Ainda está para entender a “reviravolta”, quando não passava de uma aluna, entre outros tantos, na sua escola Secundária no Seixal. Oito anos depois, agradece a insistência certeira do amigo que a levou a inscrever-se, à última da hora, num concurso da Karacter on Tour. “Ainda hoje me diz: “Vês! eu vi em ti o que mais ninguém via“. Este fim de semana, ruma a Milão, para mais uma etapa europeia no circuito das semanas da Moda, e o curriculum ganhou novas entradas.

Nos últimos dias, a manequim portuguesa foi escolhida para ser o rosto da nova campanha mundial da Dior SS23, cujo desfile de alta-costura teve o privilégio de encerrar já este ano. Recentemente, foi também selecionada para ser cara da Givenchy Beauty. De sucesso em sucesso, dentro de portas e lá fora, acumula capas como a Country & Town House, em 2020; a presença em campanhas mundiais, como Swarovski, Lâncome, Benetton, Nike, Stradivarius e Bershka: e ainda editoriais em publicações como Elle, Man Reppeler, Harpers Bazaar, ou Vogue Austrália. Falta mencionar a idade. E logo pensamos nos planos para depois. “Tenho 22 anos, tento não me pressionar tanto em escolher já alguma coisa.”

Como é que funcionava esse Karacter Model Tour, que venceu em 2015?
Há todo um processo de seleção a ser feito ao qual eu não fui… Normalmente, tratam disso no começo do ano. Nessa altura não estava sequer inscrita, mas tinha uma amigo que estava lá na agência e ele perguntou-me se eu estava interessada em lá ir.

Tinha 15 anos?
Sim, estava naquela fase má, em que não se sabe o bem o que se quer, lembro-me de recusar. Eu não passei pela fase de formação, de bootcamp, quando nos ensinam algumas ferramentas, mas depois estive lá em agosto, o concurso era no mês seguinte.. Sei que fui numa terça e o desfile final era no sábado. Não sabia desfilar, não sabia fazer absolutamente nada, mal sabia andar de saltos. Entretanto acabei por ganhar, não estava nada à espera. A partir daí tive a minha primeira viagem internacional, a Milão.

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Quanto tempo depois?
Foi uns meses depois, talvez no início de 2016, mas antes disso já tinha feito a ModaLisboa, em Portugal, e ainda alguns testes fotográficos.

No Instagram escrevia que foi na ModaLisboa que começou tudo.
Foi o primeiro desfile, lembro-me perfeitamente, em 2015. Foi a primeira vez que fui exposta a tantos flashes, câmaras, luzes, pessoas. É por isso que guardo a ModaLisboa num sítio especial do meu coração porque foi onde tudo começou, de facto.

Recorda algo especial dessa estreia?
Não há um momento específico. Era muito tímida, confesso, lembro-me de estar num canto sem falar com ninguém porque era muito acanhada, não sabia comunicar com os outro. Só conhecia o meu booker, alguns outros modelos com quem eventualmente me tinha cruzado, mas não conhecia assim muita gente.

Uma mudança radical para alguém tão jovem. Fale-me um pouco das suas origens.
Os meus pais nasceram em Cabo Verde, vieram para Portugal há uns anos, eu já nasci cá. Estava no décimo ano do secundário quando comecei, tinha acabado de entrar.

Que planos tinha na altura?
Ambicionava trabalhar em algo relacionado com advocacia ou psicologia. Hoje vejo-me menos em Direito, mas daqui a uns anos talvez me veja em algo relacionado com ciências sociais. Continuo a ter vontade de voltar a estudar.

Só tem 22 anos mas essa fase posterior, ou complementar, à moda é algo em que pense?
Sim, sou muito nova e tenho todo um futuro pela frente que gostava de explorar noutras áreas; ter negócios meus. Tenho 22 anos, tento não me pressionar tanto em escolher já alguma coisa, mas tenho isso na cabeça, porque de facto nunca se sabe o dia de amanhã.

