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Rodrigo Simões Cardoso

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Rodrigo Simões Cardoso

Bela Silva. “Para se estar no circuito internacional é preciso ser uma Joana d’Arc”

A viver entre o sol de Lisboa e o empreendedorismo de Bruxelas, tem-se destacado nos últimos anos tanto pelos murais e esculturas de grande escala como pelas colaborações com marcas de lifestyle.

Há mais de 30 anos que a artista plástica Bela Silva, de 56, vem para a fábrica Viúva Lamego, na zona de Sintra, trabalhar. Só aqui chegou, contudo, depois de ir estudar para o outro lado do mundo. Tem sido assim a vida toda: as idas e vindas, o jogo entre a distância e as novas formas de olhar, a evolução. Hoje, diz, é um cocktail de influências. Das Américas à Europa. Incontornável, o lenço que desenhou para a Hermès. Recentemente, criou para a Viúva Lamego o painel de azulejos apresentado na feira de decoração Maison et Objet, em Paris. Em comum entre todas estas peças, a cor, a natureza e a resiliência. Para se estar no circuito internacional, diz, “é preciso ser uma Joana d’Arc”.

O que acontece neste espaço da Viúva Lamego?
Já venho trabalhar para cá há mais de 30 anos. Quando no início dos anos 90 estudava no Art Institute of Chicago, um professor disse-me: “Bela, tu desenhas bem, por que é que nunca desenhaste um azulejo, que faz parte da tua cultura, da tua tradição?”. Nunca tinha pensado nisso. Queria era aproveitar o que o Art Institute tinha para me oferecer. Fiz uma proposta para uma exposição no Museu do Azulejo e a Viúva Lamego deixou-me vir para cá trabalhar.

Como foi essa primeira experiência? O professor tinha razão?
Adorei, foi tudo muito natural. Gosto muito dos vidrados, do brilho, das cores. A distância permitiu-me olhar para as coisas de outra maneira. O professor chamava-se Bob Loescher e era um homem maravilhoso. Dava aulas de história de arte, depois ia jantar connosco, tornou-se um amigo. Foi uma pessoa com quem aprendi imenso e que me marcou muito.

Como foi parar a Chicago?
Estas coisas estão sempre ligadas à vida emocional. Nunca pensei ir viver para a América. Quando era miúda gostava dos desenhos animados da Walt Disney. Sonhava um dia ir trabalhar para lá. Mais tarde, em Nova Iorque, até fui convidada para ir para a Cartoon Network. Mas foi mais o desejo de mudar. Tinha 23, 24 anos. Queria muito ir. Ainda fui ver a área da escultura em cerâmica em Londres. Mas depois conheci um americano no Ar.Co [Centro de Arte e Comunicação Visual] e ele disse: “Bela, por que é que não te candidatas para Chicago?”.

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E depois?
Comecei por concorrer a uma bolsa da [Fundação Calouste] Gulbenkian, mas não ma deram. Vendi o meu apartamento. Deu para pagar um semestre. Depois, lá, tinha os professores todos a querer que eu ficasse. Voltei a concorrer à Gulbenkian e também à Fundação Luso Americana e aí, sim, consegui uma bolsa. Fiz opções que nem sempre foram fáceis.

Isto no final dos anos 80?
Início dos 90s. Numa época muito gira cá, com o Manuel Reis, o Frágil e toda a movida. Cheguei lá sozinha, sem conhecer ninguém. Foi complicado. Depois um amigo, o [designer] Vasco Colombo deu-me o contacto do irmão, o [designer e ilustrador] Jorge Colombo, que me respondeu logo, muito simpático. Acabei por ficar 12 anos, entre Chicago e Nova Iorque.

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A cerâmica era o plano inicial?
Nunca pensei dedicar-me assim à cerâmica. Fazia muito desenho. Há toda uma liberdade. O gesto. O barro tem uma parte técnica muito chata: demora tempo a secar; mesmo as cores não saem bem à primeira. Eu sei que com o tempo vou deixar de fazer isto. Aliás, o ano passado andei bastante mal, com tendinites. Eu sou uma mulher da escultura, de murais. Para dores de costas não há melhor. Uma vez em Nova Iorque tive um encontro com a [artista plástica] Louise Bourgeois, que me disse, “tu és uma mulher de escala”.

E é diferente criar peças de arte e objetos utilitários?
Eu gosto de fazer as duas coisas. Às vezes tem a ver com as escalas, os tipos de acabamentos, se uma peça é para ser reproduzida. Por exemplo, aquele projeto que eu fiz para a [marca francesa] Monoprix: ao criarmos uma peça para ser reproduzida num molde ela vai perdendo a sua impressão digital, fica mais banal.

