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O crime de fugir à morte

A Hungria está a cinco dias de criminalizar as travessias ilegais da fronteira. "Ninguém sabe o que vai acontecer com esta lei", diz uma advogada. Para já, centenas chegam a Röszke: "Um inferno".

João de Almeida Dias, em Röszke (Hungria)

A princípio, Ibrahim não acredita no que lhe dizemos. Estamos na fronteira com a Hungria e com a Sérvia, mais precisamente em cima da linha ferroviária que, antes da crise dos refugiados atingir o pico deste verão, servia para ligar os dois países.

Vários homens com coletes refletores verdes desdobram-se em esforços para terminar a vedação mandada erguer pelo governo húngaro, liderado por Viktor Órban. Os rolos de arame farpados — que, uns em cima dos outros, ficam a 1,80m de altura — já estão prontos, mas ainda falta construir uma segunda vedação, sustentada por postes de aço com mais de três metros.

Mas aquilo em que Ibrahim quase não quer acreditar é que a vedação de Órban não passa por cima da linha ferroviária. Entrar na Hungria, afinal, é tão simples quanto meter um pé à frente do outro.

“Desculpe, senhor, onde é que nós estamos?”, pergunta-nos, ainda incrédulo.

“Hungria”, respondemos-lhe.

“A sério? Está a falar a sério? Isto é a terra da Hungria? República da Hungria?”, diz, não muito longe de dois polícias húngaros que, com uma máscara cirúrgica na cara, olham para os respetivos telemóveis.

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Perante uma resposta positiva, Ibrahim emociona-se. “Obrigado, muito obrigado, senhor. Que Deus o abençoe.” E logo a seguir acrescenta, apontando para um grupo de oito pessoas, entre as quais quatro crianças: “Esta é a minha família”, diz mostrando um sorriso que lhe revela os dentes partidos do lado direito da boca. E, com a mão por cima dos ombros do filho do meio, com sete anos, avança em direção ao campo improvisado para a recolha de refugiados de Röszke.

“Esta lei é muito conveniente para o governo húngaro”

Se Ibrahim tivesse chegado cinco dias mais tarde, a 15 de setembro, podia arriscar uma pena até três anos de prisão. A legislação foi largamente aprovada no parlamento húngaro — o Fidesz, partido no governo, tem mais de 66% dos assentos parlamentares — no início de agosto e está agora prestes a entrar em vigor. Além de punir aqueles que chegam à Hungria de forma ilegal, tal como quem estragar a vedação de arame farpado, o novo pacote legal também prevê uma pena até 20 anos para aqueles que facilitem esta travessia. E, por fim, o exército vai poder passar a ser chamado para proteger a fronteira.

“Muito sinceramente nós não fazemos ideia de como é que isto vai ser, porque nunca houve nada assim. E as coisas mudam a uma velocidade muito grande”, diz-nos Timea Kovács, advogada da ONG de defesa dos Direitos Humanos Comité de Helsínquia.

“Esta legislação é muito conveniente para o governo húngaro, porque em teoria afasta estes refugiados do nosso país ao tornar as coisas mais difíceis”, diz. “Assim, se alguém entrar na fronteira de forma ilegal e depois pedir asilo, será mais fácil negar-lhe esse pedido, porque já não se trataria de um refugiado mas sim de um criminoso.”

Esta não foi a única alteração feita na lei húngara desde que a crise dos refugiados começou. Uma das primeiras foi a inclusão da Sérvia na lista de países considerados seguros para refugiados — algo que o Alto Comissariado da Nações Unidas para os Refugiados rejeita e que apenas a Hungria considera em toda a Europa. O resultado prático é que, assim, a Hungria pode rejeitar asilo mais facilmente àqueles que chegam ao país vindo da Sérvia, tratando de os deportar para lá. “Todos os dias são recambiadas 60 pessoas para a Sérvia”, diz-nos Kovács.

Timea Kovács nunca teve tanto trabalho. A sua função é dar aconselhamento legal a refugiados e a requerentes de asilo — algo que, até ao ano passado, fazia com relativa facilidade. Nessa altura, entravam cerca de 3 mil refugiados na Hungria por ano, diz-nos. Só na quarta-feira, o dia em que Ibrahim e a família finalmente assentaram os pés no espaço Schengen, mais de 3 100 fizeram o mesmo.

