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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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"Castelo Surrealista": 350 obras para descobrir a grande constelação Mário Cesariny

Quando trocou o verbo pela pintura, Cesariny não deixou de fazer o que sempre fez: laborar nas imagens, procurar iluminações. É essa sua outra forma de poesia que o MAAT dá a conhecer nesta exposição.

Quem, a partir de dia 5, entrar no MAAT para ver a exposição Castelo Surrealista, desde 2002 a maior exposição dedicada ao poeta e pintor Mário Cesariny, terá que atravessar algumas salas da nova exposição de Joana Vasconcelos. Muitos talvez se fiquem por ali, entre brilhos, luzes, tamanhos e o triunfo do kitsch na arte portuguesa. Muitos visitantes nunca terão visto Cesariny (que também era Vasconcelos, mas de outra família) e muitos não quererão ver. Outros, é certo, sentir-se-ão desapontados com a “pobreza” da parafernália de Cesariny, como quem sai de uma festa hollywoodesca e entra num ferro-velho.

Nada a temer. Isto fala-nos sobre a arte e a cultura, as suas formas, os seus métodos. O poeta bem sabia e por isso tratou de se fazer desaparecer e arranjou um galerista num centro comercial em Almada e outro em Torres Novas. Quando João Soares ofereceu casas e ateliers a artistas, Cesariny disse que o lugar “era novo de mais”, era “limpo de mais” e usou-o como armazém. Mobilizado pelo seu fascínio pelo híbrido, pelas metamorfoses e alquimias que a alma coze em lume brando, as suas obras são pequenas, feitas de materiais pobres, juntando o velho, o feio, o lixo, o fragmento. Não adornam, desafiam.

Ao atravessar a exposição  de Joana Vasconcelos para entrar na casa do surrealista, saímos do domínio da arte com potencial para ser “mediatizada”, instagramável, para uma obra destinada a ser “pensada” a partir de traços, vestígios, fulgurações, feita para achar o novo no meio do já visto, pois, como nota Emília Pinto de Almeida, na obra plástica do poeta surrealista, “há o elogio do desvio contra a coerência, o furto contra a propriedade”. É quase contra o luxo e opulência de Joana Vasconcelos que se ergue, à proa do navio de espelhos, esse grande corsário chamado Mário Cesariny de Vasconcelos, “who knows enough about it”.

O "Castelo Surrealista" abre-se para cerca de 350 obras que, segundo o curador João Pinharanda, "procuram contextualizar a obra do poeta no seu tempo, nas suas afinidades"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Que os dois coincidam no mesmo espaço, neste ano da graça de 2023, não deixa de servir para nos mostrar que houve (há?) aqueles que não se fizeram autores mas leitores, recetores, intercetores, que nunca abandonaram a sua posição precária, numa arte que nasce dentro de ausências, ruturas, humílimas interrogações. Assim, o gigantesco anel de princesa à porta do MAAT, que serve também de cenário para as fotografias de quem passa, não caberia neste castelo surrealista, surrealizante, habitado por fantasmas, quase todos mortos.

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O Castelo Surrealista abre-se para cerca de 350 obras que, segundo o curador João Pinharanda, “procuram contextualizar a obra do poeta no seu tempo, nas suas afinidades eletivas, na sua relação com outros artistas surrealistas portugueses e estrangeiros e outros que tiveram uma influência determinante na obra plástica de Cesariny”. A mostra inaugura ao público esta quinta-feira, dia 5, e fica patente até 11 de fevereiro.

A genealogia bastarda do poeta

“Pintar é mais libertino, muito mais. Quer dizer muito mais libertador (…) fazer desaparecer é a minha alegria. Deixar apenas a marca da minha passagem”, disse um dia Mário Cesariny de Vasconcelos, esse homem que era mais do que um poeta, era uma “máquina de passar vidro colorido, um copo…”. De facto, a grande força da sua poesia é a sua capacidade para criar imagens fortes, híbridas, metamórficas, onde ressoa a memória do mundo desde Lascaux, aos “aquamotos” de Alexandre O’Neill, às Iluminações de Rimbaud, à poesia matemática de Vieira da Silva, às vozes divinas mediadas pelos lábios de Santa Teresa d’Ávila. Praticar o desregramento dos sentidos, vagabundear para fora da literatura, experimentar, experimentar sempre, até como forma de se auto-vigiar, para não se tornar nunca “um poeta ao domicílio”, mas “um desregrador de almas”.

Esta ideia de "Castelo Surealista" foi ele buscá-la a André Breton, usou-a num texto sobre Vieira da Silva e agora os curadores recuperaram essa ideia para construir esta mostra que procura entrar na casa/quarto/covil, na rua Basílio Teles, onde este verdadeiro príncipe escrevia, pintava, fumava, recebia amigos, amantes, mas sobretudo olhava com ironia para o país.

Foi porque teve sempre uma feroz exigência consigo mesmo que a certa altura da sua vida deixou de escrever poesia, tornou-se antes pintor, antologiador, alquimista do trânsito amoroso entre os objetos, as matérias. Aos que não lhe perdoavam esta decisão, justificava-se: “A musa pôs-me os cornos”. Nunca saberemos se essa era a expressão de um luto ou de uma libertação. A verdade é que contra os que o consideravam um pintor diletante, hoje é percetível que a pintura, as colagens, as assemblages sejam, antes, uma continuação da sua poesia. O verbo tornado cor, linhas de água, desenhos, intervenções sobre objetos pobres, quotidianos, velhos à procura de uma imagem disruptiva, estranha, capaz de problematizar a arte, o tempo, a política, os regimes artísticos, as fronteiras entre disciplinas.

