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Tarde e a más horas. É assim que o período aparece na vida de uma atleta de alta competição. Se a rapariga começar cedo na vida de desportista, é provável que o treino intenso e a ausência de gordura corporal atrasem o aparecimento da primeira menstruação. Uma vez presente, se não for controlada por uma pílula, pode aparecer em qualquer altura — inclusive durante uma competição. Foi isso que aconteceu a Anais Moniz, estrela portuguesa de triatlo. A 5 quilómetros de acabar a corrida — a parte que faltava a seguir à natação e ao ciclismo — o período decide aparecer sem ser convidado e o desfecho não foi agradável.
Os ginecologistas dizem que há formas de contornar o mal-estar da menstruação, mas admitem que a perda de sangue pode prejudicar as atletas. A culpada chama-se hemoglobina, que diminui com a hemorragia e que é quase determinante no rendimento da atleta. Quanto mais hemoglobina, melhor. Com a hemorragia, os níveis de hemoglobina diminuem drasticamente. Por isso é que há quem faça transfusões de sangue, considerado doping, para ter uma performance melhor.
O período está agora em cima da mesa, graças à nadadora Fu Yuanhui que confessou ter tido uma prestação abaixo das suas expectativas nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro devido ao aparecimento do período na noite anterior. Fê-la ficar “mais cansada” e “fraca”, factos que condicionaram a sua prestação. Afinal, qual é o poder deste fenómeno fisiológico na vida de uma atleta?
“Há atletas a terem o período durante provas. Eu fui uma delas”
Anais Moniz esteve perto de voar até Pequim para os Jogos Olímpicos de 2008, mas só havia um lugar para Portugal e esse foi atribuído a Vanessa Fernandes. Em 2012 também falhou a qualificação para os Jogos de Londres e foi aí que decidiu abandonar a alta competição. Ficou no currículo o título de campeã mundial de juniores de triatlo em 2005 (Japão) e campeã europeia em 2006 (França); e ficaram também várias histórias de desconforto pelas “coisas de mulheres”.
"Fartei-me de contar azulejos e fui para o triatlo"
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Anais começou na natação aos 10 anos e chegou a fazer dois treinos por dia, antes e depois da escola. Era representada pelo Belenenses. Aos 15 anos fartou-se de “contar azulejos” e entrou para o triatlo (natação, ciclismo e corrida), seguindo as pisadas da mãe e da irmã. Foi campeã por Portugal a nível europeu e mundial.
“Eu não tinha sorte nenhuma, acredita!”, começa por exclamar ao Observador, entre risos. “Aparecia sempre no fim de semana da prova, parecia que era de propósito”. Anais não podia tomar a pílula devido a um problema de saúde, e não tomava medicamentos para suportar as dores, porque era hipocondríaca. Por isso, sujeitou-se sempre ao que o corpo queria, quando queria.
“Participei em imensas taças com o período: em 2008, em 2009… Em março e abril tinhas 3 ou 4 provas, obviamente que algumas vezes calhava. Em junho e julho eram outras 5 ou 6, não havia como fugir”. Isso implicava competir com vários obstáculos: “Fiz várias provas em que não me sentia bem. Fico sempre mais cansada, com dores de cabeça, sinto-me muito fraca e isso notava-se. Aquilo incomoda”.
O corpo decidiu mesmo testá-la não um dia antes, não umas horas antes, mas em plena prova a acontecer. “Uma vez o período chegou-me quando estava a correr. Foi no México. Estava de fato de banho, como nós competimos, e a 5 quilómetros de acabar a prova vem-me o período. Não estava nada à espera. Então foi assim: de quilómetro a quilómetro ou de dois em dois havia pessoas a dar garrafas de água e eu agarrei em duas e pus nas pernas para não se notar“, lembra.
Para Anais, a história não tem nada de extraordinário. “Já vi várias atletas a terem o período durante a parte da bicicleta e da corrida. É super desconfortável. Mas pronto, somos mulheres, o que é que se há de fazer?”
“Ia dizer que não consegui uma medalha por causa do período?”
