Têm quase 15 anos de diferenças que não ficam por esta distância de idades. Até porque essa é mesmo a diferença menos relevante entre Domingos Abrantes, o histórico dirigente comunista, e Adriano Moreira, o fundador do CDS. Mas estamos a começar pelo fim da vida da história política. Antes disso, antes da democracia, é que estão as diferenças de relevo. Mas comecemos por uma semelhança, só para baralhar. Ambos tiverem episódios de prisão política. Para um foi passageiro, para o outro não. E esta semelhança só está aqui mesmo para enganar, porque é só um pormenor no muito que os separa.

Em 1959, Domingos Abrantes foi preso em Caxias, considerado subversivo pelo regime de António Oliveira Salazar, o mesmo presidente do Conselho que nesse ano fizera entrar no Governo o jovem Adriano Moreira. Dois anos depois, o comunista fugia da prisão, e o subsecretário de Estado era promovido a ministro do Ultramar, aquele que assinou a reabertura do campo do Tarrafal. Mais quatro anos, 1965, Domingos volta a ser preso, quando Adriano já tinha saído do governo. Em 1976, já depois da Revolução de abril, o comunista entra no Parlamento como deputado e quatro anos depois vê entrar Adriano Moreira, fundador do CDS. Sairiam da Assembleia da República no mesmo ano, 1995, e este ano voltam a encontrar-se, mesmo sem nunca se terem conhecido, no Conselho de Estado.

Domingos Abrantes, o preso político que lutou contra o regime

Já estava no Parlamento quando lá entrou Adriano Moreira, que se habituou a ver bem lá no outro lado da barricada. Assim se mantiveram, quando se cruzaram na Assembleia da República. Domingos Abrantes, que era da bancada do PCP, hoje não se recorda de alguma vez ter trocado “uma única palavra” com Adriano Moreira, da bancada do CDS. Mas lembra-se bem que foi preso pela PIDE, era Adriano Moreira Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina de António Oliveira Salazar.

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Primeira prisão de Domingos Abrantes, pela PIDE

Fotografia tirada pela PIDE, na primeira prisão de Domingos Abrantes, em 1959. Fugiria da cadeia de Caxias em 1961. DR

Foi em pleno verão de 1959, que Domingos Abrantes foi preso pelo regime, classificado como subversivo. Era do PCP desde 1954 e vivia na clandestinidade. “Passei 11 anos na cadeia”. Foi o próprio que o recordou, com natural peso, numa recente entrevista ao Observador. Na mesma em que fala desta ironia de, toda uma vida depois (55 anos), estar sentado à mesma mesa de 19 conselheiros de Estado em que vai estar também sentado Adriano Moreira.

“Interessa naturalmente salientar os paralelos: eu estava preso quando ele era ministro. E não venham agora com reciclagens, porque ele era ministro de um governo fascista e isso é uma coisa incontornável. É um facto que tínhamos estatutos diferentes. Eu fui perseguido por um governo do qual ele era ministro. Isso não é pouco”. Para Domingos Abrantes as marcas estão muito presentes. A sua mulher, Conceição Matos, também esteve nas celas do regime. Foram alvo de maus tratos, de tortura – “Fui torturado por uma polícia que era dependente do governo a que ele pertencia”. Juntaram-se dois anos depois da célebre fuga da cadeia de Caxias, em que Domingos também se evadiu, voltando a ser preso, ao mesmo tempo que Conceição, em 1965. Casaram no forte de Peniche, onde Domingos estava preso, contaram ambos numa entrevista ao jornal Público. Fizeram-no para que Conceição pudesse visitar Domingos na cadeia de onde só sairia em 1973.

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O comunista quando foi preso pela segunda vez, em 1965. Ficou em Peniche até 73. DR

Três anos depois, o comunista entrava no Parlamento como deputado pelo PCP. Olhava para o outro lado do plenário e, bem no seu campo de visão, tinha Adriano Moreira. A bancada do CDS era (ainda é) em frente à do PCP, no extremo oposto do hemiciclo. Conviveram, sem nunca se conhecerem, durante 15 anos (entre 1980 e 1995). Domingos nunca tinha pensado que tal pudesse acontecer e, apesar de reconhecer que Adriano Moreira é um “pensador”, com “trabalho próprio de investigação na área da política internacional”, que no “Portugal de abril” foi “deputado, dirigente de um partido político”, que “tem atividade institucional desde o 25 de abril”, também diz que agora que ambos chegam ao Conselho de Estado “o problema é saber se ele tem capacidade de compreender e tirar as ilações da diferença”.