"O nosso governo está sempre a mudar tudo, não têm capacidade para gerir esta situação. E o pior de tudo é que não têm nenhuma ideia do que estão a fazer. Eu pelo menos não entendo."
Timea Kovács, advogada do Comité de Helsínquia em Szeged, na Hungria

O mesmo pode dizer-se das autoridades em Szeged, a maior cidade no Sudeste húngaro que faz fronteira com a Sérvia. “Neste momento o departamento de imigração de Szeged tem cerca de 15 pessoas a tratar das papeladas para esta gente toda entrar. Ora, isto não é possível”, diz-nos Kovács, ao volante do carro. Divide-se entre chamadas, ao mesmo tempo que acelera numa estrada nacional. O telemóvel não pára de tocar. Desta vez porque o ministro-adjunto húngaro acabara de dar uma novidade numa conferência de imprensa: o governo já não ia construir campos que serviriam de zonas de transição para refugiados, conforme a lei de 15 de setembro previa. “Vê? É impossível saber o que vai acontecer. O nosso governo está sempre a mudar tudo, não têm capacidade para gerir esta situação. E o pior de tudo é que não têm nenhuma ideia do que estão a fazer. Eu pelo menos não entendo.”

Já Ibrahim tem o plano bem estudado. De pé no campo de Röszke, enquanto o resto da família descansa em esteiras de campismo que foram deixadas no chão, este sírio com pouco mais de 40 anos explica-nos com um ar quase blasé quais serão os seus próximos passos. Ou, pelo menos, aquilo que pode estar à sua frente. “Então, agora ficamos aqui. Não sei se temos autocarro já ou se temos de dormir aqui no campo durante a noite. Logo se vê. Se houver autocarro, vamos. Não sei se é para nos levar para a Alemanha ou para nos tirarem as impressões digitais.”

Sinceramente, eu gostava de saber como é que o governo húngaro iria reagir se, por acaso, os refugiados cumprissem as leis à risca e ficassem cá todos. Aí é que iam ser elas.
Timea Kovács, advogada do Comité de Helsínquia em Szeged, na Hungria

Nem todos os requerentes de asilo têm a mesma postura em relação à recolha das suas impressões digitais. Este passo faz parte do procedimento regular de pedido de asilo e, de acordo com o Tratado de Dublin, tem de ser feito no país de entrada dos refugiados no espaço Schengen. Assim que as dedadas de alguém nesta situação são recolhidas, essa pessoa é obrigada a aguardar durante um período que pode durar até cerca de seis meses para receber uma resposta ao seu pedido. Porém, muitos requerentes de asilo saem do país de entrada antes de este período terminar.

Algo que acontece agora com a maioria das pessoas que fogem da guerra e que chegam à Hungria, uma vez que a Alemanha lhes abriu as portas. Assim, a Hungria não faz nada para os parar. Mais uma vez, Kovács diz que “isto é muito conveniente para o governo”. “É como se eles dissessem ao resto da Europa: ‘Bem, nós tentámos, mas eles querem mesmo sair de cá, não temos maneira de os parar’. Sinceramente, eu gostava de saber como é que o governo húngaro iria reagir se, por acaso, os refugiados cumprissem as leis à risca e ficassem cá todos. Aí é que iam ser elas.”

“Röszke para nós é um piquenique”

“Isto para nós é um piquenique, a sério”, diz-nos Ibrahim, enquanto o seu filho mais velho corre para junto da família. Traz uma manta vermelha, deixada no chão por outros refugiados que partem para a fila dos autocarros, e corre para a mãe, a quem acaba por entregá-la.

Ibrahim tomou a decisão de sair da Síria a 10 de agosto, quando as autoridades lhe disseram que tinha de sair da casa dele. “Não disseram porquê, nem como, nem quando é que tinha de ser. Só disseram que eu tinha de sair e pronto.” O sírio desconfia que alguém próximo de Bashar al-Assad, o Presidente da Síria, está à procura de fazer fortuna depois de a guerra acabar. “Querem ficar com as casas e com os terrenos todos. Quando a guerra acabar vai haver muita gente a ficar rica com a construção de casas, bazares…”

Não foi o primeiro encontro que teve com as autoridades sírias. No final de dezembro, já perto da passagem de ano, Ibrahim foi raptado por aquilo que acredita serem pessoas leais ao regime. “Eles disseram que eram da al-Qaeda, mas eu não acredito. Nunca os vi a rezar”, conta. Passou cinco dias sob cativeiro. Deixaram-no todo nu dentro de uma cela e por vezes torturavam-no. O mais frequente era espancarem-no e esmurrarem-no na cara — a razão de, quando nos ofereceu um sorriso à entrada da Hungria, mostrar metade dos dentes desfeitos. “Raptaram-me pelas minhas ideias. Eles sabem que eu sou democrata, que sou pela democracia e que sou contra o ódio, contra esta guerra estúpida. E raptaram-me porque queriam o meu dinheiro.” Assim o tiveram, “uma quantia alta”. Libertaram-no nos primeiros dias de janeiro.