Se a prestação corria menos bem, era justificada a treinador e jornalistas por “não estar nos seus dias”. Eram “as pernas que naquele dia não estavam no seu melhor”, eram “outros fatores internos”. E ficava por aí. “Só contava aos meus pais e aos meus amigos que estava com o período.” Contar aos restantes nunca foi opção.
“Nós somos maioritariamente treinadas por homens. Eles não percebem muito bem essa parte. Eu não falava com eles sobre isso, tinha vergonha, é difícil ter aquela confiança. Se fosse uma senhora a treinar era uma coisa, mas com um homem não tinha tanta abertura. É preciso maturidade e na altura, com 17 ou 18 anos, não a tinha”. Por isso elogia na atleta chinesa aquilo que nunca conseguiu fazer e de que hoje se arrepende: falar naturalmente de uma coisa da qual ninguém tem culpa.
“Se voltasse hoje a competir, contava ao meu treinador. Mas na alta competição é difícil. Tens o teu clube, os teus patrocinadores, os teus amigos, um país inteiro a olhar para ti. Naquele dia calha-te o período e sabes que não vais estar em condições, mas o que é que fazes? Vais dizer publicamente: ‘Ah, desculpem lá, não consegui uma medalha porque estava com o período?‘ Há coisas que nós não conseguimos controlar, mas será que o meu patrocinador vai perceber que o meu rendimento está pior porque estou cansada por causa do período?”
Anais denuncia a “pressão” que cai nos ombros dos atletas de alta competição para “não desapontar” a equipa com quem trabalham. “O triatlo, por exemplo, é uma modalidade individual e aí dependes de ti. Não podes desiludir. Porque acima de tudo estão os resultados”, sentencia a ex-atleta de 27 anos.
É por isso que há quem tenha “pesadelos” com o aparecimento do período. Em janeiro de 2015, a conhecida tenista britânica Heather Watson perdeu o primeiro round no Australian Open e justificou-o com as náuseas e a fraca energia próprias das “coisas de raparigas”.
Tara Moore, também tenista britânica, contou ao The Telegraph que já passou várias provas menstruada e que já sonhou com o pior a acontecer no Torneio de Wimbledon, um dos mais importantes: “No Wimbledon temos de vestir branco. Sangrares na roupa é uma cena que te preocupa. Morres de medo que isso aconteça, é um pesadelo. Eu já tive pesadelos com isso”.
No início do ano passado, a atleta Kiran Gandhi participou na Maratona de Londres, menstruada, e sem um artigo que absorvesse o fluxo, como um penso higiénico, um tampão ou um copo menstrual. O corrimento ficou assim à vista de todos.“Correr mais de 40 quilómetros com um chumaço de algodão entre as pernas parecia-me tão absurdo… Por isso decidi deixar sangrar livremente enquanto corria”, explicou.
Perda de sangue = menos rendimento? E a pílula?
Para a ginecologista e obstetra Marcela Forjaz, não é aceitável que a atleta não ponha o treinador a par do seu ciclo menstrual. Aconselha “transparência total” para que os profissionais que rodeiam a desportista possam trabalhar com as condicionantes que têm, visto que, em casos extremos, a menstruação “pode condicionar tanto como uma dor na perna ou num braço”. Mais: “E uma pena que se não faça nada para alterar essa situação, porque há meios para contornar os problemas que a menstruação traz”.
A pílula é a solução. Vários especialistas ouvidos pelo Observador recomendam a toma da pílula combinada ou progestativa, consoante o caso da atleta, que deve ser analisado ao pormenor. O objetivo é regular o ciclo menstrual para que a atleta não esteja menstruada na altura de uma prova.
Fernanda Águas, presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia, é perentória: “Hoje em dia há solução para isso. Há tantos tipos de pílula, tantas dosagens. A pessoa tem de experimentar e ir vendo com qual se sente bem, tudo antes de uma competição, para estar descansada no momento da prova. E a maior parte das pílulas não engordam — isso é um mito”, remata.
O impacto depende de mulher para mulher. “Há mulheres que têm o período e nem notam, passa-lhes ao lado, e há outras que chegam a faltar ao emprego. De uma maneira geral, as atletas até passam melhor os períodos do que as não atletas por causa da libertação de endorfinas durante a prática do desporto, que dão bem estar. Até têm mais tolerância à dor. Mas, lá está, cada caso é um caso”, sublinha Marcela Forjaz.
