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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

António Calvário. "Nunca dei vivas a ninguém, nunca cantei canções políticas, mas disseram-me: 'Nunca mais cantas na rádio'"

Há 60 anos ganhou o Grande Prémio da Canção e levou Portugal à Eurovisão pela primeira vez. De herói nacional passou a rejeitado e dos festivais foi para os cabarés. Em entrevista, recorda tudo.

Foi criada para o alinhamento da revista Chapéu Alto mas, como a estreia do espetáculo ainda não tinha acontecido, acabou na lista de candidatas a participar na primeira edição do Grande Prémio TV da Canção Portuguesa — que em 1979 passaria a chamar-se Festival RTP da Canção. Oração, interpretada por António Calvário, foi a primeira composição ouvida naquela noite de 2 de fevereiro de 1964, nos estúdios da RTP, e foi também a grande vencedora. Além da conquista, Calvário ficou com a tarefa de representar Portugal naquela que seria a primeira participação na Eurovisão.

Para a Dinamarca o cantor foi completamente sozinho e a atuação esteve em risco de não acontecer — houve uma ameaça de bomba e a exigência de que Portugal e Espanha, ambos sob regimes ditatoriais, fossem excluídos do concurso. Recebido em ovação no regresso a Lisboa, António Calvário veria a sua carreira desmoronar-se quando, no pós 25 de Abril, foi associado ao regime e afastado dos palcos. Nessa altura, cantou em circos e bateu à porta de cabarés para conseguir trabalho e dinheiro para comer.

Aos 85 anos, celebra agora os 60 da primeira edição do Festival da Canção (que ainda não tinha esse nome), um marco importante na sua carreira, mas não o único. Antes dessa consagração, já tinha vencido um concurso da Emissora Nacional, em 1960, e o tema Regresso tinha-lhe garantido um público fiel — e também alguns telefonemas anónimos e cartas com ameaças. Desde a infância em Moçambique, onde nasceu a 17 de outubro de 1938, às aulas de canto que tinha às escondidas dos pais em Portimão, passando pelo que faz atualmente para combater a solidão, nesta entrevista António Calvário recorda a vida que dedicou inteiramente à música.

[a atuação de António Calvário a 2 de fevereiro de 1964, na RTP:]

Quando, em 1964, subiu ao palco do Grande Prémio TV da Canção Portuguesa, já toda a gente conhecia o nome António Calvário. Mas como é que aconteceu essa participação?
Naquela altura, os compositores concorriam com pseudónimos, só se sabiam os nomes se fossem escolhidos. Enviavam uma candidatura com a melodia, a letra e o nome do intérprete. No caso de Oração, a música era de João Nobre e a letra do Francisco Nicholson e do Rogério Bracinha.

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Apresentaram-lhe a canção antes da candidatura. Como foi?
A história é muito engraçada. Estreei-me numa revista chamada Chapéu Alto — era daí que conhecia os autores — e a canção foi escrita para essa revista. Como a revista ainda não se tinha estreado, acabaram por enviar essa canção como candidatura para o Festival da Canção. Venceu e nunca foi parar à revista, que tinha de ter temas inéditos.

Era a primeira edição do Festival da Canção e, por consequência, a primeira participação de Portugal na Eurovisão. Que ambiente se vivia nos ensaios?
Era um grande entusiasmo, todos sabíamos que estávamos a viver uma coisa especial. Os ensaios foram feitos com o maestro João Nobre ao piano. O arranjo também é dele.

Com a vitória no Festival, seguiu então para a Dinamarca para representar Portugal pela primeira vez na Eurovisão. O que encontrou lá?
Ultrapassou as minhas expectativas. Sabia que seria muito difícil ganhar essa competição, até pela situação política que se vivia em Portugal, mas correu tudo muito bem. Fui dirigido por um maestro local, porque também não levei maestro daqui.

"Fui bater às portas dos cabarés, que tinham espetáculos de entretenimento. Só que, como sabiam que eu estava aflito, diziam: 'Sim, vens, mas não é para ganhar o que tu queres, é o que nós temos para dar'. E eu tinha de me sujeitar. Se não, não tinha dinheiro para nada, nem para comer. Cantei em circos também."

