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"De Lisboa a Vladivostok." O que significa este sonho antigo de Vladimir Putin?

Medvedev preocupou o Ocidente ao dizer que o objetivo de Putin é uma Eurásia aberta "de Lisboa a Vladivostok". Mas a ideia não é novidade. A história de um sonho antigo que Putin quer concretizar.

Segunda-feira, 19 de agosto de 2019. A cinco dias da 45.ª cimeira de líderes do G7, marcada para a luxuosa estância balnear de Biarritz, na costa basca francesa, Emmanuel Macron recebeu Vladimir Putin no Forte de Brégançon, um palácio na Riviera Francesa que funciona como residência oficial de verão do Presidente francês. Putin não iria participar na reunião do fim de semana seguinte, uma vez que a Rússia havia sido suspensa do G8 em 2014, na sequência da anexação da Crimeia, e o grupo das economias mais avançadas do mundo voltara à sua designação original de G7. Ainda assim, Emmanuel Macron não queria deixar passar a oportunidade de conversar com o Presidente russo no mesmo ambiente estival e descontraído que marcaria a cimeira dos líderes mundiais que se seguiria.

O jornal belga Le Soir descrevia assim o ambiente vivido no palácio de verão de Macron naquele dia: “Esperado pelo casal presidencial nos jardins do Forte de Brégançon, Vladimir Putin chegou sozinho, com um ramo de flores na mão, que, depois de saltar suavemente os últimos degraus da escada, ofereceu à esposa do Presidente. O tom está marcado: estamos num cenário especial, uma espécie de intimidade solene, e tudo acontece como se ele estivesse a responder a um convite de amigos. Na verdade, a ilusão não dura muito, porque após breves minutos de discussão, Brigitte Macron deixa os dois presidentes, que se juntam às suas pequenas delegações e a um pequeno grupo de jornalistas.”

Não era, evidentemente, um almoço de amigos. Mesmo com Putin fora do G7, Macron, o anfitrião da cimeira daquele ano, não queria uma Rússia de costas voltadas para a Europa e focada numa parceria com a China. “Ao convidar Putin para Brégançon, Macron está a apostar, a longo prazo, em desviar a Rússia da China e em vinculá-la à Europa”, analisava o mesmo jornal. Essa intenção de Macron ficou bem clara nas declarações públicas do Presidente francês durante a reunião com Putin. Como recorda o Courrier International, entre referências a Dostoiévski, Macron garantiu, ao lado do homólogo russo: “A Rússia é europeia, muito profundamente, e nós acreditamos nesta Europa que vai de Lisboa a Vladivostok.”

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De Lisboa a Vladivostok: são mais de 10 mil os quilómetros que separam a cidade portuguesa (a capital mais ocidental da União Europeia) e Vladivostok, uma cidade com meio milhão de habitantes que se situa no extremo oriental da Rússia, junto à fronteira com a China e a Coreia do Norte. A expressão “de Lisboa a Vladivostok” ganhou nova atualidade esta semana, depois de o antigo primeiro-ministro e Presidente russo Dmitry Medvedev, um dos mais poderosos aliados de Vladimir Putin, ter indicado que a criação de uma Eurásia aberta será um dos grandes objetivos atuais do Presidente da Rússia — e que a invasão da Ucrânia, com o objetivo de alcançar uma suposta “desnazificação” do país, é um dos passos para cumprir esse sonho.

O desejo de criar uma Grande Europa é um sonho antigo. Num célebre discurso na Universidade de Estrasburgo, em novembro de 1959, o então Presidente francês, Charles de Gaulle, afirmou que seria “a Europa, do Atlântico aos Urais, toda a Europa, que vai decidir o destino do mundo”. Mais tarde, a mesma visão foi apresentada pelo último líder soviético, Mikhail Gorbachev, como caminho de futuro para a relação entre Europa ocidental e Rússia. A ideia de uma Grande Europa, ou Eurásia, aberta de Lisboa a Vladivostok, foi depois acarinhada pela Rússia pós-soviética com um objetivo claro: levar a União Europeia a substituir a aliança com os EUA por uma aliança com a Rússia, excluindo os EUA da ordem de segurança europeia e criando uma poderosa economia continental, capaz de inverter o jogo de forças global.

