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As seis jovens freiras que o Observador entrevistou no locutório do Mosteiro de Santa Beatriz, em Viseu
Ana, Madalena, Isabel, Leonor, Inês e Esmeralda têm entre 22 e 34 anos, são freiras e vivem em clausura dentro das paredes de um mosteiro em Viseu.
Em pleno século XXI, numa altura em que a vida monástica pode parecer um vestígio do passado, optaram por uma forma de vida radical renunciando à vida do mundo.
Quem são estas jovens? O que as levou à decisão de se enclausurarem num convento? E que lugar tem a vida da clausura monástica na Igreja contemporânea?
A poucos dias da chegada do Papa a Lisboa para a JMJ, o Observador entrou no convento para perceber como vão estas jovens viver, à distância, o evento.
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As seis jovens freiras que o Observador entrevistou no locutório do Mosteiro de Santa Beatriz, em Viseu

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

As seis jovens freiras que o Observador entrevistou no locutório do Mosteiro de Santa Beatriz, em Viseu

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Elas são jovens, são freiras e vivem em clausura. Na semana da JMJ, vão fazer a "Jornada no convento"

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Esmeralda precisou de um saco inteiro de gomas para acalmar a ansiedade que sentiu durante a longa viagem de autocarro, de mais de 300 quilómetros, entre Setúbal e Viseu. A jovem tinha completado 18 anos havia pouco tempo e aquela era a segunda grande viagem da sua vida. Nascida na pequena vila de Calulo, 300 quilómetros a sudeste de Luanda, capital de uma Angola em guerra, Esmeralda foi mandada para Portugal pela família com nove anos de idade para cuidar de uma avó em Setúbal. Já nessa altura, a pequena Esmeralda pensava que a sua vida podia passar por uma entrega radical à Igreja Católica — na catequese dada pelos missionários em Calulo já dizia que queria “casar com Jesus” —, mas a vida tinha dado outras voltas antes de se cruzar com a possibilidade de se tornar freira e passar a viver em clausura total.

Agora, muitos anos depois da catequese em Calulo, Esmeralda dava por ela num autocarro rumo a Viseu para se apresentar no Mosteiro de Santa Beatriz, das Irmãs Concepcionistas — a ordem fundada no final do século XV pela alentejana Santa Beatriz da Silva.

A ideia, naquele dia, não era ficar para toda a vida: era apenas uma experiência de oito dias pela qual todas as irmãs concepcionistas passam antes de tomarem a decisão radical de ali passar a viver. Mas mesmo esses oito dias pareciam uma eternidade para Esmeralda, que estava ali mais para fazer a vontade a um sacerdote amigo. “Interiormente, já estava com os meus mecanismos: vou para lá, ele disse-me que é para ficar uma semana, mas eu não me vejo lá uma semana. Fico lá três dias, que é o que eu consigo durante os retiros que faço. Tenho o meu dinheirinho, tenho o meu bilhete e, quando não quiser mais, vou falar com a madre, digo que me quero ir embora e já está”, recorda hoje Esmeralda. Ou melhor: a irmã Esmeralda, de 34 anos. Não foi embora ao fim de três dias — nem o queria fazer ao fim de uma semana, mas teve de ser. Voltaria no mês seguinte, dessa vez com as malas feitas e pronta a encerrar-se na clausura para o resto da vida, depois de vencer as resistências da família e as próprias dúvidas sobre se seria capaz de abdicar da vida agitada que levava até então.

A irmã Esmeralda, natural de Angola, vive hoje na clausura do Mosteiro de Santa Beatriz, em Viseu

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

A irmã Esmeralda conta a história ao Observador sentada no locutório do Mosteiro de Santa Beatriz — a sala do convento onde as irmãs podem receber visitas. É uma sala simples, mas o que impressiona é a enorme grade de madeira ao centro — o sinal da existência de dois circuitos paralelos dentro do convento.