Quantas pessoas foram consigo de Portugal?
Era só eu e lá estava à minha espera o cônsul de Portugal. Mas tive sorte porque o arranjo que levava do maestro João Nobre foi muito elogiado pelo maestro local, não houve emendas a fazer. Lá, os ensaios correram bem, mas eu tinha uns nervos tremendos porque era a primeira vez que Portugal participava, um marco que ficaria para sempre. Se corresse mal, seria um desastre para a televisão e uma nódoa na minha carreira. Felizmente, o público recebeu-me estrondosamente bem e as críticas nos jornais foram muito boas. O único problema, que só se soube no dia seguinte, foi o episódio do boicote.

O que aconteceu?
Os grupos que eram contra o regime de Portugal e Espanha disseram à organização que, se não retirassem a presença destes dois países no festival, colocariam uma bomba no Tivoli Hall, em Copenhaga.

Os intérpretes não sabiam o que estava a acontecer?
Nada, só descobrimos depois. Mesmo assim, durante o festival, ainda houve um indivíduo a entrar em palco com um cartaz que dizia “Abaixo Franco, abaixo Salazar”. A minha sorte foi isso ter acontecido já depois de eu ter cantado. Se não, acho que não teria conseguido.

Fez amigos nos bastidores?
Estive lá uns cinco dias e convivemos todos. Depois do festival, ia haver um beberete num hotel e os espanhóis, que eram um trio, depois daquela confusão toda disseram-me: “António, tu não vais, pois não”? E eu disse: “Claro que vou, não tenho medo.” Eu sabia dos problemas políticos, mas estava ali para cantar bem e deixar os portugueses orgulhosos, só isso.

Como é que foi recebido quando regressou?
O aeroporto tinha milhares de pessoas. Tinha à minha espera um carro para me levar para o Rádio Clube Português, que era onde é hoje a Rádio Comercial. Ia lá dar uma entrevista e o carro foi seguido por uma multidão, carros particulares, autocarros.

“O aeroporto tinha milhares de pessoas. Tinha à minha espera um carro para me levar para o Rádio Clube Português, que era onde é hoje a Rádio Comercial. Ia lá dar uma entrevista e o carro foi seguido por uma multidão, carros particulares, autocarros. Foi uma loucura. As pessoas estavam felizes com aquele marco histórico e estavam eufóricas. Queriam entrar à força e não me deixavam passar, chegaram a partir o vidro da porta.”

Quase como se tivesse ganho a Eurovisão?
Sim, foi uma loucura. As pessoas estavam felizes com aquele marco histórico e estavam eufóricas. Queriam entrar à força e não me deixavam passar, chegaram a partir o vidro da porta.

Olhando para trás, o Festival e a Eurovisão foram os momentos mais importantes da sua carreira?
Foram dos mais importantes, sim. Com o Festival da Canção tive a oportunidade de gravar o meu primeiro disco.

Nasceu em Moçambique, onde passou a infância, e aos oito anos veio viver para Portimão, onde continuou a ter as aulas de piano que já tinha começado, mas isso não deixava os seus pais muito felizes, pois não?
Os meus pais queriam que eu tirasse um curso e ser artista não era uma coisa muito bem vista. Embora eles gostassem muito de música, não queriam que eu estivesse ligado ao meio para não me afastar do que eles pretendiam. Depois, já em Portimão, comecei a estudar canto com 15 anos. Estava num colégio e ia haver um espetáculo de fim de ano. Um dia, o diretor passou por mim e disse: “Tu vais cantar”. Fiquei aterrado, nunca tinha cantado na vida, era muito tímido.

Os seus pais viram-no cantar nessa festa?
Quando cheguei a casa a dizer o que tinha acontecido com o diretor, a minha mãe fartou-se de rir: Ela nunca me tinha ouvido cantar em casa, nem na casa de banho, eu nem sabia letras de cor. Eu não estava virado para aí, a minha loucura era o piano. Os meus pais fizeram-me a vontade do piano desde que eu continuasse a ter bons resultados nos estudos — o que não aconteceu muito.

