vilões, os afro-americanos à autoridade, sendo essa, muito provavelmente, uma das razões por que, à hora em que escrevo isto, ainda não sabemos quem disparou sobre Tupac ou Notorious B.I.G. — no snitchin’.

É especialmente trágico que esta cultura, alimentada a segregação racial, culmine hoje numa antítese tecnológica do no snitchin’ que, aliás, está na origem do movimento Black Lives Matter. Todas as semanas — literalmente — tropeçamos em vídeos de afro-americanos a serem alvejados por agentes de autoridade e nada ou quase nada acontece. Toda a gente se chiba — partilham e fazem like — mas as consequências são ténues. Este é um daqueles momentos que para mim, e certamente para muitos dos seus fãs, justifica dizer algo tão simples como “quem me dera que o Tupac hoje fosse vivo”. Hologramas à parte, se ouvirem “Life Goes On”, até parece que continua cá:

How many brothers fell victim to the streets?
Rest in peace, young nigga, there’s a Heaven for a G
Be a lie If I told you that I never thought of death
My niggas, we the last ones left, but life goes on

Enquanto foi vivo, parecia que falava mais de si que dos outros, sempre celebratório de uma vida que o escolheu, sempre à espera do pior. O Elvis Presley do ghetto, avistado milhares de vezes desde a certidão de óbito, o profeta que há anos narrava o seu final iminente, o poeta:

The game sharper than a motherfuckin razor blade
Say money bring bitches, bitches bring lies
One nigga’s gettin jealous, and motherfuckers die
Depend on me like the first and fifteenth
They might hold me for a second, but these punks won’t get me
We got four niggas, in low riders, and ski masks
Screamin’ THUG LIFE every time they pass – all eyes on me

The feds is watchin’, niggas plottin’ to get me
Will I survive, will I die, come on let’s picture the possibility
Givin’ me charges, lawyers makin’ a grip
I told the judge I was raised wrong, and that’s why I blaze shit
Was hyper as a kid, cold as a teenager
On my mobile callin’ big shots on the scene major
Packin’ hundreds in my drawers; fuck the law
Bitches I fuck with a passion, I’m livin’ rough and raw
Catchin’ cases at a fast rate, ballin’ in the fast lane

E eu acrescento: “it’s better to burn out than to fade away”. Tupac sempre pareceu saber isso. Parecia ter pressa em fazer história. Nem sempre do lado certo, porque no mundo de vaga moral em que cresceu, esse lado não existe. Estas histórias viveram, tanto quanto possível, à margem da lei e de postulados morais demasiado seguros de si. O mundo inteiro tentou acompanhar e pareceu compreender. Não existe hoje um rapper tecnicamente evoluído e literato que não liste Tupac como uma das suas principais influências. Um dos que melhor emulou o seu flow, Freddie Gibbs, rapper de top 5 da actualidade, diz que fica lisonjeado mas que não tenta imitar ninguém, que jamais haverá outro Tupac. É verdade. Porque nunca foi só música.

Quando Tupac nos diz, em “Letter To My Unborn Child”, espécie de Carta-a-um-jovem-thug-nigga:

Seems so complicated to escape fate
And you can never understand till we trade places
Tell the world I feel guilty for being anxious
Ain’t no way in hell that I could ever be a rapist
It’s hard to face this cold world on a good day
When will they let the little kids in the hood play?
I got shot five times, but I’m still breathin’
Living proof there’s a God if you need a reason
Can I believe in my own fate?
Will I raise my kids in the right or the wrong way?
Dear Mama, I’m a man now
I wanna make it on my own, not a handout
Make way for a whirlwind prophesized
I wanna go in peace when I got to die
On these cold streets, ain’t no love, no mercy and no friends
In case you never see my face again, to my unborn child

Isto não é simplesmente registo biográfico.

É a curtíssima epopeia de um rapper nascido, criado e morto nas ruas, contada a um filho — dele e das ruas — que nunca chegou a ter. Como há umas semanas dizia Frank Ocean a propósito de Trayvon Martin em “Nikes”, “that nigga look just like me” e é mesmo isso que muitos ouvintes anónimos apresentados a Tupac nas últimas décadas terão sentido. Viveu como um poeta, morreu como um gangsta. E vice-versa.

Vale a pena recordar o título do New York Times que noticia a sua morte: “Tupac Shakur, 25, Rap Performer Who Personified Violence, Dies”. 20 anos depois, é justo afirmar que não foi bem assim.

Vasco Mendonça é publicitário e co-CEO da associação recreativa Um Azar do Kralj