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Quando subimos a escadaria que leva à porta principal do convento, entramos num pequeno hall de entrada com duas portas e um minúsculo postigo. A porta principal, em frente, é a “porta da clausura”. Entrando nela, entramos no mundo de onde as irmãs nunca saem (ou, a bem do rigor, de onde saem apenas em situações excecionais). É através do postigo situado do lado direito dessa porta que uma das irmãs nos faz chegar uma chave, que abre a outra porta, na parede esquerda do hall de entrada. Essa porta dá para o locutório, uma sala muito simples, com uma mesa ao centro, um conjunto de cadeiras, alguns livros num móvel de apoio, uma fotografia do bispo de Viseu, entre outros objetos de cariz religioso. Uma das paredes desta sala é, na verdade, uma enorme grade de madeira, que nos separa de uma divisão gémea daquela onde nos encontramos. É nessa sala gémea, que tem a sua própria porta vinda do mundo da clausura, que encontramos as irmãs.

Sentadas ao lado de Esmeralda estão também Ana, Madalena, Isabel, Leonor e Inês — suas irmãs, não de sangue, mas de vida consagrada. Todas elas são oriundas da região da Grande Lisboa. Algumas são licenciadas, algumas tiveram namorados, algumas passaram por graves crises de fé, outras tinham sérios preconceitos com a imagem da “freira beata”, mas todas, por alguma razão, encontraram a vocação na clausura de um mosteiro e hoje dedicam-se à oração, ao estudo, ao fabrico de doces e bordados e ao cuidado dos animais e da horta. Dizem que são as “raízes” da Igreja, “que não se veem, mas que são necessárias para que a árvore tenha vida”. Ficam “na retaguarda” e no “escondimento”, a rezar pela Igreja e pelo mundo.

No Mosteiro de Santa Beatriz vivem, atualmente, 11 freiras. Apesar de algumas serem já idosas, aquele convento é, essencialmente, uma comunidade jovem: o grupo de seis irmãs com que o Observador conversa tem idades entre os 22 e os 34 anos.

Após uma longa conversa com as seis freiras no locutório, a irmã Maria Isabel, a abadessa do mosteiro, abre ao Observador a porta da clausura. Maria Isabel é uma mulher alegre, que vive ali desde a década de 1980 e que não esconde que cuidar daquela comunidade de jovens irmãs é uma forma de dar corpo ao seu instinto maternal. “Enquanto estavam na entrevista, alguém teve de fazer o almoço, que aqui não há empregados”, ri-se Maria Isabel, rodeada pelas jovens freiras, inteiramente trajadas de hábito branco. “Elas dão cabo de mim”, confessa.

A permissão para entrar pela porta da clausura do Mosteiro de Santa Beatriz é rara e acarreta uma responsabilidade óbvia: estamos a entrar na casa daquelas mulheres, na sua intimidade. É inegável que há algo de místico na experiência de entrar num convento de clausura em pleno século XXI, mas desengane-se quem pensa que é uma viagem no tempo. Na verdade, o convento tem muito pouco a ver com estruturas ancestrais como o Mosteiro da Batalha ou o Mosteiro de Alcobaça, provavelmente os edifícios que mais contribuem para a imagem coletiva do que é um mosteiro. Este mosteiro situa-se num tranquilo bairro residencial na periferia de Viseu e tem um portão, um número de porta, uma campainha e painéis solares no telhado.

Dentro dos muros do convento, situa-se um edifício pintado de branco, com dois pisos, e uma igreja anexa, à esquerda do prédio. O convento tem um claustro, a partir do qual é possível vislumbrar as janelas do primeiro andar — onde se situam as celas das irmãs. Todo o convento é rodeado por espaços verdes, incluindo uma enorme zona agrícola, um grande galinheiro (devido à grande necessidade de ovos para a doçaria conventual), uma área para os animais, um jardim para piqueniques e até um pequeno cemitério, onde estão enterradas as irmãs que já ali viveram no passado. Será aquele também o destino final das seis jovens freiras que aceitaram contar as suas histórias de vida ao Observador.