Se nunca tinha cantado, como é que se preparou?
Quando disse à professora de piano, ela respondeu: “Com certeza [o diretor] confundiu-te com outro aluno. Tu não desfizeste o engano?” O diretor tinha aberto muito os olhos e eu, com a minha timidez, tive receio e não disse nada. Então a professora fez-me um exercício vocal, ao piano, e aquilo saiu tudo muito afinado. Ela, admirada, disse: “Estás a brincar comigo, nunca cantaste mesmo? Não vais desfazer o engano porque vou preparar-te e vais mesmo cantar”.

"Só não era bem visto em Portugal, havia um preconceito enorme. Na altura, saiu numa revista: 'António Calvário trocou os tablados do casino pelos tablados do circo'. Como se fosse um desprestígio"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Então foi esse diretor que definiu o seu futuro.
Foi mesmo. Voltei a vê-lo muitas vezes. Curiosamente, anos mais tarde, veio viver para Lisboa, para a Rua Augusto Machado, onde eu também morava.

Depois desse espetáculo de fim de ano continuou a ter aulas de canto, mas às escondidas dos seus pais.
Com a professora de piano passei a fazer metade da aula de piano e metade de canto. Quando vim para Lisboa, a Corina Freire, que era prima direita da minha avó e foi também uma grande atriz e cantora, disse que quem ia tomar conta da minha carreira cá era ela. A minha mãe pensava, como eu também pensava, que era para o piano. Chegado a Lisboa, a Corina disse-me: “Olha, eu não leciono piano. Eu leciono canto e é isso que tu vais fazer porque cantas muito bem”. E eu não disse nada aos meus pais.

Quando é que os seus pais descobriram?
Quando fui selecionado para concorrer à Emissora Nacional, que era uma rampa de lançamento. Sabia que seria transmitido pela rádio, em direto, portanto eles iam ouvir. Tive de lhes dizer. A minha mãe ficou muito aborrecida, mas o meu pai não tanto. Ele era uma pessoa muito engraçada e apoiava muito os filhos. Houve uma altura em que houve a febre dos patins, que eu também queria, como todos os colegas. A minha mãe disse “nem pensar”. O meu pai ganhou algum dinheiro numa lotaria, não disse nada à minha mãe e comprou-me um par de patins. Ele era assim, fazia as vontades aos filhos.

Ganhou esse concurso da Emissora Nacional, em 1960, com Regresso e tornou-se conhecido do dia para a noite, coisa para a qual não estava preparado. Chegou a querer desistir e voltar para os estudos, não foi?
Foi tudo muito repentino. Naquela altura, ser artista não tinha um grande estatuto e havia muita inveja, recebia muitas cartas anónimas a tratarem-me mal, não estava habituado àquilo.

O que é que lhe diziam?
Mandavam cartas e faziam telefonemas a chamar-me nomes e a insultar. Nos espetáculos chegou a haver grupos a atirar ovos. Felizmente, a maioria do público começava a aplaudir e abafava aquilo. Eu ficava magoado e achava que não merecia. Comecei a ficar muito stressado com a situação e um dia meti-me no carro e fui para Portimão. Cheguei a casa dos meus pais de madrugada, fui ao quarto deles, sentei-me na beira da cama e contei-lhes que queria voltar a estudar. Eles disseram: “Não, agora é tarde. Vais continuar e nós estamos aqui para te apoiar”.

Além dessas cartas desagradáveis, recebia cartas de amor. Algumas demasiado intrometidas?
Algumas com ameaças e tudo. “Se não vieres ter comigo às tantas horas, é porque não gostas de mulheres”, diziam. Claro que, a essas, nem respondia.

Houve uma fase em que não conseguia sair à rua?
Não dava. A melhor hora para sair era depois da meia-noite porque, durante o dia, as pessoas queriam autógrafos, beijinhos. Às vezes ia com pressa e não conseguia chegar aos sítios a horas. Nunca consegui dizer não às pessoas.

“[o pós-25 de Abril] Foi muito desmoralizante, nessa altura pensei que, se tivesse tirado o tal curso que os meus pais queriam, se calhar tinha desistido e tinha abraçado Direito, que era o que estava programado. Mas não tinha alternativa, portanto nunca deixei de cantar, mas tive de readaptar tudo.”

Estava também a fazer teatro e cinema?
Estava a fazer revista e tinha sido protagonista de pelo menos cinco filmes. Uma Hora de Amor, Sarilho de Fraldas, O Diabo era Outro.