Na nova campanha mundial da Dior para esta primavera-verão

Continua a prevalecer aquela ideia de que as manequins começam muito novas?
Ainda começam com 14, 15, muito na flor da idade, apesar de sentir que já se vêm algumas meninas a começarem com um pouco mais de idade. Talvez mais 16, 17. Há toda uma legislação em Paris que impede que se participe em Fashion Weeks se não forem seguidas certas regras, de idade, peso, etc. Isso está a ser tido em conta.

Sente um ambiente de maior proteção às manequins?
Eu noto isso, até quando comparo os meus 15 anos com a atualidade. Sinto que há uma comunidade mais disposta a ajudar. Nunca estamos sozinhas. Há sempre alguém à volta. Quando comecei, era muito mais difícil sentir-me abraçada por outras companheiras de trabalho.

É um meio pouco solidário?
Lutávamos por nós e não estávamos tão dispostos a ajudar quem estava à volta. Provavelmente, até estávamos, mas eu era tão nova que não tinha a capacidade de analisar que tenho agora.

Muita competição, também?
Claro, porque no fim de contas estamos a trabalhara para nós, e todas nós queremos chegar lá a cima. Apesar de achar que o companheirismo ajuda bastante no processo e torna tudo muito mais fácil. Mas claro que há toda uma competição sempre a acontecer. Percebo de onde vem a solidão.

Sentiu muito isso, para lá da novidade, do glamour, das viagens?
No início foi muito complicado para mim. Lembro-me de ficar sozinha e de chorar, chorar… “Oh meu Deus, vou ficar tanto tempo fora”. A minha primeira grande viagem sozinha foi a Paris e lembro-me de questionar como é que ia conseguir passar ali um mês inteiro sozinha em setembro, outubro, no meio da escola.

Isto porque continuou a estudar.
Sim, eu comecei a trabalhar em 2015 e só acabei de estudar em 2018. Depois do secundário fiquei por ali. Agora é que penso em voltar. Na altura, em Paris, foi muito à base de chamadas com a família, com a minha mãe, amigos; de tentar distrair-me na rua, passear. Eu tinha recolhimento obrigatório num apartamento destinado às modelos, devia lá estar pelas oito, no máximo. Foi um mês bastante complexo. Vi muitos filmes e séries, coisas que não me obrigavam a comunicar com os outros, até porque o meu inglês na altura não era ótimo.

Falava da família, como aceitaram todas estas mudanças com uma idade tão nova?
Nenhum dos meus pais estava à espera disto. Quando eu disse que queria começar a seguir uma carreira internacional deve ter sido algo muito controverso, porque era uma menina de 15, 16 anos, que ia viajar e pôr a escola para trás. A minha mãe não estava muito de acordo, mas consegui dar-lhe a volta, faltar alguns dias com o apoio da minha escola. Eu tinha uma declaração que me permitia ausentar do país; pedia alteração de datas de exames, etc. Acho que houve uma gestão boa entre a minha vontade e o desejo dos meus pais de que eu fosse bem sucedida naquilo que eu quisesse. Apesar de hoje olhar para trás e pensar que certas coisas podiam ter sido feitas de outra forma.

Fotografada por Sophie Steininger

Por exemplo?
Se fosse futebolista, ou trabalhasse noutra área de desporto, talvez tivesse tido mais facilidades. Nós não temos o benefício do estatuto de atleta. É uma questão que penso que podia ser melhor analisada, porque de certa forma também estamos a estudar e a representar o país. Mas consegui fazer as duas coisas. Só gostava que no futuro fosse tomado mais em conta, para os futuros modelos.

É a única na moda entre os irmãos?
Sou a única, eles acham graça porque são mais novos, é engraçado verem até onde eu cheguei. Eu aparentava tudo menos ser modelo.

O que é isso de aparentar tudo menos ser modelo?
Primeiro, era maria rapaz, andar de saltos e vestidos para mim era impensável. Logo ali era uma forma de eliminar a possibilidade. Depois, tinha imensa dificuldade em comunicar com desconhecidos, era super tímida, dava respostas sem qualquer interesse. Estava naquela fase da adolescência. E depois gostava muito de ajudar os outros, daí o interesse pela psicologia. Acho que me via mais nisso do que a usar a minha imagem como ferramenta de trabalho.