A irmã Maria Isabel, abadessa da comunidade, abre a porta da clausura ao Observador
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Na comunidade vivem 11 freiras — a maioria delas significativamente jovem
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O interior do convento está longe de se assemelhar aos antigos mosteiros sombrios: parece-se mais com uma casa convencional
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Num quadro de cortiça, além do horário e da distribuição das tarefas quotidianas, estão também os pedidos de oração que chegam ao mosteiro
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A vida comunitária é dedicada, essencialmente, ao trabalho e à oração — mas as freiras também têm tempos de convívio
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A sala de trabalho é onde as irmãs passam uma parte significativa do seu dia
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A irmã Maria Isabel está no mosteiro desde a década de 1980. Abdicou de ter filhos, mas segue a sua vocação maternal no cuidado das jovens freiras
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Afinal, quem são estas jovens? O que leva, nos dias de hoje, uma jovem a escolher a vida de uma freira de clausura? Que histórias têm para contar? Não gostariam de participar da Jornada Mundial da Juventude? No ano em que a juventude católica se reúne em Portugal com o Papa Francisco, na JMJ de Lisboa, o Observador entrou no mosteiro para conhecer a história de algumas das freiras mais jovens do país e para perceber como vão elas viver, a partir da clausura e com recurso à televisão e à internet, o evento que nos próximos dias traz cerca de um milhão de jovens católicos a Portugal.

“Onde é que eu me vim meter?”

Ana Rosário, 30 anos, nasceu em Rio de Mouro, na periferia de Lisboa, numa família que, apesar de católica, não era especialmente praticante. Quando tinha cinco anos de idade, a sua mãe converteu-se a uma devoção cristã mais regular, mas Ana continuava a não achar grande piada à prática religiosa. “Detestava ir à catequese e à missa, era tudo muito silencioso e eu não percebia nada do que estava ali a acontecer”, recorda ao Observador. O momento da conversão deu-se aos oito anos de idade, quando a família de Ana, que cumpria a devoção dos cinco primeiros sábados, se deslocou a Fátima.

Já nessa altura, Ana era uma apaixonada por livros — e decidiu entrar na livraria do Santuário de Fátima. “Vi aqueles livrinhos para crianças com as imagens dos santos na capa e pedi à minha mãe para comprar. Queria trazer os livros todos, mas a minha mãe obrigou-me a fazer uma seleção. Então, pedi o livro da Santa Inês. Pelo caminho até casa, fui a ler esse pequeno livro”, lembra a irmã Ana, no locutório do Mosteiro de Santa Beatriz. “Fascinou-me tanto o testemunho de Santa Inês. Ela é virgem e mártir, morreu com 12 anos. Morreu por ser cristã e por dizer que era esposa de Jesus. Esse testemunho marcou-me tanto que, a partir daí, nasceu a minha vocação religiosa.”

Foi a partir do momento em que leu aquele livro sobre Santa Inês que Ana começou a dizer aos pais que pretendia ser aquela santa do século III. “Queria ser irmã”, recorda a religiosa. “Mais ou menos por volta dos 11 anos, comecei a bater à porta de várias comunidades, a pedir para me receberem, mas toda a gente me dizia que não, porque era muito nova. Aos 14 anos, um sacerdote que já estava farto de me ouvir perguntou-me se eu queria vir fazer uma experiência aqui.” A “experiência” de que as várias irmãs falam é uma proposta vocacional do Mosteiro de Santa Beatriz: passar uma semana no interior do convento, a viver com as irmãs e a experimentar a vida monástica. Foi preciso uma autorização especial, porque ainda não tinha 18 anos de idade. “Insisti tanto, tanto para cá ficar que as irmãs pediram autorização ao senhor bispo e, com autorização especial, deixaram-me entrar aqui aos 14 anos.”

O pior veio depois, quando chegou a casa e disse: “Pai, mãe, eu quero ir para aquela comunidade onde eu estive esta semana.” A insistência foi tal que os pais acabaram por ceder, acreditando que, um dia, a filha se fartaria daquela vida. Mas ficou. Hoje, aos 30 anos, a irmã Ana Rosário do Menino Jesus garante que teve dúvidas sobre se este seria efetivamente o seu lugar — mas que as dissipou na oração. “As dúvidas fazem parte e são fundamentais para alicerçar a nossa vocação. É como as árvores. Quando são sacudidas por uma tempestade, as suas raízes são mais profundas.”

