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Porto, 28/10/2021 - O actor Antonio Capelo (Rui Oliveira/Observador)
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Aos 65 anos, António Capelo apresenta o primeiro monólogo da sua carreira, uma reflexão sobre o tempo que vivemos e os atores de teatro

(Rui Oliveira/Observador)

Aos 65 anos, António Capelo apresenta o primeiro monólogo da sua carreira, uma reflexão sobre o tempo que vivemos e os atores de teatro

(Rui Oliveira/Observador)

António Capelo: “Uma carreira internacional? Se tivesse 20 anos não pensava duas vezes, mas já tenho 65”

Antes de estrear o seu primeiro monólogo, António Capelo fala da infância livre, das inquietações políticas, do reconhecimento e do desejo em permanecer no Porto. “Não sou a regra, mas a exceção”.

Encontramo-lo de fato de treino vestido e descalço sobre o palco, depois de mais um ensaio do seu primeiro monólogo em 45 anos de carreira. “Ninguém” tem estreia marcada para o dia 11 de novembro no Palácio do Bolhão, uma das casas de António Capelo: afinal, é lá que estão instaladas a ACE – Escola das Artes e a companhia Teatro do Bolhão, duas heranças artísticas que deixa à cidade do Porto e ao país.

Nasceu numa família de músicos numa aldeia de pescadores e mineiros em Castelo de Paiva, teve uma infância livre e feliz, mas ganhou cedo a consciência de que o mundo era um lugar cheio de desigualdades. Aos nove anos foi estudar para o Porto, queria seguir Direito, acabou por cursar Filosofia e atingir a maioridade duas semanas depois do 25 de Abril. Começavam assim as inquietações políticas e as noites sem dormir por querer fazer tudo o que finalmente podia ser feito: representar, cantar e escrever. Escolheu o teatro, revela que aprendeu tudo o que sabe com ele, e nunca mais o largou.

No palco, na televisão ou no cinema interpretou quase tudo, mas é como vilão que muitos teimam em rotulá-lo. “Eles acham que tenho perfil para fazer de vilão e de rico, isso chateia-me um bocadinho. Há uns anos disse que não voltava a fazer novelas se fosse outra vez esse perfil e depois telefonaram-me a dizer que tinham uma personagem para mim que era pobre, mas no fim percebia-se que afinal era rico. Recusei logo.”

Temido pelos alunos e respeitado pelos colegas, António Capelo nunca se inibe de dizer o que pensa, tanto na profissão como na vida, acredita que é uma forma de assumir a própria liberdade e garante que isso nunca lhe trouxe dissabores ou menos trabalho. Talvez por isso se sinta fora da norma, a começar pelo facto de continuar a viver no Porto. “Quando vou a Lisboa é como se calçasse os sapatos ao contrário, o direito no esquerdo e o esquerdo no direito, há ali uma incomodidade qualquer em mim. Eu e Lisboa nunca fomos orgânicos e com o Porto tenho essa sensação desde sempre. Sei que não sou uma regra, sou uma exceção, mas nunca perdi trabalho por estar no Porto, talvez me tenha cansado mais.

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Odeia o tempo em que vivemos, mostra-se desiludido e inconformado com quase tudo, mas não perde a voz rouca, o olhar focado e a gargalhada inconfundível. Fala sem rodeios das suas opções políticas, de como não quer ser famoso ou ter uma carreira internacional, de como lida com a idade e até do reconhecimento do público. “Acho que a maior parte das pessoas não tem uma boa imagem de mim.” Ainda assim, António Capelo subirá ao palco novamente para fazer o que mais gosta, representar, e apesar de já ter uma casa em Castelo de Paiva para gozar a reforma, ainda não pensa nessa fase. “Há muitos desafios que gostava de ter, assim haja coragem e vontade para os fazer.”

"Édipo" (1986), "Os Encantos de Medeia" (1980) e "Macbeth" (1993) foram algumas peças interpretadas pelo ator

Não costuma dar muitas entrevistas, pois não?
Não…

Porquê?
Muitas vezes as entrevistas entram num universo que não me apetece muito estar a conversar sobre, que é o universo da vida pessoal. Só tem interesse dar uma entrevista se estiver a falar da minha profissão e de como me desenvolvo nela. A esse nível, sim, falarei sempre, mas querem sempre confundir isso com coisas da minha vida particular e isso não tem muito interesse.

Gosta do tempo que vivemos?
Não, detesto, odeio.