Falava da ambição que qualquer manequim tem de chegar ao topo. Quando se tem 22 anos e se é a cara da campanha mundial de uma marca como a Dior, o que é hoje para si chegar ao topo?
Acho que já cheguei àquilo a que chamava “chegar lá a cima”, já trabalhei com marcas que ambicionava desde que comecei, nomeadamente trabalhar com a Dior. Lembro-me de ver um documentário sobre o Christian Dior e de o achar o génio, ainda nem tinha trabalhado com eles, e agora pensar que foi possível é incrível. Desfilar para a marca é um privilégio. Apesar de pensar que podia lá chegar, a verdade é nunca me vi nesta posição. Ter a possibilidade de fechar o desfile de alta costura em janeiro foi como um sonho tornado realidade. Provavelmente foi dos pontos altos e dos momentos de que mais me orgulho. Mas o “chegar lá a cima” é sempre relativo, depende da fase em que estamos. Neste momento estou lá em cima, claro que quero subir mais mas também estou satisfeita, feliz com o que consegui.

A encerrar o desfile de alta-costura da Dior

O que é essencial para manter esta maré?
Diria que muito auto cuidado, tratar de nós por dentro e por fora, ter tempo para exercício físico. Fiz atletismo muito tempo, sempre gostei de correr, ainda tenho um personal trainer, com quem tento treinar sempre que estou em Portugal. Lá fora é mais complicado. Tento ter uma alimentação equilibrada, não corto em tudo, incluo miminhos, não sou a pessoa mais rigorosa com isto, e sei que às vezes também mereço uma coisa menos saudável. Faço muitas coisas, gosto de ler, comecei a tocar piano, gosto de massagens para aliviar tensões, das viagens fora do trabalho, de experimentar comidas novas. Tudo isto me mantém saudável e feliz com a aparência.

Hoje já passa mais tempo fora que em Portugal?
Passo muito mais tempo lá fora do que em Portugal. O janeiro todo estive em Paris, a fazer a Semana da Moda, em fevereiro também. Estive uma semana em Portugal mas viajo já este fim de semana para Milão. Não tenho muito tempo. Quando cá venho é para dar um olá a alguns amigos, à minha mãe, respirar fundo um bocadinho, mas basicamente é só alterar as roupas da mala, como se costuma dizer.

Falemos da diversidade, um tema tão em voga nos dias que correm, moda incluída. O facto de ser portuguesa e ter origens cabo-verdianas é um assunto lá fora?
Não tanto, cada vez se encontra mais profissionais portugueses lá fora, cabeleireiros, maquilhadores, há mais oportunidade de conhecer novas pessoas. A representatividade ainda é muito baixa mas começa-se a ver mais diversidade. Acabamos por não dar tanta relevância ao encontrar um português mas mais alguém da outra parte do mundo, é isso que me faz feliz. Mas claro que é sempre bom encontrar alguém a falar português ou ver cabo-verdianos, o que é sempre reconfortante.

Na capa da Country&Town House

Já passou por episódios desconfortáveis, de discriminação, por exemplo?
Já, já, de vez em quando nota-se isso.

Com marcas, criadores, colegas?
Diria não tanto dentro das marcas, mas nos países em questão, quando passamos tempo fora. Acabamos por conhecer a realidade local, as pessoas, e pode ser mais problemático. Tive um episódio menos bom com uma marca mas já deixei isso no passado. Comigo, não me posso queixar, sempre fui bem tratada, nunca nenhuma marca ou criador foi desagradável, e agradeço por isso, mas vejo muito acontecer. Tento ajudar a pessoa a meu lado, porque sei que no início da carreira somos novos e temos medo de falar, de ser mal interpretados.

E de perder trabalhos?
Claro, porque qualquer modelo tem medo de deixar de ser contratada por uma determinada marca. Acabamos muitas vezes por não revelar o nosso desagrado. Por isso é que tento sempre ajudar. Já estive no lugar dos mais novos e sei que é um mundo muito individualista.