Natural de Rio de Mouro, a irmã Ana Rosário começou a pensar na vocação depois de ter lido um livro sobre Santa Inês

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Não esconde, porém, que no momento de entrar na vida de clausura as grades a assustaram. “Aqui foi a primeira vez que vi grades”, recorda. “Para mim as freiras eram todas iguais. E eu via irmãs na rua.” As experiências anteriores de contacto com religiosas, em Fátima e no convento da Estrela, não lhe tinham dado uma ideia concreta do significado da vida de clausura. “A primeira reação, quando vi grades, foi ficar assustada. Onde é que eu me vim meter? Depois, entrei cá para dentro, e cá dentro nós não temos grades. Nem sequer nos lembramos de que temos grades no convento. E esse temor foi-se embora.”

Ana apaixonou-se pela vida quotidiana dentro do mosteiro, que começa todos os dias às 6h45 na capela, com a oração da manhã e a missa, inclui trabalho durante a manhã, estudo durante a tarde e ainda períodos de silêncio e oração ao longo do dia. Algumas tarefas, como a cozinha e as limpezas, são rotativas, enquanto outras, mais específicas, como o cuidado da horta e dos animais, estão alocadas a cada irmã. “Marcou-me muito a alegria de cada irmã, a novidade do dia-a-dia. Tudo me fascinava, desde o hábito a cada momento litúrgico na capela, o estar na cela em silêncio nos tempos de silêncio mais rigoroso, o estar em fraternidade com cada irmã. Tudo me cativou, e isso fascinou-me imenso.”

“Ó mãe, se eu fosse rapaz ia para padre”

A história que Ana Rosário partilha — uma vocação certeira descoberta logo na infância — contrasta com os percursos de vida da maioria das jovens freiras com quem o Observador conversou no Mosteiro de Santa Beatriz. Na sua maioria, estas jovens descortinaram o caminho das suas vocações numa juventude mais tardia, a partir de grupos de jovens católicos ou grupos de escuteiros, depois de terem passado por crises interiores de fé e enfrentado os olhares trocistas dos colegas de escola por serem demasiado “beatas”.

É o caso de Maria Madalena de Jesus, de 26 anos. Nascida no Seixal, numa família tipicamente católica, Madalena fez um percurso clássico de jovem católico comprometido em Portugal: entrou na catequese, recebeu os sacramentos, fez parte do agrupamento de escuteiros e, no final do percurso, entrou no grupo de jovens da paróquia e ajudou a dar catequese aos mais novos. Na adolescência, por volta dos 15-16 anos, lembra hoje a irmã Madalena, começou a sentir-se “diferente”.

“Sentia que tinha uma grande inquietação dentro de mim, porque queria descobrir qual era o plano de Deus para a minha vida. Andava mesmo muito inquieta para perceber o que é que Deus queria de mim. Sentia que Deus pedia mais, mais e mais. Eu já dava catequese, já estava no grupo de jovens, passava muito tempo na igreja, e esse tempo parecia que não bastava”, recorda a jovem freira. “Fugia da escola para poder ter momentos de silêncio e momentos a sós com Deus. Lembro-me de que saía da escola e ia para a igreja, porque a igreja estava aberta e não tinha lá ninguém, só umas velhinhas que iam lá rezar. E eu gostava muito de ir para lá e ter aquele momento a sós, em silêncio. Isso acho que foram os primeiros sinais de que Deus estava a semear algo.”

Ainda assim, tudo não passava de uma dúvida, longe das certezas de uma vocação. A resposta começou a desenhar-se num retiro do grupo de jovens da paróquia, numa altura em que Madalena via os seus colegas, já na escola secundária, bastante decididos sobre o futuro profissional que pretendiam seguir: “Eu queria ter uma profissão que tivesse um significado para a minha vida, que fosse ajudar alguém. Que fosse algo mais humano. Mas não entendia o que seria, não conseguia descobrir.”