"Raptaram-me pelas minhas ideias. Eles sabem que eu sou democrata, que sou pela democracia e que sou contra o ódio, contra esta guerra estúpida. E raptaram-me porque queriam o meu dinheiro."
Ibrahim, refugiado sírio

A vida em Damasco, a capital síria, tornou-se impraticável. A comida começava a escassear, a eletricidade falhava a cada hora e nunca havia a certeza de que se chegaria ao dia seguinte com vida. “O meu pai morreu com um tiro de morteiro que lhe atingiu a casa. Assim, do nada. Eu era diretor de produção de uma fábrica de garrafas de hidrogénio, era uma pessoa com sucesso. Estudei na Universidade Americana de Damasco, a melhor que havia no país. Tive resultados perfeitos em todos os exames, podia ter ido viver para a América quando havia paz se quisesse. A minha vida era fácil, mas deixou de o ser. Agora continuava a ter dinheiro, o dinheiro nunca foi um problema para mim. Mas não havia paz.”

A decisão de sair da Síria foi feita à mesa de uma pizzaria no centro de Damasco, juntamente com o cunhado. Pegaram num telemóvel para ver o mapa da Europa e viram qual era o melhor trajeto. Assim o seguiram, mas com ajuda. Diretamente da Síria, o irmão de Ibrahim trata de pesquisar quais são os melhores caminhos para, um dia, se chegar à Alemanha e quais as melhores alturas para fazê-los.

Foi assim que foram dar àquela falha na vedação, na linha ferroviária que liga o Sudeste da Hungria com o Norte da Sérvia. “O meu irmão falou-me daquilo, disse-me que era para começar a andar ao longo da linha em Subotica [na Sérvia] e que depois era só atravessar até à Hungria. Mas nunca pensei que fosse assim tão fácil. Ouvimos coisas terríveis da Hungria e da polícia de cá. Mas agora que olho para isto, e depois de tudo aquilo por que pássamos… A sério, isto é um piquenique”, conta, a caminho da fila para os autocarros no campo de recolha de refugiados improvisado em Röszke.

"Eu era uma pessoa com sucesso. Estudei na Universidade Americana de Damasco, a melhor que havia no país. Tive resultados perfeitos em todos os exames, podia ter ido viver para a América quando havia paz se quisesse. A minha vida era fácil, mas deixou de o ser. Agora continuava a ter dinheiro, o dinheiro nunca foi um problema para mim. Mas não havia paz."
Ibrahim, refugiado sírio

Improvisado é, aqui, palavra-chave. O campo de Röszke não é mais do que isso: um pedaço de terra, entre plantações de girassol e milharais. Por ali haver uma abertura na vedação, as autoridades húngaras decidiram fazer um ponto de recolha. É nele que os refugiados têm de esperar por autocarros que os levam até campos de registo — onde, por fim, e sob um regime de detenção, podem pedir asilo. Há quem tente evitar os campos, numa tentativa de chegar diretamente a Budapeste para, depois, seguir para a Alemanha. Mas não é fácil. Além de todas as estradas em volta terem polícias que examinam cada carro que passa, também há helicópteros a sobrevoar a zona.

“Deus faz-nos destas coisas. É um teste”

“Até há três ou quatro dias não havia aqui nada, era um inferno”, contou-nos Julia, uma voluntária norte-americana que foi uma das primeiras a dar apoio no campo de Röszke. “Só depois de isto ter aparecido na televisão é que vieram para cá estas ONG todas. Isto agora parece um circo, está cheio de câmaras e de alemães hippies que querem ajudar mas que não fazem ideia do que estão a fazer, ninguém se coordena. É um desespero. Chegámos a ser três voluntários para mil pessoas. À noite o frio era tanto que tínhamos de queimar tudo. Plástico, papéis nas Nações Unidas a explicar os procedimentos para requerer asilo… tudo.”

"Só depois de isto ter aparecido na televisão é que vieram para cá estas ONG todas (...). Chegámos a ser três voluntários para mil pessoas. À noite o frio era tanto que tínhamos de queimar tudo. Plástico, papéis nas Nações Unidas a explicar os procedimentos para requerer asilo... tudo."
Julia, voluntária norte-americana no campo de Röszke

Há lixo por toda a parte. A terra castanha-escura está inundada de cascas de banana já pretas, pedaços de plástico, garrafas de água esmagadas, sapatos estragados e roupa suja com lama. Há uma fila com mais de cem metros, onde centenas de pessoas esperam por autocarros e, por trás, cerca de cinquenta tendas de várias cores. Há crianças a correr por todo o lado, como se estivessem num recreio da escola. Dois rapazes, certamente com menos de dez anos, digladiam-se numa luta de espadas em que as armas são os ferros que dão estrutura às tendas.

O sol já começa a descer e Ibrahim está longe de apanhar um autocarro. A noite avizinha-se fria e é quase certo que vai chover durante horas. “Não faz mal, eu sou um homem de fé. Deus faz-nos destas coisas. É um teste. No final vamos passar com boa nota, tenho a certeza”, diz, interrompendo a conversa. É o irmão que lhe liga para o telemóvel.

“Estou? Mohammad? Já estou na Hungria! Inshallah, é um milagre!”

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Nota: Ibrahim é um nome fictício

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