Perde a marca autoral. 
Se eu pedir a 10 pessoas para cortarem aqui uma folha de barro, todas vão fazê-lo de uma maneira diferente. O gesto é como a impressão digital: é diferente em todas as pessoas. Na reprodução perdemos essa força.

É um aspecto negativo?
Não necessariamente. Ao serem reproduzíveis estas peças tornam-se mais acessíveis e chegam a uma camada social diferente. Isso também é interessante. Por isso é que às vezes faço estas colaborações.

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Como é o processo criativo, há um plano?
Nem sempre. Tenho uma ideia e começo a trabalhar. Depois, é quase como cozinhar: vai-se provando para ver se são necessárias especiarias. A criatividade é isso. Ficamos conectadas a uma parte de nós e a coisa flui. Hoje, o mundo está tão cheio e é tudo tão rápido que ter esse canal desentupido é complicado. Um artista é um ser intuitivo.

Tornou-se mais difícil encontrar esse espaço em que as coisas fluem?
Muito mais difícil. É demasiada informação na cabeça. Depois, não há grande consideração pelos artistas. Viu-se isso durante a pandemia, com os apoios concedidos. As pessoas acham que a arte é uma coisa supérflua, mas foi na música, nos filmes e nos livros que encontraram um escape. Eu para conseguir viver disto tive de ir para o circuito internacional. E para se estar no circuito internacional é preciso ser uma Joana d’Arc. O trabalho de colegas meus, homens, é vendido 10 vezes mais caro que o meu. Isto vê-se na biografia de muitas mulheres artistas. Ainda agora estive na exposição sobre a Joan Mitchell e o [Claude] Monet [na Fundação Louis Vuitton], em Paris, e ela dizia que nos anos 1950, 1960, entre os americanos expressionistas-abstratos, as mulheres para serem aceites tinham de fumar e beber como eles, que lhes diziam que não podiam ser mães porque perdiam a criatividade. Até contei isto ao meu filho, que disse: “Elas não perdem a criatividade; perdem é o tempo”.

Ainda é assim hoje?
Ainda há grandes diferenças.

Mas nota diferença dos anos 80 e 90 para agora?
É muito complicado. Not easy. As pessoas vêem o Instagram e têm a noção de que é tudo cor-de-rosa. Não é – é uma luta. Um artista tem de ter uma capacidade incrível de reinvenção. Quando fui para a América, em 1990, saltei sem ter rede. Uma coisa é ter o apoio financeiro da família; eu não tinha nada. Mas às vezes tem de se arriscar. Ainda assim, a parte da emigração é complicada. As pessoas dizem, “a tua língua é a tua terra”; nós tornamo-nos um cocktail, com um pouco de cada coisa. Muitas vezes na vida, caímos em situações complicadas, seja em termos financeiros ou emocionais, e é preciso rebobinar tudo. Neste momento, na minha vida, a criação é o meu objectivo principal. Mas sendo mulher e sendo mãe, conciliar as coisas é muito difícil.

Ainda mais sendo portuguesa?
Não, isso não. A Lee Krasner fazia de secretária do [Jackson] Pollock. Quando ele morreu é que ela começou a pintar. Parece que numa relação tem sempre de haver alguém a dominar, e não, ninguém tem de dominar ninguém. É importante a comunicação e as pessoas tirarem o máximo partido da vida. Depois, hoje parece que há muita gente em todo o lado. Mesmo para ir a um restaurante: já nada é aquela coisa espontânea, fantástica.

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É igual em Bruxelas?
Os belgas são diferentes neste sentido: são muito empreendedores e correm riscos. Na parte emocional é que não têm nada a ver com um espanhol, um grego ou um italiano. Esteticamente, eu gosto. Têm bom gosto. Em Portugal também há coisas muito boas. Os arquitetos lá fora estudam a nossa arquitetura popular: simples, mas de proporções perfeitas e com as dimensões certas. Para mim, a proporção é tudo. Estamos sempre – como é que se diz? – no borderline…

Na fronteira.
A fronteira entre o ficar bem e o ficar kitsch e feio é muito ténue. O artista pára no right moment. Pode perguntar, “como é que sabe que é o right moment?”. Não sei dizer.

Está aqui hoje consigo o seu pai, que era artesão. A sua mãe também estava ligada às artes manuais. Foram uma grande influência?
O meu pai trabalhava com metal. Quando venho para aqui [Viúva Lamego], ajuda-me, o que é fantástico. Se for preciso fazer um cilindro, uma placa, ele faz. Sempre tivemos esta relação. A minha mãe fazia moldes de roupa. Cresci no meio do saber fazer. Gosto muito dessa parte dos cheiros dos ateliês. Hoje é muito difícil encontrar pessoas que saibam fazer.