As declarações de Medvedev quanto aos objetivos de Putin na guerra contra a Ucrânia causaram revolta e fizeram crescer receios na Europa. “Nem Lisboa está segura?”, perguntava esta terça-feira no Twitter o antigo embaixador ucraniano na Áustria, Olexander Scherba. “Um massacre como o de Bucha de Lisboa a Vladivostok, é isso que eles querem dizer”, comentou na mesma rede social o ministro da Defesa da Letónia, Artis Pabrikis. Mas, na verdade, não se pode considerar surpreendente que o Kremlin fale de uma Eurásia aberta, de Lisboa a Vladivostok. Putin nunca escondeu esse seu sonho — e a política externa russa também não.

O plano de Putin para uma Eurásia unida

Ao contrário do que acontece em vários continentes do planeta, não há propriamente uma barreira tectónica entre a Europa e a Ásia. Ambos os continentes estão situados na placa Euroasiática, uma única placa tectónica que abrange toda a Europa continental e a esmagadora maioria dos territórios da Rússia e China. Os Montes Urais, cordilheira que atravessa a Rússia de norte a sul, do Oceano Ártico até ao Mar Cáspio, são habitualmente considerados o limite entre a Europa e a Ásia — mas essa fronteira não corresponde, depois, à divisão entre continentes que se verifica na Turquia, ao mesmo tempo que terá de ser ignorada se os países do Médio Oriente e da Península Arábia forem incluídos na Ásia.

Em suma, a divisão entre Europa e Ásia não é uma fronteira geológica, mas um limite geopolítico. E, ao longo das últimas duas décadas, Vladimir Putin tem apostado na erosão desse limite como modo de reduzir a influência norte-americana na Europa, obter importantes ganhos económicos através da criação de um enorme mercado comum continental e assumir-se como o poder dominante da Eurásia. A criação de uma Eurásia unida é um sonho antigo que Putin tem acalentado publicamente pelo menos desde 2010, ano em que, na qualidade de primeiro-ministro russo, escreveu um longo e detalhado artigo para o jornal alemão Süddeutsche Zeitung explicando precisamente o modo como vê o futuro do maior continente do mundo. Já na altura, o título não deixava margem para dúvidas: “De Lisboa a Vladivostok.”

Putin escrevia na ressaca da grande crise financeira de 2008, pretexto que usava justamente para dizer que o modelo de funcionamento da ordem global já não servia os interesses contemporâneos. “A distribuição da riqueza tem sido extremamente desigual, tanto entre países como entre estratos da população, o que causou a erosão da estabilidade da economia mundial, alimentou conflitos locais e agravou a capacidade da comunidade global para alcançar consensos em relação a problemas agudos”, escreveu Putin. “Esta crise mostrou que, em muitos casos, é necessário fazer reavaliações, considerar os riscos e pensar no desenvolvimento futuro, cuja base não deverão ser valores virtuais, mas reais. Estas estratégias pós-crise estão atualmente a ser desenhadas em todas as potências, incluindo os EUA e a China. A Europa também precisa das suas próprias visões de futuro. Por isso, propomos moldar esse futuro em conjunto, através de uma parceria entre a Rússia e a União Europeia. Isto permitir-nos-ia afirmar conjuntamente o nosso direito ao sucesso e à melhor competitividade no mundo moderno.”

No artigo, escrito ainda antes da anexação da Crimeia, durante uma fase de aproximação entre a Rússia e o Ocidente, Vladimir Putin reconhecia as fragilidades de Moscovo. “Para ser franco, tanto a Rússia como a UE já provaram que são economicamente muito vulneráveis”, escrevia o primeiro-ministro russo. “Isto ficou muito claro para nós durante a crise. A Rússia ainda depende muito de uma economia de commodities. A União Europeia está a colher os frutos da sua desindustrialização a longo prazo e enfrenta o risco real de enfraquecer a sua posição nos mercados da indústria e da alta tecnologia.”