Porquê?
Tenho 65 anos, ou seja, tinha 18 no 25 de Abril e ainda ontem dizia a um amigo que já fizemos a revoluções todas, eu pelo menos já fiz. Na nossa expectativa, o nosso futuro e a nossa vida nunca iriam esbarrar com o mundo que vivemos hoje. Para nós, tudo seria melhor, a revolução sexual estava feita, a revolução política também, tudo seria melhor e não foi, demos muitos passos atrás. Acho que vivemos numa época terrível, o capitalismo galopou de tal maneira que hoje em dia se torna indecente a maneira como os seres humanos são tratados pelas próprias sociedades ocidentais, portanto não gosto nada deste tempo.

É um cenário irreversível ou é otimista em relação a isso?
Tento pensar que tem de ser possível isto desembocar noutra qualquer coisa mais interessante, tenho de ter algum otimismo em relação a isso. Não podemos trabalhar apenas sobre a ideia nostálgica do que fomos, como professor, sinto que é preciso conseguir criar e abrir caminhos para que os meus alunos possam ter um futuro no mínimo igual ao meu ou melhor.

Deste tempo que vivemos, o que lhe causa mais náusea?
É a maneira como as pessoas, nomeadamente os políticos e os decisores, se conformam com um mundo com tantas desigualdades. Como é que é possível que deitemos fora toneladas de alimentos quando aqui ao lado milhões de crianças morrem à fome? Todas estas perguntas relacionadas com o meio ambiente deviam ter, em quem decide, respostas mais positivas. Acho asqueroso que não encontremos junto daqueles que olham o mundo uma esperança.

Sempre teve consciência disso desde miúdo?
Acho que sim. Sou de uma aldeia em Castelo de Paiva, Pedorido, de mineiros e pescadores e confrontei-me muito cedo com algumas questões fortes. As mulheres que ficavam viúvas muito cedo porque os maridos morriam com doenças ou fruto do trabalho duro e a que chamávamos de corvos porque saíam da missa todas vestidas de negro. Tudo isto são inquietações que me ficaram e mais tarde tentei perceber porquê. Claro que não havia respostas na altura, mas tudo isso faz parte da minha própria formação. Acho que adquiri muito cedo a certeza de que o mundo era feito em cima de enormes desigualdades, aliás a maneira como se distribui a riqueza é quase pornográfico, é escandaloso, não tem sentido.

"Durante algum tempo ainda vacilei entre dedicar-me à música, como cantor, ou ao teatro, mas acabei por me fixar no teatro. Um dia alguém me viu em Espinho e convidou-me para vir trabalhar para o Porto na companhia Seiva Trupe, foi aí que deixei a faculdade e fiquei no teatro para sempre."

Voltando a Castelo de Paiva, a que sabe a sua infância?
A uma liberdade absoluta. Aos nove anos vim para o Porto estudar, ia la passar férias para casa dos avós, era apaparicado pelos tios e sentia uma liberdade suprema, tudo era bom, tudo corria bem. Tinha muita gente na família ligada sobretudo à música, havia ali um aconchego social e artístico que me era muito agradável.

Chega ao Porto com nove anos, como foi essa adaptação?
Sim, vim estudar no liceu. Não me recordo bem, já foi há tanto anos. Acho que o primeiro embate foi estranho, mas depois foi uma questão de hábito. As crianças adaptam-se rapidamente a tudo.

Entrou em Filosofia porque não havia curso de direito no Porto. O que o fascinava na justiça?
Acho que era um pouco aquilo que o teatro tem, o espetáculo do tribunal, a exposição e a capacidade de comunicar uma mensagem. Também costumo dizer que o teatro acabou por me dar tudo e não precisei de aprender outras coisas noutros sítios. No teatro estamos sempre a aprender coisas.

Não chega a terminar o curso, pois não?
Não, no segundo ano do curso já fazia teatro amador em Espinho. Já durante as férias do Natal e da Páscoa participava naqueles autos mais tradicionais na minha aldeia, passei por essa experiência, mas a vontade de fazer teatro surge-me mais a sério depois do 25 de Abril. Tinha 18 anos, estou no primeiro ano da faculdade, moro em Espinho, tenho aulas no Porto e fazia tudo, achava que não precisava de dormir. Fazia teatro para crianças e adultos, formei e cantei num coro, escrevia num jornal, fazia tudo. Durante algum tempo ainda vacilei entre dedicar-me à música, como cantor, ou ao teatro, mas acabei por me fixar no teatro. Um dia alguém me viu em Espinho e convidou-me para vir trabalhar para o Porto na companhia Seiva Trupe, foi aí que deixei a faculdade e fiquei no teatro para sempre.