O caminho das artes foi, portanto, natural.
Estava sempre a desenhar. Não era, pai? O pior castigo era ficar sem ver os desenhos animados. O leão [da MGM], os desenhos do Walt Disney, os contos de Grimm, Andersen, Os Sete, a Alice no País das Maravilhas – tudo aquilo é mágico.

E depois as Belas Artes.
Depois a vida é feita de encontros. Nunca imaginei ir para Bruxelas.

Como é que isso aconteceu?
Quando estava em Nova Iorque, chegou uma altura em que foi, “ou fico cá para sempre ou vou-me embora”. Acabei por regressar por razões pessoais e aí foi muito difícil. Em Portugal apanhei aquela crise terrível de há dez anos. Entretanto conheci um artista belga com quem me envolvi e pensei, por que não viver na Bélgica? Já tinha 46 anos. Ir de novo para outro país, recomeçar, não conhecer ninguém, procurar a energia. Eu que sou uma mulher do sol, acordar e ver o céu cinzento, não é fácil. Not easy.

E como é que se lida com isso?
Lá está, criamos o nosso mundo. E voilá.

O trabalho que produz lá é diferente do que produz cá?
Às vezes altera as cores. A dada altura o meu trabalho estava a ficar muito escuro e o meu filho chegou-se ao pé de mim e disse: “I think you need to go to Lisbon”. É outra cultura. E depois não se tem a rede familiar, fica-se mais vulnerável. Temos de encontrar a nossa tribo.

Numa entrevista, dizia que em Portugal era mais difícil singrar como artista porque ainda havia uma consciência de classe muito presente. Nota a diferença?
Lá fora estão-se nas tintas para quem é o pai ou a mãe. Muitas pessoas diziam-me que devia mudar o meu apelido. O que não me faltou foram apelidos de namorados estrangeiros que podia ter escolhido para ter um nome mais pomposo, mas mantive o Silva e lá fora adoram. Na América enganavam-se e punham “Bela Silver”. Depois casei-me com uma pessoa cujo apelido era Donna, mas aí já ficava demais: Bela Donna. Não sei como estão as coisas agora por cá, mas sei que para se ser artista e se viver da arte se tem de ir para o circuito internacional. Somos um país pequeno. Não há assim tantas oportunidades de integração da cerâmica.

Como surgiu o lenço da Hermès?
Foi uma pessoa que viu peças minhas numa exposição e depois foi lá ao meu ateliê em Bruxelas. Lá está, apanharam o comboio. De Bruxelas a Paris é uma hora. Pode-se ir de manhã e voltar à noite. Mesmo ir para Londres é rápido e está mais barato do que ir para Paris.

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Então, e foram ao ateliê e…
E gostaram. Eu depois fico um bocado com medo porque, às vezes, quando nos dão temas é uma castração, bloqueia. Eles pediram-me para fazer desenhos que tivessem uma ligação com Portugal. Levei dois, eles escolheram um, e depois fizeram 12 versões. Levaram dois anos a fazer aquele projeto, para estar à venda durante uma estação. As cores são extraordinárias. Continuam a ser o top. Têm esse savoir-faire. Depois pediram outras coisas. A ver se me concentro. Tenho de conseguir ter o meu ateliê de Lisboa, que está em obras há dois anos. Tem sido uma dor de cabeça. A luz do sol dá-me mais energia.

Como foi pegar no lenço?
Foi maravilhoso. Tenho todos. E uso-os.

Portugal neste momento representa o quê para si?
O emocional. Está cá o meu pai, está cá o meu filho. E também aproveito para trabalhar. Estou com uma série de projectos ligados a azulejaria.

Como é que se equilibram essas duas vidas, entre Lisboa e Bruxelas?
Agora fico cá até ao final de dezembro a recuperar energias. Janeiro e fevereiro lá são meses complicados, mas não podemos esquecer-nos que foram eles que inventaram a pintura flamenga. Os belgas têm coisas extraordinárias. Ali, aquilo de que eu gosto mais, é a centralidade: num instante está-se em vários sítios, o que nos permite conhecer mais pessoas e ter mais possibilidades. É importante. Eu já estou numa fase em que muita gente vem ter comigo. Às vezes as pessoas pensam que a emigração é um mar de rosas, e não é. É preciso criar uma certa distância e aproveitar o momento. E nós, o ser humano, estamos sempre no passado ou no futuro; no presente nunca estamos. É preciso criar etapas, objectivos. Eu faço muitas listas do que quero.

Muito pontos por cumprir?
Agora tenho de me pôr mais em forma, criar aqui uns músculos, para poder trabalhar.

Este artigo foi originalmente publicado na revista Observador Lifestyle n.º18, lançada em dezembro de 2022.

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