"Estas estratégias pós-crise estão atualmente a ser desenhadas em todas as potências, incluindo os EUA e a China. A Europa também precisa das suas próprias visões de futuro. Por isso, propomos moldar esse futuro em conjunto, através de uma parceria entre a Rússia e a União Europeia. Isto permitir-nos-ia afirmar conjuntamente o nosso direito ao sucesso e à melhor competitividade no mundo moderno."
Vladimir Putin, 2010

Putin apelava, nesse texto de 2010, à necessidade de “usar as vantagens reais que existem na Rússia e na União Europeia” com o objetivo de criar “uma síntese verdadeiramente harmoniosa entre as duas economias”. O artigo era, de facto, um roteiro pormenorizado para a cooperação entre Rússia e União Europeia, com cinco pontos.

Em primeiro lugar, Putin defendia “a formação de uma comunidade económica harmoniosa de Lisboa a Vladivostok”. Como? “No futuro, uma zona de comércio livre e formas ainda mais avançadas de integração económica poderiam também ser consideradas. De facto, isto iria criar um mercado comum continental com uma capacidade de biliões de euros. Obviamente, contudo, é necessário em primeiro lugar todos os obstáculos que ainda impedem a adesão da Rússia à Organização Mundial do Comércio”, escrevia o primeiro-ministro russo. (A Rússia acabaria por aderir à OMC em 2011.)

Vladimir Putin pedia simultaneamente uma “política industrial comum”, com programas partilhados de apoio aos empreendedores e uma valorização da economia euroasiática. “Esta tese não é mais do que um apelo à reconversão da Europa numa enorme plataforma produtiva, uma mega-fábrica tal como a conhecemos dos registos históricos da viragem do último século”, defendia o líder russo. Mas, para uma economia comum funcionar, seria necessário também uma rede energética comum no continente euroasiático.

“Depois do colapso da União Soviética, a Rússia perdeu o acesso direto aos seus principais mercados de exportação. Surgiram problemas com os países de trânsito, que procuraram ganhar vantagens unilaterais a partir da sua posição monopolista”, atirava Putin, já num ataque à Ucrânia, que obtém uma parte considerável das suas receitas a partir das comissões cobradas à Rússia pelo transporte de gás para a Europa. “As disputas conhecidas têm as suas raízes aqui. Naturalmente, esta situação não vai ao encontro dos interesses nem da Rússia nem dos países consumidores dos nossos recursos energéticos.”

Em 2010, a energia era o grande cimento que unia os interesses da Rússia e da UE. “É precisamente por isto que muitos fornecedores de energia e governos europeus, incluindo o governo federal [alemão], apoiaram os planos russos de construir gasodutos no Mar Báltico (o Nord Stream) e no Mar Negro (o South Stream). Depois de esses gasodutos estarem concessionados, o continente europeu terá um sistema diversificado e flexível de abastecimento de gás natural. Não há para mim dúvidas de que todos os problemas artificiais no setor da energia vão passar à história”, dizia então Putin.

Russian President Vladimir Putin Meets Newly Elected Governors

Vladimir Putin quer uma Eurásia unida, de Lisboa a Vladivostok, para excluir os EUA da segurança europeia

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No ano seguinte, seria iniciada a construção do Nord Stream 2, o grande projeto energético entre a Rússia e a Europa, com a Alemanha como principal destinatário. O gasoduto deveria entrar em funcionamento este ano, mas foi suspenso como retaliação pela invasão russa da Ucrânia e os líderes europeus de então, incluindo a ex-chanceler Angela Merkel, têm sido duramente criticados por terem aumentado a dependência energética da Europa em relação ao gás russo. O Presidente alemão, Frank Walter Steinmeier, já reconheceu que foi “claramente um erro” apoiar a construção do gasoduto.

Presidente alemão reconhece “erro” no apoio ao gasoduto com Rússia

No artigo de 2010, Vladimir Putin propunha ainda a criação de programas de intercâmbio académico entre Rússia e União Europeia, a facilitação de parcerias científicas e ainda o fim da necessidade de vistos para viajar entre a UE e o território russo. “O plano para expandir a real parceria entre a Rússia e a UE só está delineado em contornos gerais. A grande questão que agora surge é se a UE estará disposta a discutir e a trabalhar substancialmente num calendário”, apelava Putin, considerando que a Rússia e a União Europeia deveriam ser “parceiros iguais”.