Lembra-se da primeira vez que subiu a um palco?
Na Seiva Trupe estreei-me como profissional, mas lembro-me mais do segundo espetáculo, acho que foi mais marcante para mim.

Porquê?
Era uma à volta dos textos de Jorge de Sena, que foi um autor que conheci na época, ele ainda era vivo e veio ver o espetáculo. Eram textos que já refletiam também algumas destas inquietações que me acompanham até hoje, alguns eram auto biográficos e tinham muito a ver com a forma como ele tinha passado pela Guerra Civil Espanhola. Fazia a personagem dele jovem e cruzava-me com coisas terríveis. Lembro-me de uma cena que contava a história dos pais que além de terem sido presos pelo Franco, também tinham ido para a leprosaria e, por isso, iriam morrer leprosos, isto em pleno século XX. Ao confrontar-me com essa crueldade do ser humano, o texto acabou por ser muito marcante para mim. Depois o lado da liberdade, lembro-me de poemas dele sobre a cor da liberdade e a forma como ele refletia e olhava para as coisas a partir de filmes, músicas e quadros. Essa capacidade de olhar para as coisas e ver o que está para lá da superfície fascinava-me. O teatro para mim tinha esse fascínio, o fascínio de contar histórias, mas não histórias óbvias. Por isso é que digo muitas vezes aos meus alunos que o teatro não é a vida, é a maneira como olhamos para ela. Os atores têm que ter um opinião, se o seu olhar for curioso, torna-se interessante partilhar isso com o público.

António Capelo em "Don Juan" (2005)

Como era o Porto culturalmente na época em que começou?
Havia muito pouca coisa, aliás durante muitos anos houve muito pouco. Existiam algumas coisas interessantes em Belas Artes e na música, mas o teatro era muito pobre. Não havia espaços de teatro, não havia o Rivoli, o Carlos Alberto ou o São João, os espaços existiam, mas não estavam abertos ao teatro. Quando abrimos a ACE — Escola de Artes, há 31 anos, ela era fruto de uma reflexão que fiz, era necessário desenvolver a formação de artistas e técnicos, desenvolver a formação de públicos e ter espaços de apresentação. O que realmente mudou tudo de forma radical no Porto foi a criação das escolas de teatro, porque até aí era tudo muito passivo.

A ACE – Escola de Artes completa 31 anos, que balanço faz? Está preparado para passar o testemunho?
Os projetos têm que sobreviver além das pessoas que os criam, caso contrário não são projetos virados para as pessoas. Sou um dos fundadores da escola, mas dos poucos que ainda cá está. Há muita coisa que já foi partilhada, já não sou diretor de curso de interpretação, por exemplo, um cargo que desempenhei ao longo de muitos anos. Sempre tivemos uma estratégia muito lúcida na escola em que a grande percentagem dos nossos professores foram nossos alunos. No início foi muito difícil porque não havia formadores em Portugal, com alguma capacidade financeira que tínhamos na altura fomos buscar formadores a Inglaterra, a Itália e a França, fomo-nos também formando e arranjando financiamento para que os nossos alunos continuassem no ativo.

Como é o António Capelo como professor? Ouvi dizer que é um tanto ou quanto temido pelos alunos.
Sou, agora também já dou menos aulas, mas sou sempre um terror para os alunos, até dizem: “vem aí o Capelo”. Não gosto dessa sensação que provoco, mas no fundo os que trabalham comigo dizem que afinal não sou assim tão duro como me pintam. Sou muito exigente e acho que nestas idades temos de ser mesmo exigentes porque caso contrário eles não singram na profissão. É importante terem uma auto disciplina profunda, que lhes  permita depois não serem mártires nem vítimas desta profissão. No dia em que encontramos um método que nos permite controlar o nosso trabalho, a partir daí conseguimos trabalhar com liberdade, alegria e prazer. Claro que é preciso dizer milhares de vezes um texto, mas quanto mais depressa tiver consciência diss, menos irei sofrer. Já disse este monólogo milhares de vezes e provavelmente agora vou para casa e vou repetir partes dele na rua, quem ouvisse a quantidade de vezes que o faço diria que sou doido ou maluco, mas sei que é assim e que tem de ser assim. Quando aceito isto, não me faz moça, não me martiriza. Os espetáculos causam-me mossa, a ideia de que todos os dias tenho de fazer uma coisa que é muito semelhante ao outro dia, aborrece-me. Gosto muito dos ensaios, mas dos espetáculos nem tanto. O ensaio é o lugar da descoberta, o espetáculo é o lugar da repetição e, claro, da partilha.