Para esse filme contraiu uma dívida que o fez trabalhar o triplo, não foi?
Eu era o produtor e o filme foi todo às minhas custas. Havia uma verba e ainda sobrava dinheiro, só que o filme ultrapassou o que se esperava em tempo e em gastos e ainda havia outra coisa: o produtor só era dono da obra depois de o realizador entender que ela estava concluída. Enquanto isso não acontecia, as despesas continuavam. O filme atrasou na montagem, foi preciso marcar e remarcar umas três vezes as datas de estreia e, não sendo cumprido esse calendário, não havia entrada de dinheiro para pagar os compromissos. Eu estava sujeito a ficar sem a obra, tinha dívidas para pagar ao banco e então fartei-me de cantar. Em circos, em night clubs. O dinheiro que ganhava era para as minhas despesas e também para ir pagar ao banco. Assim fui fazendo até concluir todos os pagamentos. A obra ainda hoje é minha, mas com muitos sacrifícios.

Discos, teatro, cinema, grandes salas de espetáculos, o António estava em todo o lado. Mas, de repente, no pós 25 de Abril, as coisas mudam e é afastado dos palcos onde era aclamado. Como é que geriu isto tudo?
Foi muito difícil, tenho uma mágoa muito grande e ainda é uma fase que me custa recordar. Houve quem me dissesse: “A partir de agora nunca mais cantas na rádio, nunca mais se vai ouvir um disco teu”. Era horrível de ouvir. Nunca dei vivas a ninguém, nunca cantei canções políticas. Eu nem nunca conheci o Salazar nem era chegado ao governo, vivia para a minha profissão. Foi muito desmoralizante, nessa altura pensei que, se tivesse tirado o tal curso que os meus pais queriam, se calhar tinha desistido e tinha abraçado Direito, que era o que estava programado. Mas não tinha alternativa, portanto nunca deixei de cantar, mas tive de readaptar tudo.

Como?
Fui bater às portas dos cabarés, que tinham espetáculos de entretenimento. Só que, como sabiam que eu estava aflito, diziam: “Sim, vens, mas não é para ganhar o que tu queres, é o que nós temos para dar”. E eu tinha de me sujeitar. Se não, não tinha dinheiro para nada, nem para comer. Cantei em circos também.

O que também não foi bem visto na altura.
Só não era bem visto em Portugal, havia um preconceito enorme. Na altura, saiu numa revista: “António Calvário trocou os tablados do casino pelos tablados do circo”. Como se fosse um desprestígio. O Johnny Hallyday, que era muito conhecido em França, em pleno apogeu da sua carreira, fez uma digressão como figura principal de um circo. Para mim, era um orgulho, foram as pessoas que melhor me trataram. Ainda hoje sou muito amigo de muitas pessoas do circo. Fui acolhido como se fosse da família. Nas roulotes tinham sempre um espaço para mim, para vestir a roupa antes de ir cantar e depois para vestir a roupa de paisano antes de me ir embora.

Acho que o ar que tenho e o facto de não parecer ter 85 anos se deve a nunca ter interrompido a minha carreira, mesmo nos momentos baixos

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Anos mais tarde passou por outro circo, quando participou no programa de televisão Circo das Celebridades [2006]. Como foi essa experiência?
Foi um convite inesperado, mas que nunca recusaria. Tive sempre uma grande paixão pelos palhaços. Por duas vezes fiz de palhaço e acho que não correu mal. Tive muitos amigos do circo que me ligaram a dizer que tinha estado fantástico.

A fase pós-revolução, dos cabarés e do circo foi solitária ou enriquecedora?
Foi de grande aprendizagem, porque me deu a possibilidade de conviver com pessoas de todos os níveis sociais.

E aquelas pessoas que, quando veio da Eurovisão, até partiram vidros para estarem perto de si, para lhe tocarem, desapareceram nessa altura?
Não desapareceram, mas lastimavam não poderem ver-me cantar em mais parte nenhuma. Em 1978 fui convidado para participar numa revista do Parque Mayer [Põe-te na Bicha] e acabei a cantar uma das canções de maior sucesso até hoje, Mocidade, Mocidade. Foi um sucesso enorme.

Foi nessa fase que recuperou o seu lugar?
Verdadeiramente, nunca entendi nada de política, nem sequer se falava de política em minha casa. Sempre senti que o que me aconteceu foi uma injustiça.