“Este trabalho não pode ser adiado e não podemos perder tempo com formalidades diplomáticas intermináveis”, dizia o primeiro-ministro russo, enfatizando que “a Rússia não tem interesse numa União Europeia dividida, porque isso reduziria indiretamente a influência internacional da Rússia e reduziria a nossa capacidade de confiar num parceiro que representa interesses semelhantes ou idênticos”. Além disso, Putin afirmava ainda que “a reaproximação entre a Rússia e a UE não poderá ser dirigida contra ninguém e não obriga ao enfraquecimento das relações com os parceiros e aliados tradicionais”.

Vladimir Putin procurou legitimar as suas ideias recorrendo ao peso histórico da figura de Helmut Kohl, o ex-chanceler alemão que liderou o processo de reunificação alemã em 1990. “Deixem-me recordar-vos que em 1990 o chanceler alemão Helmut Kohl tomou uma decisão muito corajosa: não esperar que a RDA estivesse preparada para fazer parte de uma Alemanha unida, mas unir imediatamente para que o Ocidente e o Oriente na Alemanha pudessem juntar forças, aprender a viver em conjunto novamente durante o processo que se seguiu de ajustamento mútuo e resolver tarefas comuns”, escreveu Putin. “A história confirmou que aquele passo decisivo estava correto. Hoje, em novas circunstâncias históricas, temos a oportunidade de construir uma Europa unida e próspera. Se definirmos este objetivo, vai ser muito mais fácil chegar a compromissos em assuntos específicos.”

Uma aliança Rússia-UE para excluir os Estados Unidos

Aquele artigo de Putin foi escrito num período de aproximação entre a Rússia e o Ocidente. Depois do fim da Guerra Fria e do colapso da União Soviética, as relações entre Moscovo e os países ocidentais estreitaram-se e a possibilidade de a Rússia se transformar numa democracia liberal apontava para um futuro de prosperidade a nível global, com as principais potências do planeta a estabelecerem relações estáveis entre si. A ideia de uma Eurásia unida “de Lisboa a Vladivostok” ganhou força. A Rússia foi convidada a integrar o G7, transformado em G8, com a convicção de que a adesão ao grupo ajudaria a reforçar o processo de democratização na Rússia.

Aquele período de aproximação entre Moscovo e o Ocidente foi claramente interrompido em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia.

Na sequência da invasão, a Rússia foi alvo de várias sanções económicas por parte do Ocidente e foi suspensa da participação no G7. A retórica inverteu-se e a tensão entre a Rússia e os aliados ocidentais intensificou-se. Em junho de 2021, num novo artigo para a imprensa alemã, desta vez para o jornal Die Zeit, Vladimir Putin acusou o Ocidente de ter rejeitado o caminho de unificação entre a UE e a Rússia, preferindo uma lógica de confrontação a partir da NATO. “Esperávamos que o fim da Guerra Fria significasse uma vitória para toda a Europa”, escreveu Putin.

“Parecia que não faltava muito tempo para que o sonho de Charles de Gaulle de um continente unido se tornasse realidade, não tanto geograficamente do Atlântico aos Urais como cultural e civilizacionalmente de Lisboa a Vladivostok. Precisamente neste sentido, na lógica de criar uma grande Europa junta por valores e interesses comuns, a Rússia queria desenvolver as suas relações com os europeus. Tanto nós como a UE conseguimos alcançar muito neste caminho”, escreveu o líder russo. Em 2015, por exemplo, um conjunto de empresas europeias e russas lançaram inclusivamente a Iniciativa Lisboa-Vladivostok, de que fazem parte desde o ano passado organismos representativos das empresas portuguesas. “Contudo, prevaleceu uma abordagem diferente”, lamentou Putin. “Subjacente a esta abordagem esteve a expansão da NATO, ela própria uma relíquia da Guerra Fria. No fim de contas, ela foi criada na altura com o objetivo da confrontação.”