Nunca pensou seguir uma carreira internacional?
Se tivesse agora 20 anos não pensava duas vezes, mas já tenho 65 [risos]. Bem, fui a São Paulo antes da pandemia, participar num filme brasileiro chamado “Clube dos Anjos”, que ainda não estreou por causa do Bolsonaro, e lá conheci o músico André Abujamra e ficamos amigos. Ele tinha feito um álbum sobre água, há uns quatro ou cinco anos, e convidou a Maria de Medeiros a participar, durante a pandemia fez um trabalho sobre o fogo, pediu-me para gravar umas coisas e mandei-lhe. Esse álbum está agora nomeado para os Grammy Latino, como lhe fiz isto de borla pedi-lhe para agora fazer a música para este monólogo, é uma troca de amizades.

Essa pegada internacional não o seduz?
Não especialmente, se há tanta coisa que se pode fazer aqui…

Mas Portugal é um país pequeno.
Eu também não tenho muitas ânsias de ser muito famoso. Interessa-me as pessoas que estão aqui sentadas na plateia quando estou com elas, as que estão lá fora estão a tratar de outras coisas.

"Nunca perdi trabalho por dizer o que penso quando considero que as coisas não estão bem. Numa produção de televisão, por exemplo, acontece mesmo muito frequentemente."

Diz que o teatro lhe ensinou tudo, o que lhe ensinou sobre o outro?
Sou muito visceral, agora sou menos porque o teatro também me ensinou a ser menos, mas ensinou-me sobretudo a respeitar o outro. Nunca fui político, mas já fui mandatário várias vezes da Marisa Matias, de quem sou amigo, e nas últimas eleições para o parlamento europeu tive que fazer um debate na RTP em direto com outros mandatários e a maioria deles eram homens da política. Apesar de tudo consegui manter-me racional e consciente, acho que o teatro ajudou-me nisso. Ensinou-me também a perceber que os outros também têm opiniões sobre as coisas e as opiniões podem ser diferentes das minhas.

Lida bem com isso?
Tenho que lidar. Quando não estou de acordo, manifesto a minha opinião e não ponho entraves em dizer ao outro aquilo que penso, mas também tenho o dever de ouvir o outro e ser tolerante. É essencialmente na diferença e na aceitação da diferença que enriqueço.

Não é muito comum vermos figuras públicas assumirem as lutas de um partido. Isso já lhe trouxe dissabores?
Creio que não, acho que nunca perdi trabalho por causa isso, aliás, se algum dia acontecesse tornaria imediatamente público. Da mesma maneira que nunca perdi trabalho por dizer o que penso quando considero que as coisas não estão bem. Numa produção de televisão, por exemplo, acontece mesmo muito frequentemente.

Não tem medo das consequências?
Não. Há colegas meus que dizem que posso dizer isto ou aquilo, mas nunca percebi muito bem essa frase.

Talvez pela experiência, pela idade ou pelo estatuto?
Posso dizê-lo porque assumo a minha própria liberdade, não é por outra razão qualquer. As pessoas são todas iguais, quando falo estou convicto do que estou a dizer e isso nunca me trouxe represálias ao desenvolvimento do meu trabalho profissional.

Porque é que é importante tornar pública uma convicção política?
É importante tornarmos público aquilo que pensamos sobre o mundo em que vivemos. A partir de determinada altura começamos a tomar consciência do mundo e o facto de sermos atores não nos torna mais lúcidos ou mais inteligentes, mas ganhamos o vício, que é uma virtude, olharmos para os outros e para a vida como matéria e ferramenta de trabalho, de uma maneira mais positiva e construtiva. É esse olhar que trazemos para o palco, todo o teatro é político, mesmo aquele que diz que não é, acaba sempre por sê-lo. Não podemos ter atores com opiniões e depois não acharmos que isso não é um ato político, eu, sinceramente, não tenho medo disso.