No tal retiro do grupo de jovens, o padre que acompanhava o grupo desafiou os jovens para um exercício curioso, lembra Madalena. “O sacerdote deu-nos várias imagens da Paixão de Cristo, imagens diferentes para cada um, e tínhamos de ir com essa imagem para o quarto rezar. A mim, tocou-me uma imagem que era Jesus morto e várias mulheres à volta dele, a adorarem-no, a lavarem o corpo, a prepararem-no para o sepultamento. Eu não entendia o que é que aquilo queria dizer e o sacerdote mandou-nos ir rezar com essa imagem. Depois, no fim, tínhamos de falar sobre a imagem que nos tocou e o que é que nos dizia. E eu disse que não sabia, que não percebia o que é que queria dizer. Até que ele disse: Madalena, não te vês aí? Caiu-me tudo, fiquei petrificada, porque não me estava a ver ali, mas por outro lado começava a perceber que podia ser por ali o meu caminho, no meio daquelas mulheres que o contemplavam e que o adoravam. Para mim, aquilo fez-me muito sentido. Foi a partir daí que tudo começou, que comecei a pôr em causa uma vocação de consagração.”

O padre tornar-se-ia um confidente para Madalena. “Depois de várias conversas, ele perguntou-me se eu queria vir aqui fazer uma experiência”, recorda a jovem religiosa. Madalena conhecia muito pouco sobre a vida de uma freira. O pouco que sabia era sobre as Missionárias da Caridade, a emblemática congregação fundada pela Madre Teresa de Calcutá. “Eu imaginava que, se fosse freira, queria ser como elas, que dão a vida pelos pobres, que fazem um trabalho que se veja. Atraía-me muito o hábito delas, a maneira como elas rezavam.”

A irmã Madalena (segunda à direita) entrou no convento depois de uma atividade do grupo de jovens a ter deixado a pensar na vocação religiosa

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Madalena não esconde que tinha uma série de preconceitos sobre a vida de uma freira de clausura — e envergonhava-se até de pensar que essa podia ser a sua vida. “Sempre tentei integrar-me e essa parte mais espiritual eu ocultava um bocadinho”, recorda. “Dava-me uma certa vergonha, porque era sempre vista como a beata, aquela vai rezar, aquela que só quer ir para as coisas de Deus. Também faz parte do nosso caminho termos de passar por isso. Acho que todas nós passámos um bocadinho por aquela vergonha de não querer assumir isto, porque vamos ser rotuladas. Mas quando encontramos esse amor que é maior do que tudo, quando vamos assumir que é isto que queremos, já não importa a opinião dos outros. Já não interessa o que é que os outros pensam de mim ou não. Vou seguir o que o meu coração diz.”

A experiência de uma semana que fez no Mosteiro de Santa Beatriz com 16 anos de idade fascinou-a. “Todos aqueles preconceitos que eu tinha derrubei-os a partir do momento em que entrei aqui. O que mexeu muito comigo foi a vivência da vida fraterna, o ter tudo em comum. Esta pobreza de partilhar tudo, de ter toda uma vida em comum”, recorda Madalena. Decidiu que aquela seria a sua vida, mas ainda não tinha 18 anos, pelo que ainda não podia entrar no convento. Acabou o secundário e ainda fez um ano do curso de Direito. Aquele ano, diz hoje a irmã Madalena, foi “um ano de graça”, que lhe permitiu “amadurecer a decisão” de se tornar monja de clausura.

Ao lado de Madalena está Isabel Franco, a mais nova do grupo. Tem apenas 22 anos e a roupa que traz vestida denuncia-a. É a única que não traja com o hábito branco da Ordem da Imaculada Conceição, porque ainda não fez os primeiros votos. Em vez disso, veste uma blusa branca e uma saia comprida azul. Encontra-se na primeira fase da vida consagrada, o postulantado, e ainda se apresenta apenas como “Isabel” — e não como “irmã Isabel”. Está no convento desde setembro de 2022, há apenas dez meses, e ainda lhe falta mais de um ano para tomar o hábito e se tornar noviça.

