Uns minutos de aquecimento para passar ao — fortíssimo — ataque. Aníbal Cavaco Silva foi convidado para falar na Faculdade de Arquitetura de Lisboa sobre o pacote que aprovou há exatamente 30 anos, enquanto primeiro-ministro, para acabar com as barracas e promover habitação digna, e foi os méritos do seu programa que começou por lembrar. Mas não demorou a passar a uma análise muito crítica do Governo — dentro e fora da habitação –, a quem apontou “falhanços”, um historial de promessas incumpridas, falta de credibilidade e propostas “absurdas”.

Com Luís Montenegro e Carlos Moedas na plateia da sessão organizada pela Câmara de Lisboa (ao lado de outros autarcas, alguns do PS), Cavaco Silva lançou-se à análise às medidas do Governo — e não deixou pedra sobre pedra. Logo para começar, criticando o anúncio com “grande estrondo” do novo pacote de medidas da Habitação, para resolver uma crise que, na visão do antigo primeiro-ministro e Presidente da República é “resultado do falhanço da política do Governo no domínio da Habitação nos últimos sete anos”, com elevados “custos sociais”.

“Não faltaram planos ao Governo” — nem faltou ironia a Cavaco Silva — “apresentados à comunicação social com pompa e circunstância, que ficaram no papel e no Powerpoint, sem que um só secretário de Estado assumisse a responsabilidade”, atirou.

E apesar de até ter admitido que há medidas positivas à mistura no pacote do Governo — assumiu concordar com o fim dos vistos Gold, uma medida positiva “óbvia” — explicou quais são, na sua perspetiva, alguns dos problemas de fundo do Executivo e que põem em causa a eficácia das políticas que anuncia.

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Por um lado, sentenciou Cavaco, o Governo tem “um problema de credibilidade”. “A credibilidade em política é definida como o grau em que pessoas e mercados acreditam que as políticas anunciadas são de facto cumpridas”. Depois, disparou: “Como o historial do Governo não é positivo em matéria de cumprimento de promessas, o novo programa sofre de um problema de credibilidade”. E essa credibilidade, insistiu, leva muito tempo — e consistência — para recuperar; no caso do Governo, o “conselho” de Cavaco é mesmo que “se encoste à credibilidade das câmaras, colocando-as no centro da resolução da crise”.

Com apenas pequenos goles de água a marcar as pausas entre a sucessão rápida de críticas, continuou a deixar os seus “conselhos”: o Governo deve “afastar a absurda ideia de fazer do Estado um agente imobiliário ativo” e perceber que os senhorios, tal como os “livros” ensinam, não são um instrumento político e social, ao contrário dos impostos e das transferências públicas; e deve deixar os “preconceitos ideológicos” de lado e perceber que tem de envolver os privados, porque a oferta pública não basta.

Mas nem assim é provável que o novo programa do Governo “tenha sucesso”, lamentou Cavaco. Isto porque, apontou, além da falta de credibilidade há outra lacuna de fundo neste Governo, que põe em causa o seu sucesso: a falta de confiança. E aí voltou ao ataque: “O Governo tem feito o possível para corroer a confiança dos investidores”. Para alimentar o “monstro” da despesa pública corrente, continuou, o Executivo altera compromissos legais, regras e impostos — e “um poder político que muda as regras do jogo que definiu de acordo com as conveniências perde, como é óbvio, a confiança dos investidores”.

Além disso, o Executivo conseguiu ainda dar mais dois golpes nessa confiança, continuou Cavaco: por um lado, pondo “em causa o direito de propriedade”, com medidas como a do arrendamento coercivo. Sobre isso, Cavaco foi corrosivo e, a propósito do conflito entre o direito à propriedade e o direito à Habitação, atirou, provocando risos na sala: “Os marxistas ignorantes das regras de economia de mercado dirão que se proceda à coletivização da propriedade privada. Deixemo-los em paz com a sua ignorância”.

Por isso, mesmo que o Executivo acabe por recuar nessa “ameaça” ao direito de propriedade ou nos planos para congelar rendas, “o mal está feito”, garantiu. Tudo porque os investidores “esclarecidos” conhecem “o pensamento do Governo e o que é capaz de fazer”. Além disso, ironizou, não deixa de ser surpreendente que o Governo “não tenha tido discernimento para perceber que a máquina burocrática do Estado não tem capacidade para executá-lo”.

Diagnóstico final: para o antigo primeiro-ministro, é “muito provável” que este programa tenha pouco sucesso e que no fim da legislatura a situação social não mude muito em relação aos problemas atuais. A única fé que Cavaco demonstrou foi nos presidentes de câmara — “Deposito neles toda a minha confiança” — já que no Governo não tem nenhuma.