E hoje, aos 85 anos, continua longe de se reformar?
Acho que o ar que tenho e o facto de não parecer ter 85 anos se deve a nunca ter interrompido a minha carreira, mesmo nos momentos baixos. Atualmente estou à frente de três espetáculos: A Revista a Portugal, em que sou cabeça de cartaz; um musical, Calvário: Uma Vida de Canções; e 100 Anos de Parque Mayer, ao lado da Rita Ribeiro

Como é que é a sua rotina?
Levanto-me às 7h30, tomo o pequeno-almoço na rua. Não gosto de estar fechado em casa.

Porque hoje em dia já consegue sair à rua.
Se calhar é por não ter conseguido durante tanto tempo que agora gosto tanto. Mas as pessoas ainda me abordam muito. Uma vez, estava num supermercado, uma senhora veio ter comigo e disse: “Se não fosse o meu neto, nem acreditava que era o António Calvário que estava aqui. Começou a puxar-me a saia e dizer ‘está ali o cantor de quem gostas muito’”. O neto era um miúdo de seis anos.

"Logo a seguir à Eurovisão, o Valentim de Carvalho, que era o meu editor, recebeu uma carta de uma editora francesa que queria que eu gravasse o meu repertório, incluindo a Oração, em francês, em Paris. Eu era um artista exclusivo cá e então não deixaram. Foi um erro tremendo."

Isso significa que também as gerações mais novas olham para si como um símbolo de memória?
Acho que sim. Encontro muita gente jovem que pede para tirar selfies comigo, fico muito feliz com isso. Gosto de dar alguma coisa às pessoas. Mesmo que não esteja com disposição para isso, mudo o meu estado de espírito completamente. Vou contar-lhe um episódio que aconteceu quando a minha mãe morreu. Íamos a caminho do funeral, que seria em Silves, e eu ia no carro funerário a acompanhar o caixão. Paramos numa área de serviço para beber um café e descansar um pouco. Estava lá uma excursão do Porto. Quando me viram na área de serviço, começaram a fazer uma grande festa e a pedir fotos. Mudei completamente a minha fisionomia para que não sentissem que estava triste. Tirei fotos, dei autógrafos, mas depois viram-me entrar no carro funerário. Fez-se um silêncio enorme, veio um grupo ter comigo e perguntou o que tinha acontecido. Eu expliquei, mas não queria nada dececionar aquelas pessoas. Se não me tivessem visto a entrar no carro funerário, ficavam com aquela imagem da minha alegria e de os ter tratado bem.

Sempre colocou a sua carreira e esta obrigação perante o público em primeiro lugar, muitas vezes em detrimento da sua vida pessoal?
Sim, é verdade. Nunca me arrependi, mas tenho momentos de solidão. Por vezes sinto-me triste, mas quando tenho pensamentos que me isolam, procuro imediatamente reagir. Se for à noite, quando não estou a trabalhar, saio para ouvir música num bar. Encontro amigos, converso, durante o dia tenho muitas vezes as minhas sobrinhas cá em casa.

Ainda vive no centro de Lisboa?
Não, mudei-me para a Margem Sul, a Aroeira, há 11 anos. Comprei um terreno quando os preços ainda estavam aceitáveis. Fui construindo ao longo dos anos. Com tudo o que trabalhei, também merecia.

Houve alguma oportunidade, ao longo de todos estes anos, que lamenta não ter aproveitado?
Logo a seguir à Eurovisão, o Valentim de Carvalho, que era o meu editor, recebeu uma carta de uma editora francesa que queria que eu gravasse o meu repertório, incluindo a Oração, em francês, em Paris. Eu era um artista exclusivo cá e então não deixaram. Foi um erro tremendo. Não eram mercados concorrentes. Noutra ocasião estive no Brasil a fazer um espetáculo e tive uma proposta para ficar e ser lançado lá. Como estava a fazer o filme O Diabo Era Outro, tinha de regressar. Claro que depois esse filme deu aqueles problemas todos e passou a oportunidade. Mas, olhando para trás, sinto-me muito feliz com tudo o que consegui. Não tenciono deixar de cantar, só se for por motivos de saúde. Desde que o público queira continuar a ouvir-me, não vou parar.

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