Natural de Lisboa, Isabel nasceu numa família católica devota. “Não fui muito rebelde”, ri-se a jovem, lembrando que os pais, ambos professores, lhe deram desde a infância “um grande testemunho de fé”. Na paróquia do Campo Grande, na capital, fez, tal como Madalena, o percurso convencional da juventude católica: entrou na catequese aos seis anos de idade e, a partir do 8.º ano, entrou nos grupos de jovens, onde teve “uma vivência da fé muito forte”. Foi na adolescência que começou a dar-se conta do “contraste” entre a grande felicidade que sentia nas atividades da Igreja — “esse céu que a paróquia me fazia sentir” — e o resto da sua semana.

Aos 15 anos, num retiro do grupo de jovens, teve uma experiência que, garante, lhe transformou a vida e a relação com a fé: um percurso de obstáculos que teve de fazer de olhos vendados com um balão na mão, para depois ter de subir a um banco e saltar, confiando que os colegas a agarrariam. Pelo meio, teve medo e bateu com a cabeça, mas no fim foi mesmo agarrada por uma animadora, que lhe disse, evocando as palavras de Jesus: “Eu estou contigo, nunca te abandonei nem te vou abandonar.”

“Deu-me uma folha com pistas de reflexão para refletir sobre esse momento, e eu fui para a capela e chorei imenso. Senti que foi mesmo essa experiência concreta de encontro com Cristo que transformou a minha vida e a forma como eu via a fé”, recorda Isabel. “Estava na catequese e estava a pensar muito abstratamente. Não estava lá. Estava mais de corpo presente do que verdadeiramente presente. Com essa dinâmica, quando acabou e voltei para a escola, percebi mesmo que vivi o céu na terra.”

Apesar da experiência transformadora, Isabel continuou com dúvidas sobre o destino a dar à sua vida. A jovem, que também jogava râguebi, começou a ver-se sem tempo para todas as atividades da sua vida e teve de escolher entre o desporto e o grupo de jovens. “Percebi que não podia continuar nos dois. Pensei: vou escolher o râguebi porque estou gorda! Mas, depois dessa decisão, fiquei muito triste, porque sentia que me faltava algo. Parecia que me estava a divorciar de Deus. Depois, tive de voltar ao grupo de jovens e deixar o râguebi.”

Aproximava-se o tempo da faculdade para Isabel e a jovem não sabia o que queria fazer da vida. “Perguntava-me como é que podia aprofundar ainda mais esta relação com Deus e perguntei aos meus pais se havia algum curso que aprofundasse a Bíblia. E o meu pai disse teologia. E eu: ‘Teologia? O que é isso?” O pai explicou-lhe e Isabel percebeu que talvez aquele curso fosse aquele que mais responderia às suas inquietações. Entrou no curso de Teologia, na Universidade Católica, em Lisboa, e rapidamente percebeu que a sua turma era composta, maioritariamente, por seminaristas e por religiosos e religiosas — o que a levou a refletir sobre a escolha diferente que aqueles jovens tinham feito para a sua vida. Algo começava a desenhar-se na sua mente.

“A meio do ano, disse à minha mãe: ‘Ó mãe, se eu fosse rapaz ia para padre.’ E a minha mãe: ‘Mas tu podes ir para religiosa, se queres uma opção de vida parecida.’ E eu para ela: ‘Não, religiosa não, freira não. Se fosse rapaz, ia para padre. Mas, como rapariga, freira não.’” Isabel assume que tinha “preconceitos” sobre a vida religiosa — mas o seu caminho estava destinado a cruzar-se com o das monjas concepcionistas de Viseu. Algum tempo antes, o pai de Isabel, professor e investigador na área da história moderna e contemporânea, tinha dado uma conferência sobre a fundadora da Ordem da Imaculada Conceição, Santa Beatriz da Silva, e tinha prometido à abadessa que levaria as suas filhas a conhecer o convento.