"Parecia que não faltava muito tempo para que o sonho de Charles de Gaulle de um continente unido se tornasse realidade, não tanto geograficamente do Atlântico aos Urais como cultural e civilizacionalmente de Lisboa a Vladivostok. (...) Contudo, prevaleceu uma abordagem diferente."
Vladimir Putin, 2021

“A causa do aumento da desconfiança mútua na Europa reside no avanço para leste da aliança militar”, escreveu Putin em 2021, criticando as várias expansões da NATO que deixaram os aliados à porta da Rússia e acusando o Ocidente de não cumprir a promessa da década de 1990 de não alargar a aliança para as fronteiras russas. “Gostava de enfatizar uma vez mais: a Rússia defende a recuperação de uma parceria abrangente com a Europa. Há muitos tópicos de interesse comum: estabilidade estratégica e de segurança, saúde e educação, digitalização, energia, cultura, ciência e tecnologia, soluções para problemas climáticos e ambientais. O mundo está a evoluir de modo dinâmico e está constantemente a ser confrontado com novos desafios e ameaças. Simplesmente, não nos podemos dar ao luxo de carregar o fardo dos desentendimentos, mágoas, conflitos e erros do passado.” Oito meses depois, Putin ordenou a invasão da Ucrânia e deu início a uma guerra armada na Europa.

Já em plena guerra, a ideia de uma Eurásia unida de Lisboa a Vladivostok voltou a ser posta em cima da mesa.

“O objetivo é a paz das gerações ucranianas futuras e a oportunidade de, finalmente, criar uma Eurásia aberta — de Lisboa a Vladivostok”, escreveu o antigo primeiro-ministro e Presidente da Rússia Dmitry Medvedev num texto publicado esta semana no Telegram. “O Presidente russo, Vladimir Putin, estabeleceu firmemente a meta de desmilitarização e desnazificação da Ucrânia. Estas tarefas complexas não acontecem todas de uma só vez.”

As palavras de Medvedev, um forte aliado de Vladimir Putin, permitem aceder, pelo menos parcialmente, à resposta à pergunta central desta guerra: o que pretende Putin?

A intenção de criar uma Eurásia unida “de Lisboa a Vladivostok” esconde o desejo de excluir definitivamente os Estados Unidos da ordem de segurança europeia, minando a atuação da NATO, reorientando a Europa para Moscovo e estabelecendo a Rússia como potência capaz de disputar a hegemonia global, resume ao Observador Maria Raquel Freire, doutorada em Relações Internacionais e especialista na política externa da Rússia e no espaço pós-soviético. “Uma das razões fundamentais, mesmo quando Medvedev apresentou a proposta para o novo tratado da OSCE em 2008, é a exclusão dos EUA da ordem de segurança europeia. Os EUA não estão incluídos. Há aqui um duplo posicionamento em relação aos EUA: a sua exclusão da ordem de segurança europeia e a afirmação de uma ordem multipolar, onde a hegemonia dos EUA é disputada pela Rússia”, diz a especialista.

Ao reorientar as alianças da Europa de Washington para Moscovo, a Rússia pretende destruir a NATO — a sua principal ameaça — a partir de dentro. “Ao colocar a ordem de segurança mais centrada na aliança entre a UE e a Rússia, afasta a NATO do cenário”, diz Maria Raquel Freire. Uma união entre a UE e a esfera de influência da Rússia daria origem a um espaço comercial e de segurança que daria mais garantias a Moscovo, uma vez que deixaria de ter uma potência hostil junto às suas fronteiras. Mas o desejo de Putin é também motivado por questões económicas: “Na política externa da Rússia, o receio do isolamento esteve sempre presente. A Rússia tem noção de que precisa de estar integrada, porque a sua economia é demasiado mono-dependente da energia. Precisa de lançar pontes para a reabertura do diálogo.”

No entender de Maria Raquel Freire, Putin está consciente do sucesso que a União Europeia representa, ao contrário do que sucede atualmente com a União Económica Euroasiática (UEE, uma união supranacional que une Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Arménia), que “nunca foi muito forte e agora, no contexto atual, está a enfrentar sérias dificuldades”. Num eventual caminho de unificação entre a União Europeia e a esfera de influência da Rússia, economicamente representada pela UEE, Moscovo “iria sempre acautelar os seus interesses”, diz Maria Raquel Freire. E isso significa garantir o seu lugar de liderança de um eventual bloco euroasiático.