Mas também diz que o ex-ministro de Salazar “procura que não se fale do passado”. E, de novo, repisa num episódio dos outros tempos: “Ele tomou algumas medidas de enorme gravidade, uma delas foi a assinatura – ele era ministro, podia ter-se recusado – da reabertura do campo do Tarrafal, que era a mais sinistra cadeia fascista”.

Domingos Abrantes votação no parlamento

Domingos Abrantes numa votação no parlamento, em 1987. DR

Não que tema que o regime dê a volta, mas Domingos Abrantes não deixa de falar de sinais. “Além do milagre de Fátima, outro enorme milagre foi que a seguir ao 25 de abril, desapareceram os fascistas. Havia milhares, na União Nacional, na polícia, governadores civis. Repentinamente eram todos democratas e isso tem custos, porque os fascistas não desapareceram”. Os custos são, de acordo com o comunista, “o reavivar de certas tendências antidemocráticas”. “O fascismo não é um problema de conjuntura, não é um problema do passado. O fascismo está sempre latente e torna-se um perigo quando as classes dominantes não conseguem resolver por meios democráticos a imposição das suas formas de exploração”. Está bem claro que as cicatrizes do Domingos-o-preso-político estão longe de se esbaterem.

Domingos Abrantes na primeira vez que foi preso

Fotografia da PIDE, também de 1959. DR

Para o lugar que agora assume, de conselheiro de Estado, o comunista leva a defesa do “reforço da democracia portuguesa, pelo interesse do povo” e também da Constituição. Nunca imaginou que pudesse vir a estar nesta posição. Muito menos quando estava nos calabouços do regime.

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Adriano Moreira, o ministro do Ultramar que fundou um partido em democracia

Professor, académico, ministro de Salazar durante a ditadura, líder do CDS e vice-presidente da Assembleia da República em democracia, Adriano Moreira vai assumir agora um cargo que Freitas do Amaral, no livro “Ao correr da memória”, dizia que já devia, “obviamente”, ter ocupado há muito tempo – caso não fosse uma lugar “tão partidarizado”. Sobre as novas funções como conselheiro de Estado, Adriano Moreira, em declarações ao Observador, preferiu não se alongar. “A agenda é do chefe de Estado”, afirmou, embora aponte que Marcelo Rebelo de Sousa já deu uma indicação importante ao afirmar que pretende reunir o Conselho de Estado com regularidade.

Sempre que o Presidente entenda convocar oeste órgão, Adriano Moreira vai sentar-se à mesa com Domingos Abrantes, militante do PCP e histórico companheiro de Cunhal. Apesar de Domingos Abrantes ter fugido de Caxias quando Adriano Moreira era ministro do Ultramar e de se terem cruzado no Parlamento, o professor catedrático afirma que não sabe de quem se trata. “Não sei quem é, sei apenas que teve um passado complicado e de sacrifício. Mas nunca o vi, que me recorde”, disse Adriano Moreira ao Observador, acrescentando que ao exercer as suas funções, apenas se vai preocupar “com a agenda do Presidente da República e não com qualquer outra”.

Adriano Moreira

Remodelação governamental após a tentativa de golpe de Estado do general Botelho Moniz. Adriano Moreira está à esquerda de Salazar (centro da fotografia)

Adriano Moreira será conselheiro de um novo Presidente, filho de alguém com quem conviveu toda a vida, Baltazar Rebelo de Sousa. O pai de Marcelo Rebelo de Sousa e Adriano Moreira foram mesmo colegas de liceu, embora, como Marcelo indique na fotobiografia que escreveu do pai, não fossem próximos nos tempos do Passos Manuel. Quando ascenderam politicamente, Baltazar Rebelo de Sousa como braço direito de Marcello Caetano e Moreira como subsecretário de Estado da Administração Ultramarina – entre 1961 e 1963 seria indicado como ministro do Ultramar – fizeram-no em campos diferentes dentro do antigo regime.