O prometido é devido e, em 2017, Isabel foi passar quatro dias ao convento com as suas duas irmãs e uma amiga. “Nesse encontro de quatro dias marcou-me muito a alegria delas, darem-se inteiramente a nós. Claro que eu estava cheia de preconceitos”, recorda a jovem. “Depois desse encontro, as irmãs, no final, perguntaram se queríamos fazer uma experiência. E a Diana, a minha irmã mais velha, disse logo que sim.” Em 2018, a irmã de Isabel fez a experiência de uma semana em Viseu e, apesar de ter gostado, não se identificou com aquela vida. “A minha irmã Diana quer muito ser mãe”, lembra.

Já estudante universitária, encorajada pela experiência dos colegas seminaristas, Isabel decidiu também experimentar uma semana na clausura monástica. Foi sem qualquer expectativa de descobrir ali o seu lugar: “Eu pensei para comigo: ‘Então também vou experimentar. De certeza que não é lá o meu lugar, porque eu não gosto de estar parada e sou muito irrequieta, apesar de não parecer. Acho que não vai ser ali o meu lugar, porque também não fui habituada a isso, a estar sempre a rezar. Custa-me concentrar.’ Mas lá fui e as irmãs acolheram-me muito bem. Ao longo dessa semana, fui quebrando os preconceitos, as irmãs mostraram-me a beleza da vida consagrada. Cada coisa tem o seu tempo, não tem de ser tudo à pressa.”

Foi no convento que descobriu a beleza da vida consagrada. “Deus está nos momentos mais simples e extraordinários da nossa vida”, sustenta. “Deus mostra-nos que nos conhece mais do que nós mesmas. Aqui percebi que cada momento da minha vida valia a pena e que estaria a responder à minha essência, para o que ele me chamou.” Em setembro de 2022, Isabel ingressou formalmente no Mosteiro de Santa Beatriz para dar início ao seu postulantado. Ainda sairá uma vez — será a única do grupo a participar na JMJ de Lisboa — antes de tomar o hábito e prosseguir o caminho da clausura.

“Ia à missa às escondidas, não queria que me chamassem beata”

Até ao dia em que o Observador visitou o mosteiro, ninguém conhecia o passado de desportista de Isabel. “Já valeu a pena virem cá”, comenta o grupo, durante um visita pelos corredores do convento — que está longe do estilo sombrio com que os mosteiros são apresentados no cinema. As jovens freiras também nada têm a ver com as mulheres sisudas, silenciosas e de rosto fechado que o imaginário coletivo acredita que vivem nos longos e inóspitos corredores de um convento. “Ó madre, se vocês jogasse râguebi ganhava, que eles fugiam todos de si”, atira uma das irmãs à abadessa Maria Isabel, que volta a confessar que as jovens freiras lhe dão cabo do juízo — mas que nem por isso deixa de gostar delas.

Assim que entramos pela porta da clausura, deparamo-nos com um corredor estreito: à esquerda, vai dar, por uma porta lateral, à igreja do convento, onde as irmãs fazem as suas orações e celebrações quotidianas, abertas ao público (que entra pela porta principal); à direita, o corredor prossegue até desembocar numa enorme sala de trabalho, apinhada de máquinas de costura. É ali que as irmãs se dedicam a um dos principais trabalhos do convento, a produção de bordados e de alfaias litúrgicas, incluindo toalhas e panos de altar e vestes para celebrações. O negócio, porém, já não vai tão bem como antigamente: Fátima, o grande centro comercial do mundo católico, é relativamente perto de todo o país e é lá que a maioria das paróquias católicas encontra produtos que, apesar de feitos industrialmente e em série, são significativamente mais baratos do que aqueles feitos à mão pelas irmãs. Por isso, a principal fonte de sustento das monjas tornou-se, nos últimos tempos, a produção de enormes quantidades de doçaria conventual, com novas fornadas a cada terça-feira — e até uma loja online.

Em toda a volta da sala de trabalho, amplas janelas iluminam o espaço e permitem observar a paisagem ao redor do mosteiro — tanto as zonas verdes que rodeiam o edifício como, mais ao longe, a imponente Serra da Estrela. É também para a serra que dão as janelas dos quartos das irmãs, que garantem não se sentir especialmente enclausuradas quando olham o horizonte, nem quando percorrem os amplos jardins e zonas agrícolas do mosteiro, onde às vezes fazem piqueniques.