Para acabar, deixou mais um recado à plateia recheada de autarcas: se o Programa Especial de Realojamento teve, em 1993, sucesso isso foi graças à capacidade do Governo e das autarquias de se entenderem e independentemente das “divergências” partidárias “trabalharem em conjunto para alcançar um bem maior”. “Os desafios do presente são diferentes, mas a capacidade para os ultrapassar resultará sempre da vontade do Governo de se aliar às autarquias num objetivo nacional”, avisou, numa altura em que boa parte da sala já se levantava para o aplaudir.

O anúncio de Moedas e os avisos dos autarcas: “Senhorios, fiquem tranquilos”

Cavaco tinha recorrido, minutos antes, a uma citação do segundo volume da biografia de Jorge Sampaio (que era o presidente da Câmara de Lisboa durante o segundo mandato de Cavaco em São Bento) para defender esse ponto, lembrando a necessidade de articular com as câmaras municipais os programas de Habitação — numa altura em que os planos do Governo já foram duramente atacados pelas maiores autarquias. “O PER é vital para curar a maior úlcera de Lisboa e vem confirmar a tese de Sampaio de que a Câmara Municipal de Lisboa só tem a ganhar em colaborar com o poder central”, leu.

E a ideia foi transversal às várias intervenções dos autarcas que estavam ali presentes. A começar por Carlos Moedas, que fez inúmeros agradecimentos aos representantes das várias forças políticas que estavam ali e sublinhou que o PER foi um programa “único” porque “juntou” todos. Recordando a sua chegada a Lisboa, quando era “um miúdo de Beja, que chegava em 1988 — lembro-me bem da imagem das barracas na encosta do Casal Ventoso, a primeira a imagem da cidade” — elogiou o programa que disse representar capacidade de “execução”, uma política “personalista” e também “pragmática” — “procurou envolver todos, e para mim isso é essencial”.

E mesmo que admita ter ficado “um bocadinho zangado” com o Governo, acredita que essa zanga é “construtiva” para o país: “As autarquias têm de estar envolvidas. Temos de estar acima da ideologia“. De novo, recordando que Sampaio foi, na altura, um “apoio” para o programa de Cavaco e para que fosse possível concretizá-lo.

Moedas aproveitou ainda para fazer um balanço do seu mandato na área da Habitação e deixar um anúncio: haverá em Lisboa um novo pacote de 85 milhões de euros, através do Plano de Recuperação e Resiliência, para investir nos bairros municipais, a juntar aos 40 milhões que já lhes tinham sido alocados este ano. Mais uma vez a mesma ideia: “Somos capazes se estivermos unidos nas várias forças políticas”.

Disse-o depois de ter ouvido, na mesa redonda que antecedeu a sessão de encerramento, vozes de cores políticas diferentes: participaram os presidentes das câmaras de Matosinhos (Luísa Salgueiro, do PS, também preside à Associação Nacional de Municípios), Cascais (Carlos Carreiras, PSD), Loures (Ricardo Leão, PS), Oeiras (Isaltino Morais, independente) e o vice-presidente da câmara do Porto, Filipe Araújo.

Em comum frisaram os elogios aos exemplos do PER, mas também se ouviram algumas críticas veladas ao novo programa do Governo — Carreiras defendeu que o PER não tinha “complexos ideológicos e isso fez toda a diferença na sua implementação”: “Quando colocamos a ideologia à frente da resolução dos problemas das pessoas, normalmente dá disparate. Muitos têm a Constituição sempre na ponta da língua, mas só houve um primeiro-ministro [Cavaco Silva] que cumpriu a Constituição”.

E Isaltino fez rir a plateia declarando que não é preciso haver “histeria” da parte dos senhorios com a proposta do arrendamento coercivo, porque “aquilo não vai funcionar minimamente, não tem hipótese — fiquem tranquilos”. Elogios mais convictos ao dinheiro que virá do PRR: “Aí aplaudo o Governo como aplaudo Cavaco”.

No final, Montenegro veio dizer aos jornalistas que alinhava com a ideia da falta de credibilidade do Governo, que pode “minar” este programa e outros objetivos estratégicos — restará ao Executivo ser “consequente” com a viabilização das propostas do PSD sobre Habitação e usá-las para “eliminar” problemas na sua própria proposta. A essa hora, Cavaco Silva já tinha dado o guião — e a Montenegro coube concordar com os ataques “justificados” e “fundamentados” do antigo líder do PSD ao Executivo.