Além da pílula, podem ser indicados fármacos para fazer face aos sintomas da menstruação ou do síndrome pré-menstrual. “Se a queixa é ansiedade, pode ser medicada com um ansiolítico. Se a queixa for retenção de líquidos, poderá fazer um diurético”, sugere a ginecologista. Mas a escolha é sempre da atleta e o período pode mesmo surgir, com todas as consequências, em altura de provas.
A hemorragia resulta de um processo natural que poderá passar despercebido, mas também poderá ter ter impacto. “Se tiver uma hemorragia muito abundante e dolorosa, a hemoglobina baixa e isso, numa atleta de alta competição, pode prejudicar o desempenho pessoal, quando milésimos de segundo são determinantes”, explica Fernanda Águas.
A presidente da Sociedade Portuguesa de Ginecologia admite que “os níveis de hemoglobina são importantíssimos para o rendimento, porque mais hemoglobina significa mais rendimento”. A explicação é esta: a hemoglobina transporta oxigénio para as células, logo, mais hemoglobina significa mais oxigénio e mais “combustível” para a performance. É por isso que as transfusões de sangue são uma forma de doping, acrescenta Fernanda Águas.
Um fenómeno semelhante à anorexia
A idade média do aparecimento da primeira menstruação está nos 12, 13 anos mas, nas atletas de alta competição, é provável que apareça mais tarde. “No desenvolvimento do eixo hormonal, que conduz à puberdade, é muito importante a quantidade de massa gorda e o peso da rapariga. Há um limite a partir do qual ela está apta a menstruar e abaixo do qual não está”, explica Marcela Forjaz.
A massa gorda, os ovários e o hipotálamo regulam a produção de hormonas. Como as atletas têm tão pouca massa gorda, esse sistema fica desregulado e provoca a ausência de menstruação — chamada de amenorreia. O mesmo acontece com as mulheres que sofrem de anorexia — a massa gorda baixa drasticamente, ficam com um peso abaixo do normal e a menstruação é interrompida. No caso das atletas, entram também na equação o treino intensivo e o stress a que estão sujeitas.
Podem acontecer duas coisas: a primeira menstruação demorar mais anos a aparecer do que a média ou a atleta ficar longos períodos sem menstruar. Ambas acontecem quando os treinos são intensivos e quando a prática é constante — isto não se verifica em quem só pratica ginásio algumas vezes por semana ou corre ao fim de semana.
“O fenómeno está mais descrito nas ginastas, que são geralmente pequeninas e magrinhas”, esclarece Fernanda Águas. Marcela Forjaz acrescenta “as maratonistas, que correm todos os dias vários quilómetros”. Como não acumulam qualquer massa gorda, a menstruação tarda a chegar.
E há problema se a primeira menstruação aparecer muito tarde? “Há. Faz mal ao organismo porque um nível de estrogénio muito baixo durante muito tempo pode fazer mal, sobretudo na parte óssea e cardiovascular. É uma hormona muito importante nas mulheres”, explica a presidente da SPG.
Diana Ferreira, médica de Medicina Desportiva, admite que a relação entre a menstruação e o corpo constantemente ativo de uma atleta não é fácil. Além da amenorreia (ausência de menstruação por um longo período de tempo), pode também verificar-se oligomenorreia, que consiste em menstruação pouco frequente (5 a 6 vezes por ano). Ambas verificam-se mais nas atletas do que nas mulheres que não são atletas: “A incidência de oligomenorreia e amenorreia em mulheres desportistas é de 10 a 20%, superior à da população normal (5%), e em algumas modalidades pode mesmo chegar aos 50%”, aponta a médica.
Mas nada está perdido. Palavra de Fernanda Águas. “É reversível. Se elas reduzirem o treino, se tiverem uma boa alimentação e se recuperarem o peso, os ovários voltam a funcionar. Enquanto aqueles fatores persistirem, as consequências persistem. Quando os fatores mudarem, as consequências também são outras”.