O ator na peça "Quem Tem Medo de Viginia Woolf", em 2004

Também nunca teve medo de continuar a viver no Porto. Em algum momento teve a tentação de se mudar para Lisboa por questões profissionais?
Morei em Lisboa dois anos, entre 1983 e1985, estive um ano na Barraca e outro a trabalhar como independente, mas depois voltei porque já não aguentava mais.

Foi assim tão mau?
Era muito novo na altura, a minha carreira no teatro corria bem, aliás, só comecei a fazer televisão quando já tinha 15 anos de carreira no teatro.

Lembra-se do primeiro trabalho que fez em televisão?
Foi uma série do Luís Filipe Costa com umas coisas escritas pelo Moita Flores, no outro dia apanhei isso na RTP Memória e foi muito engraçado. Vejo-me muito pouco, com alguma distância não tenho problema nenhum, mas às vezes enlouqueço porque estou a gravar um take e não saio para ir ver o resultado como os meus colegas. Acho que há um lado auto destrutivo nos atores que é muito mau, o que vemos ali vai complemente condicionar o trabalho porque tudo o que vamos ver é mau. Ninguém se identifica com a sua voz quando a ouve gravada pela primeira vez, nem com a sua imagem, porque temos de nós uma ideia de nós próprios que muitas vezes não corresponde à realidade. Quando nos vemos, ou temos uma distância sobre isso ou então é o caos. Se saio de uma cena a pensar no que acabei de fazer e começo a pensar no que fiz, vou destruir tudo o que acabei de fazer porque tudo foi mau. É preciso ser descarado para ser ator e muitas vezes esse descaramento que temos em dizer coisas às pessoas em cima de um palco só se torna sólido quando temos mais consciência das nossas incapacidades do que propriamente das nossas capacidades.

Mas viver em Lisboa não era profissionalmente mais fácil?
Sim, sem dúvida, mas nunca me liguei à cidade, ainda hoje me sinto um bocadinho estranho lá. Quando vou a Lisboa é como se calçasse os sapatos ao contrário, o direito no esquerdo e o esquerdo no direito, há ali uma incomodidade qualquer em mim. Eu e Lisboa nunca fomos orgânicos e com o Porto tenho essa sensação desde sempre. Sei que não sou uma regra, sou uma exceção, mas nunca perdi trabalho por estar no Porto, talvez me tenha cansado mais. Grande parte da minha vida é feita lá, mas é fugaz, vou e venho. Habituei-me a este ritmo e criei defesas, por exemplo estudo os textos no comboio durante as três horas. Sim, vou sempre de comboio porque não tenho carta de condução.

Nunca quis tirar?
Já estive inscrito, não fui às aulas e depois cheguei à conclusão que era melhor não tirar. Já tive que ficar a gravar umas cenas até mais tarde e dizer à produção que tinha de estar no Porto de manhã cedo no dia seguinte para dar aulas e eles providenciaram-me um táxi. Costumo dizer que se tivesse carta de condução já tinha morrido porque iria adormecer a conduzir, por isso é preferível não ter e, assim, ter um certo descanso.

"Sou capaz de pegar no telefone e perguntar ao Sr. Manuel o que há hoje para almoçar. É como se a cidade fosse a extensão da minha casa e as pessoas fossem a extensão da minha própria família."

Não o entristece o Porto e o Norte não terem mais produções e oportunidades de trabalho?
Não diga “mais” porque na verdade não há nenhumas. No Porto não se faz nada e isso entristece-me e revolta-me muito. Este país é terrível por ser tão inclinado. Quando me queixo disto em Lisboa não percebem porque não são vítimas. Não acho que isto seja uma guerra sobre o ser do sul ou o ser do norte, são factos, temos de os aceitar, mas há coisas que podem mudar e já fiz alguns esforços nesse sentido.

Tais como?
Ainda há muito pouco tempo a Plural e a SP, as grandes produtoras de audiovisual em Portugal, queriam criar uma espécie de cidade cenográfica, como a Globo tem no Rio de Janeiro, e mostrei-lhe uns armazéns aqui junto ao Europarque, em Santa Maria da Feira. Consegui trazer as pessoas responsáveis cá e explicar-lhes que não têm que andar com equipas para cima e baixo porque há gente que se forma aqui em cima e é muito boa. Enfim, não fizeram nada. Eles entendem que isto possam fazer sentido, mas equacionam a ideia como uma possibilidade teórica, mas nunca prática. Por exemplo, acabei de fazer uma novela que se passa em Arcos de Valdevez e Braga, mas fiz exteriores em Sintra, que não tem nada a ver com o Norte. Aqui tudo desagua em Lisboa, há um estigma nacional, o país não está bem dividido e organizado, é uma pena.

