Os casos de assédio moral e sexual na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa não são recentes e também não estavam longe do conhecimento dos órgãos desta instituição. As histórias foram denunciadas a 12 de janeiro pela presidente da associação de estudantes, Catarina Preto, durante uma reunião do Conselho Pedagógico, mas só a 2 de março, depois de a comunicação social ter feito perguntas sobre o assunto, é que foi discutida, e aprovada uma semana mais tarde, a criação de uma comissão para receber as denúncias dos alunos — o canal que recebeu 50 relatos validados de assédio moral e sexual.
A discussão consta da ata da reunião do Conselho Pedagógico de 2 de março, a que o Observador teve acesso, e na qual fica provado que os casos de assédio moral e sexual eram do conhecimento de alunos e professores. Mas o empurrão para que algo fosse feito veio de fora. Nessa altura, a comunicação social tinha começado a questionar várias pessoas daquela faculdade sobre os casos existentes, como anunciou a presidente da associação de estudantes, tendo o presidente do Conselho Pedagógico chegado a questionar Catarina Preto, segundo a ata dessa reunião, “se a entrevista da comunicação social seria apenas sobre a Faculdade de Direito ou sobre toda a Universidade de Lisboa”. Outro dos docentes presentes referiu ainda que “o assunto já seria do conhecimento da comunicação social, pelo que seria imprescindível uma resposta imediata ao assunto por parte da faculdade”.
As histórias multiplicam-se pelos corredores, mas o medo e a falta de resposta têm travado as denúncias. E terão existido também pressões feitas por professores a quem está a denunciar estas práticas, neste caso à presidente da associação de estudantes, de acordo com a ata do Conselho Pedagógico.
“Estes conselhos, estes ‘veja lá, não se prejudique’, estes ‘tenha cuidado, há coisas de que é melhor não falar’ no contexto de publicitação de casos de assédio moral e sexual só podem ser entendidos, e são, como formas de pressão e tentativa de encobrimento de uma realidade que, infelizmente, marca a vida académica da nossa escola”, lê-se num documento entregue por um dos docentes nessa reunião e que foi anexado à ata. Nesta altura, ainda não tinha sido aberto o canal de denúncias anónimas, que resultou em 50 relatos validados de assédio moral e sexual. Questionada pelo Observador, Catarina Preto não quis comentar a situação.
“Tenho histórias para contar, mas tenho também um exame da Ordem para fazer”
O Observador falou com várias alunas que disseram ter histórias para contar. No entanto, mesmo de forma anónima, estes casos não são revelados. A primeira justificação é simples e é dada por uma das alunas: “Há detalhes muito específicos que podem levar o professor a identificar quem está a falar”. Depois, contam, estes alunos têm medo de represálias que podem refletir-se nas notas finais ou até no futuro, no mercado de trabalho.
“Tenho histórias para contar, mas tenho também um exame da Ordem para fazer. O que fazemos aqui acaba por nos perseguir no futuro“, contou outra das alunas, referindo ainda que “existe um sentimento de impunidade” por parte de alguns docentes.
Pelos corredores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa há histórias que se cruzam e que são contadas por vários alunos. “Uma das primeiras coisas que nos dizem quando entramos é para ter cuidado com este ou com aquele professor, porque há histórias de se meterem com alunas”, conta outra das jovens. E há relatos de um episódio em que um professor impediu a saída da aluna da sala onde foi feito o exame, dizendo que mais uns minutos ali poderiam fazer a diferença.
Uma vez, durante uma aula, à frente de 70 pessoas, o professor disse ‘você para brasileira até escreve muito bem'”, relatou outra das alunas.
De acordo com a ata a que o Observador teve acesso, um dos docentes que faz parte do Conselho Pedagógico referiu, para demonstrar a dimensão do problema, que falou com seis alunas, escolhidas “arbitrariamente”. “Das seis, cinco confirmaram casos de assédio moral e sexual na faculdade, algumas delas na primeira pessoa”, lê-se no documento. Entre os relatos estão casos de mensagens enviadas a horas tardias e de conteúdo inapropriado, tendo em conta a relação professor-aluno e casos de “alunas que não fazem os exames orais com determinados docentes, porque são avisadas por colegas mais velhos de comentários ou convites inapropriados”.
“Casos terminam num singelo pedido de desculpas por parte do acusado, o que desmotiva vítimas”
Vários docentes presentes na reunião do Conselho Pedagógico confirmaram ter conhecimento de casos de assédio. Um deles foi, ao longo dos anos, “ouvindo relatos de assédio moral, que lhe foram transmitidos por antigos alunos da Faculdade, já fora do contexto escolar, sendo que os relatos desse tipo de assédio moral são os mais comuns”. Já outro fez referência ao ano letivo de 2014/2015, período em que foi feito um inquérito pedagógico, “onde seria possível que os alunos expusessem falhas pedagógicas ocorridas na sala de aula e em contexto escolar, incluindo situações de assédio”.
Além do medo por possíveis represálias e pelo impacto que uma queixa por assédio poderá ter no mercado laboral, foi apontada pela presidente da associação de estudantes outro motivo que trava as denúncias.
Todos estes casos culminam num pedido de desculpas por parte do acusado, o que desmotiva as vítimas para avançarem com o processo de queixa formal.”
O pedido de desculpa foi, aliás, a única decisão conhecida até agora e confirmada pela direção da Faculdade de Direito, que resultou de uma queixa de um grupo de alunas, em 2020, contra o professor Guilherme W. d’Oliveira Martins. Neste contexto, referiu Catarina Preto, é complicado “o incentivo por parte da associação à realização de queixas”.
Direção pondera enviar denúncias para o Ministério Público
A comissão criada no âmbito do Conselho Pedagógico deu origem a um canal de denúncias que, entre os dias 14 e 25 de março, recebeu 50 queixas anónimas validadas. Por serem anónimas, tal como o Observador noticiou esta quarta-feira, a instituição não pode abrir processos disciplinares aos docentes em causa.
Ao Observador, Paula Vaz Freire, diretora desta faculdade, adiantou que “há um dever dos titulares de cargos públicos, em que quando existem indícios da prática de crime, devem denunciá-lo”. Por isso, a faculdade pondera enviar o relatório feito pela comissão do Conselho Pedagógico para o Ministério Público.