Pensada como um castelo, uma imagem recorrente na obra do poeta, esta ideia de Castelo Surealista foi ele buscá-la a André Breton, usou-a num texto sobre Vieira da Silva e agora os curadores recuperaram essa ideia para construir esta mostra que procura entrar na casa/quarto/covil, na rua Basílio Teles, onde este verdadeiro príncipe escrevia, pintava, fumava, recebia amigos, amantes, mas sobretudo olhava com ironia para o país. Numa das colagens expostas pode ver-se a Torre de Belém e a seguinte inscrição que podia ter sido escrita para os jovens portugueses de agora: “Ir a Belém, não olhar a quem… e emigrar”.

Na exposição está presente o espírito sarcástico, malévolo, deliciosamente mal-comportado, em tempos de ditadura do bom gosto e dos bons modos

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Dentro deste castelo onde se entra pelas portas de madeira da casa do poeta abre-se uma constelação, onde imagens remetem para novas imagens, onde cada nódulo brilhante no firmamento da poesia e da arte remete para outro, criando uma ramificação gloriosa entre pintores e poetas, filósofos, loucos, ascetas, amigos. A lista é longa, cerca de uma centena de obras desta mostra pertenciam à coleção particular de Cesariny, ou pertenciam a amigos e ex-amigos, dos dois grupos surrealistas ao Café Gelo, ou obras vindas do Museu de Arte Antiga, que ele não escolheu, mas que remetem para a forma como ele sempre soube incorporar a tradição na modernidade, onde cada nova obra, cada novo poema vem integrar o diálogo interminável dos homens, criando um universo plural no qual palavra e imagem se fundem, se complementam.

Como escreveu Emília Pinto de Almeida, uma das mais interessantes pensadoras da obra de Cesariny, para ele “a imaginação, ao invés de inventar, liga, coordena. É a condição palimpséstica […] que na intervenção surrealista acolhe o grande e o pequeno, o belo e o feio, o erudito e o popular, tudo reabilitando. Colagem de vivos pegados aos mortos, capaz de iluminar o fundo humano de todos os séculos”. Procurando uma fidelidade ao pensamento de Mário Cesariny, os curadores desta exposição procuraram refazer a genealogia bastarda do poeta, juntando gente tão diferente como artistas do Renascimento, a jovens artistas da atualidade, entre eles Vasco Araújo, João Pedro Vale, Nuno Alexandre Ferreira, Duarte Belo, Nuno Costa Felix.

“Quando o pintor é um caso à parte”

Para Cesariny, uma das relações mais importantes e constantes da sua obra e da sua vida manteve-a com a pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva. Uma ligação de aluno fascinado, mas atento e crítico, e uma mostra com uma obra maior que a vida. As imagens de Vieira da Silva foram determinantes tanto para o poeta como para o pintor Mário Cesariny e sobre ela o artista produziu vários ensaios críticos, alguns deles publicados no livro As Mãos na Água, A Cabeça no Mar. Num deles pode ler-se: “No entanto, esta pintura [a de Vieira da Silva] é herdeira secreta da mais importante revolução visual que nos legou a poesia do século XIX, as Iluminações, de Rimbaud. E o fogo que acende sozinho não é o do tempo seco naturalista no campo: é a luz prometaica, dos alquimistas, só conseguida após toda uma vida de labor contínuo…”.

Além das pinturas, aquamotos, sismofiguras ou linhas de água de Mário Cesariny, podem ver-se obras de Cruzeiro Seixas, Isabel Meirelles, Fernando Lemos, Alexandre O'Neill, Mário Henrique Leiria, Ana Hatherly, Paula Rego, entre outros. Mais do que uma exposição, esta é uma carta de Mário Cesariny aos artistas do futuro.

Face a esta pintora-poeta que foi, claramente, um dos grandes amores de Mário Cesariny, é desapontante que a exposição do MAAT só conte com duas obras da artista, obras que, de longe, não mostram, não aludem à centralidade do universo Vieira da Silva na constelação Mário Cesariny. Sendo a pintora também portuguesa, não se percebe porque não está ela mais representada.

“Quando o pintor é um caso à parte” é uma frase que Cesariny escreveu no reverso de um quadro. Escrever frases sarcásticas, blagues, ditos non sense, ou pintar no reverso dos quadros foi uma das práticas do poeta e que agora o dispositivo montado deixa ver, criando na exposição um espaço para mostrar também o espírito sarcástico, malévolo, deliciosamente mal-comportado, em tempos de ditadura do bom gosto e dos bons modos. Também podem ser vistos os muitos panfletos, folhas volantes, manifestos, sátiras que publicou com Luís Pacheco, como Afixação Proibida ou Manifesto do Real Quotidiano, cadavre-exquis, documentos pessoais…

Além das pinturas, aquamotos, sismofiguras ou linhas de água de Mário Cesariny, podem ver-se obras de Cruzeiro Seixas, Isabel Meirelles, Fernando Lemos, Alexandre O’Neill, Mário Henrique Leiria, Vespeira, Pedro Oom, José Escada, Gonçalo Duarte, Malangatana, Breton, Jean Debuffet, do surrealista romeno Vitor Brauner, de Ana Hatherly, Paula Rego, entre outros. Mais do que uma exposição, esta é uma carta de Mário Cesariny aos artistas do futuro.

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