O que gosta mais no Porto?
Gosto muito das pessoas, são elas o grande património na cidade. Gosto da forma como são afáveis no relacionamento, por mais mal criadas que sejam, como elas são humanas. Sempre morei no centro, como não tenho carta faço tudo a pé, e tenho um restaurante muito bom e barato mesmo ao lado de casa. Sou capaz de pegar no telefone e perguntar ao Sr. Manuel o que há hoje para almoçar. É como se a cidade fosse a extensão da minha casa e as pessoas fossem a extensão da minha própria família.

Deve ser bastante reconhecido na rua. Que imagem é que acha que as pessoas têm de si?
Acho que a maior parte das pessoas não tem uma boa imagem de mim. Vou ao Mercado do Bolhão ao fim de semana às compras e é engraçado como as vendedoras se relacionam comigo, são muito hostis em relação às personagens que faço, mas rapidamente são afáveis porque sabem que aquilo é trabalho. Há uns anos fiz uma personagem terrível que batia muito na mulher e elas revoltaram-se todas contra mim, diziam muito que se fosse com elas era diferente.

Ao interpretar na televisão tantos vilões, ajudou-o a compreender melhor esse lado humano?
Todas as personagens me acrescentam saber e me ajudam a compreender o ser humano. Os atores têm o vício terrível de defender a personagem que fazem, mas isso não significa defender a sua perspetiva sobre as coisas, defendê-la é compreendê-la, mas interpretá-la. Podemos ser críticos e representar. Eles acham que tenho perfil para fazer de vilão e de rico, isso chateia-me um bocadinho. Há uns anos disse que não voltava a fazer novelas se fosse outra vez esse perfil e depois telefonaram-me a dizer que tinham uma personagem para mim que era pobre, mas no fim se percebia que afinal era rico, recusei logo. Quando faço um vilão que bate na mulher é porque acho importante falar disso, mas chateia-me sobretudo a ideia de que se pode rotular um ator em função de personagens. O público também o faz porque é educado para isso e a televisão não tem ainda o papel de educar.

Acha que tem o reconhecimento que deveria ter?
Sim, acho que ninguém anda à procura de ter reconhecimento em relação a nada. Faço o meu trabalho, se me reconhecem por isso é bom, mas é apenas a minha obrigação. Não tenho de andar a lutar para ter mais ou menos reconhecimento. Tenho o que tenho, é aquele que mereço.

Porto, 28/10/2021 - O actor Antonio Capelo (Rui Oliveira/Observador)

"Acho que sim, tenho 65 e já pago metade nos comboios [risos]. É inevitável não há nada a fazer, há como não aceitar. Não aceitar isso pode ser uma violência"

(Rui Oliveira/Observador)

De que fala este seu primeiro monólogo?
É fundamentalmente um exercício de memória, não apenas minha, mas também de outros atores, partilha uma memória geral do teatro, da vida, do que é fazer teatro. A primeira parte prende-se com a pergunta “porquê é que faço teatro?” e a segunda parte é fazer perceber que o ato de fazer teatro leva a uma consciência que nos permite falar de outras coisas. É um texto que reflete muito o tempo em que vivemos e a maneira como os atores se situam nele. Não é um monólogo sobre mim, é sobre atores. Pedi ao Zeferino Mota para escrever este texto mais pela inquietação do tempo em que vivemos do que propriamente uma inquietação pessoal minha de fazer um monólogo.

Em 45 anos de carreira é a primeira vez que arrisca neste registo. Porquê?
Por um lado nunca surgiu a oportunidade, por outro nunca me senti muito atraído pela ideia de fazer um monólogo como um objeto teatral. Muitas vezes sinto que os atores fazem muitos monólogos por uma razão que é mais circunstancial do que propriamente de fundo. Não há apoios e não há capacidade financeira para fazer outro tipo de espetáculos, portanto recorre-se à ideia de monólogo porque é algo que financeiramente se faz com poucos recursos. Por vezes é mais uma necessidade do que outra coisa qualquer.

Lida bem com a idade?
Acho que sim, tenho 65 e já pago metade nos comboios [risos]. É inevitável não há nada a fazer, não aceitar isso pode ser uma violência.

O que ainda gostava de fazer em palco?
Há muitos desafios que gostava de ter, assim haja coragem e vontade para os fazer.

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