Baltazar seguiu sempre uma ala mais marcelista e Adriano Moreira, incompatibilizado com Caetano, teve uma ascensão mais ligada a Salazar. No entanto, e apesar de o conhecer desde criança, Adriano Moreira prefere não comentar a chegada de Marcelo a Belém. “Não tenho opiniões sobre pessoas”, declarou ao Observador, referindo-se apenas à importância do carisma na mais alta figura do Estado. “Há um poder que na doutrina católica se chama graça, e que é o carisma. São Paulo disse que quem tiver o carisma de ensinar, que ensine. É preciso sempre em relação ao Chefe de Estado, ter atenção ao poder que vem do carisma”, referiu o professor catedrático ao Observador, lembrando que o carisma “não resulta da lei”, mas de quem o detém.

Mas Marcelo Rebelo de Sousa escreveu num texto de tributo ao académico que “cumpriu um destino invulgar”. “Talvez não, tantas vezes, o sonhado. Por si e pelos outros. Mas um destino verdadeiramente singular. À medida da excelência dos seus atributos”, pode ler-se no texto escrito pelo Presidente para a Biblioteca Adriano Moreira, em Bragança. Ainda neste testemunho, o recém-eleito Presidente lembra que tem memórias de Adriano Moreira desde os anos 50 e que a sua mãe “nutria por Adriano Moreira uma consideração muito especial”, ajudando a mediar possíveis conflitos de interesses entre Baltazar e o agora conselheiro do Estado.

Adriano Moreira

Adriano Moreira, então ministro do Ultramar, em visita a Lourenço Marques, agora Maputo, em 1961

Na juventude, e apesar de uma aproximação progressiva ao regime de Salazar, Adriano Moreira chegou a estar preso durante dois meses nos anos 40 na prisão do Aljube, coincidindo com uma das passagens de Mário Soares por essa cadeia. Após acusar o ministro da guerra, coronel Fernando dos Santos Costa, de homicídio voluntário do general Mendes Godinho – Godinho era suspeito de organizar um golpe para derrubar o regime de Salazar e acabou por falecer na prisão – o então jovem advogado foi preso. Seria libertado passado pouco tempo por ordem expressa do próprio Salazar. Segundo Moreira conta na sua autobiografia, o presidente do Conselho terá dito: “Libertem lá o rapazito que no meio desta história toda foi a única pessoa que se portou com dignidade”. Este episódio terá estado na origem – ou pelo menos terá influenciado – a decisão de aproximação ao PCP da sua irmã, Olívia – uma das figuras que mais terá influenciado a filha e deputada do PS, Isabel Moreira.

90.º Aniversário de Mário Soares assinalado com almoço

Adriano Moreira no 90º aniversário de Mário Soares

A sua visão reformista enquanto ministro do Ultramar e um conflito aberto com o governador de Angola, ocupava então o cargo o General Venâncio Deslandes, levou à saída do Governo em 1963. A partir daí, Adriano Moreira dedicou-se à vida académica, promovendo o Instituto Superior de Estudos Ultramarinos – elevado a estabelecimento universitário enquanto integrava o Governo. Após o 25 de abril, passou alguns anos no Brasil, onde também chegou a dar aulas. É candidato pelas listas da Aliança Democrática em 1980, sendo eleito como deputado por Bragança. Manteve-se em funções como deputado até 1995.

Com vasta obra escrita na Ciência Política e nas Relações Internacionais, ao Observador Adriano Moreira não se quis alongar sobre as considerações que fez ao longo dos anos sobre as funções do Conselho do Estado, a sua composição ou até os poderes presidenciais, afirmando apenas que o que chegou aos nosso dias “é uma organização que vem substituir os antigos conselheiros que falavam ao ouvido do príncipe”. No entanto, no livro “Este é o tempo” que escreveu com o jornalista Vítor Gonçalves, Adriano Moreira considerou que se devia “alterar a composição do Conselho do Estado”, fazendo com os outros conselheiros, para além dos institucionais, não fossem nomeados por partidos. “Os conselheiros independentes, separados dos partidos, é que podem encontrar ao Presidente uma saída para conflitos e situações difíceis”, indicou então o professor catedrático.

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