Confessa que mal sabia andar de saltos altos, mas conhecia algo deste mundo? Tinha noção dos nomes, dos criadores, das marcas?
Não conhecia assim tanto, tinha pouca ideia das marcas que hoje desfilo e aprecio. Conhecia nomes grandes mas pouco mais. A moda nunca foi de facto algo que sonhei.

Na campanha da Givenchy Beauty

Consegue perceber o que a levou no fim de contas a ir àquele concurso em 2015?
Até hoje não sei o que me deu para ir aquele concurso, e ter esta reviravolta na minha vida. Porque eu imagino-me sempre a dizer que não! (risos).

Que lhe diz hoje aquele amigo que tanto insistiu?
Ele é irmão do meu cunhado e sempre que nos encontramos diz-me: “Vês, eu vi em ti o que mais ninguém via!”. Tenho que admitir que estava certo. Agradeço-lhe imenso ter depositado essa confiança em mim.

Vamos vê-la em março a desfilar por cá, na ModaLisboa?
Não tenho a a certeza. Mesmo que não seja a desfilar, se estiver por cá, tento sempre dar um saltinho e falar aos meus bookers, dar um beijinho aos modelos novos, a quem me viu crescer. Fiz a ultima edição mas desfilar não prometo.

Entre editoriais, capas, desfiles, que momentos mais marcantes recorda destes últimos anos?
O meu primeiro desfile com a  Dior, o ano passado. Fechar o desfile da Dior é o episódio mais feliz até agora. E tive a oportunidade de ver a Rihanna, que estava grávida na altura. Sempre gostei muito dela.

Na capa da Portuguese Soul, pela Appicaps

Por acaso dizem-lhe que é parecida com a Rihanna? As semelhanças são imensas.
Muita gente diz isso! Já estou habituada. Acho que é o maior elogio que me podem fazer. Ela é linda, e ao vivo também, transborda uma energia contagiante.

Conseguiu falar com ela?
Não consegui falar com ela mas tenho um vídeo em que sorri para mim (risos). Tinha imensos seguranças à volta. Também recordo a Austrália, onde estive há 4 anos. Foi a primeira vez a passar tanto tempo sozinha, dois meses fora, com uma diferença horária de 12 horas. Na altura, estava a começar uma relação, foi super complexo. Penso sempre que é importante ter alguém que tenha muita compaixão e entenda que este é um mundo muito intenso. Mas tudo se consegue fazer. Fiz a fashion week lá, conheci muita gente, descobri-me, foi a primeira vez que fui sozinha a um museu. Tinha vergonha de fazer imensa coisa sozinha. Isso fez-me perceber que sou independente que consigo tomar conta de mim.

Foi uma das boas lições da vida de manequim?
Exato, porque não é fácil passar tanto tempo sozinha. Mas deu certo. E as viagens, claro. O ano passado estive na Coreia do Sul. Outros episódios…. também já conheci imensas manequins, mas…

Carla Pereira por Viviane Sassen, para a Dior

Nada bate a Rihanna.
Nada, de todo! Foi o momento alto conseguir ver alguém que tanto admiro. Não posso metir que foi um ponto alto da carreira (risos). E, claro, todos os amigos incríveis que fiz na indústria.

É fácil fazer e manter amizades numa indústria como esta?
Não é fácil, de todo, pelo menos para mim, estamos sempre muito longe, é difícil conjugar isso e criar proximidade. Por isso prezo muito quem me acompanhou e consegue perceber a minha ausência. É a eles e à minha família que dedico tudo isto.

Já voltou à secundária do Seixal?
Não, tenho imensa vergonha (risos). Um dia, talvez. De vez em quando recebo mensagens de professoras. No outro dia estive no McDrive e encontrei uma menina que fazia atletismo comigo, era da escola, e que me reconheceu. Estes pequenos momentos fazem-me feliz. É sempre bom deixar uma pegada. Bolas, as pessoas realmente sabem quem eu sou!