Chancellor Scholz travels to Moscow

O Presidente russo quer retirar os EUA da equação europeia

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“Putin acredita que a Rússia não tem outra alternativa senão manter-se como uma das potências que definem a agenda mundial. A sua ideia de uma ‘democracia soberana’ é a de que uma Rússia sem meios para se defender da pressão externa acabará forçada a adotar padrões ocidentais ou ordens chinesas”, escreveu recentemente o académico russo-americano Nikolas Gvosdev, especialista em geopolítica russa e professor na academia naval dos EUA. “A posição da Rússia enquanto grande potência é definida, em parte, pela sua capacidade de manter um polo euroasiático de poder, mais ou menos coincidente com a antiga União Soviética.”

Para atingir esse objetivo, Putin tem-se multiplicado em estratégias, diz Gvosdev. “Ao longo da sua carreira como primeiro-ministro e Presidente, ele mudou as suas táticas e abordagens rumo a estes objetivos. Nos primeiros anos, teve a esperança de que uma parceria pós-11 de Setembro com os EUA e uma colaboração com a UE para criar um espaço europeu abrangente de Lisboa a Vladivostok levaria o Ocidente a reconhecer a preeminência russa na região — essencialmente, uma divisão em que o mundo euro-atlântico terminaria voluntariamente o seu alargamento a leste no rio Vístula e no litoral báltico”, escreve o académico.

“Quando se tornou claro que, na busca de uma parceria com a Rússia, o Ocidente não estava preparado para consentir qualquer esfera de influência russa, a abordagem de Putin tornou-se mais controversa”, salienta Gvosdev, acrescentando que o período entre a guerra civil na Líbia, em 2011, e a revolução de Maidan, em 2014, afundaram quaisquer esperanças num regresso às relações amigáveis entre a Rússia e o Ocidente. Segundo o académico russo-americano, a existência de uma Ucrânia amigável para Moscovo é um “elemento-chave nos planos de Putin” para estabelecer um foco de poder euroasiático.

“A economia da Ucrânia, os seus recursos e a sua população são cruciais para o sucesso de qualquer União Euroasiática liderada pela Rússia, que é a manifestação da capacidade da Rússia para criar o tal ‘pólo de poder euroasiático’ independente, que é um contraponto à esfera asiática liderada pela China e ao mundo euro-atlântico. As localizações estratégicas da Ucrânia (particularmente a Crimeia), em mãos amigáveis, dão à Rússia um caminho para projetar o seu poder no coração da Europa e no Médio Oriente; em mãos hostis, não só diminuem o poder russo, como também expõem vulnerabilidades críticas no território russo”, resume Gvosdev. “A Ucrânia também tem um papel importante na validação da crença de Putin numa civilização pan-ortodoxa/russa que é distinta, embora relacionada, da cultura europeia/ocidental.”

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Vladimir Putin continua apostado em cumprir o seu sonho antigo de criar uma Eurásia aberta “de Lisboa a Vladivostok”, não apenas pelo desenvolvimento económico do continente, mas sobretudo pelas questões de segurança: excluir os EUA e, por conseguinte, a NATO da equação europeia é o grande objetivo de Putin. É difícil, no contexto atual, saber exatamente aquilo que pensa o Presidente russo. A melhor maneira de conhecer, ainda que parcialmente, os seus pensamentos é através dos testemunhos dos seus aliados — e, sobretudo, dos antigos aliados.

É o caso de Mikhail Khodorkovsky, um antigo oligarca russo que hoje vive no exílio depois de um desentendimento com Putin que lhe custou vários anos de prisão. Em declarações esta quarta-feira à Bloomberg, Khodorkovsky garantiu que, na mente de Putin, a Rússia já está em guerra com os EUA e os países ocidentais — e que o líder russo acredita que a NATO não resistirá caso Moscovo ataque um país mais pequeno da aliança, por exemplo um dos Bálticos. Putin “acredita que a NATO é fraca e que não vai defender os Bálticos” caso a Rússia ataque aqueles países, afirmou Khodorkovsky, salientando que se isso acontecer Putin acredita que “a NATO vai colapsar”, e com ela a influência global dos EUA.

Então, como disse esta semana Medvedev, será possível chegar “finalmente” ao objetivo de criar uma Eurásia “de Lisboa a Vladivostok”, influente no plano global e liderada por Moscovo.

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