Na zona exterior do convento, as irmãs têm uma grande área agrícola
JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
É nesta parte do convento que as jovens freiras passam uma boa parte do dia, a trabalhar e a descansar
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O mosteiro é praticamente autossuficiente — só não conseguem produzir peixe
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O grupo das seis freiras mais jovens com a abadessa, a irmã Maria Isabel, ao centro
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Dentro do mosteiro existe um pequeno cemitério, onde são enterradas as irmãs que já morreram
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Os passeios pelo amplo espaço exterior do mosteiro são frequentes para as irmãs
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Também porque a clausura já se modernizou. Embora as irmãs concepcionistas vivam, teoricamente, num regime de clausura estrita, não é exatamente verdade que nunca saem do mosteiro. Pelo contrário: saem para votar, para ir ao médico, para ir às compras à cidade de Viseu ou para ajudar um familiar doente. Também já não faz sentido, no entender da abadessa, impedir uma monja de ir ao funeral de um familiar próximo. Também acompanham de perto a vida das famílias, que as visitam com frequência, por exemplo, para apresentar os novos bebés que nasceram. E, no contexto da própria vida monástica, são frequentes as viagens a Espanha, para participar em cursos e formações religiosas na casa-mãe da Ordem da Imaculada Conceição. Ainda assim, o estilo de vida das monjas concepcionistas é, efetivamente, o da clausura, marcada pela calma, pela tranquilidade e pelo silêncio.

Para a irmã Leonor Maria da Anunciação, 34 anos, que durante a juventude “queria estar em todo o lado ao mesmo tempo”, a clausura não era a escolha mais óbvia. Natural de Sintra, Leonor, a mais velha de seis irmãos, nasceu numa família profundamente católica, o que marcou a sua experiência de fé na infância. “Deus sempre esteve presente e sempre vi essa presença de Deus como algo normal, até ao sétimo ano”, lembra a jovem freira, sentada no locutório do mosteiro. “Nessa altura, comecei a questionar-me muito se Deus existe mesmo, se afinal isto é tudo verdade, o que me andaram a dizer durante tanto tempo. Foi um ano de crise de fé.”

Tinha 13 anos de idade quando passou por essa crise de fé — e quando os pais a inscreveram num campo de férias católico no verão entre o sétimo e o oitavo ano. Ainda hoje se lembra daquele momento como definidor na sua relação com a fé. “Quando acabámos de arrumar as malas e de fazer as apresentações, disseram-nos: ‘Agora vão-se arranjar para irmos para a missa.’ Missa? Mas hoje é segunda-feira, já fui ontem, no domingo. Mas aquilo mexeu comigo. Nesse dia, gostei de estar na missa. Foi diferente. Naquele momento, senti essa presença de Jesus. Depois, tive a oportunidade de me confessar, que era uma coisa que eu também não gostava e tentava esquivar-me o mais que podia. Foi uma confissão que me marcou mesmo muito e que me fez sentir a diferença entre viver com Jesus ou sem ele. Voltei para casa com uma alegria muito grande.”

Ao longo dos anos seguintes, Leonor continuou a participar naqueles campos de férias, onde sentia “uma felicidade diferente de tudo o que tinha durante o resto do ano”. Começou a perguntar-se porquê. O que havia de diferente naqueles dias de verão em relação ao resto do ano? Na altura, não passava pela cabeça de Leonor a ideia de ser freira. Gostava de desenhar e queria estudar artes — aliás, ainda hoje se dedica a desenhar no convento e é da autoria dela uma brochura ilustrada sobre a vida no convento que a abadessa ofereceu ao Observador durante a visita.

“Dizia que queria ser arquiteta como o meu pai e mãe como a minha mãe. Mas depois percebi que a arquitetura não era nada do que eu queria. Pensava casar-me e ter filhos. Mas eu também era muito maria-rapaz. Gostava era de jogar futebol e de andar de bicicleta. Não estava quieta. Ser freira não era propriamente uma coisa que fizesse parte”, recorda. “Muito menos por causa da ideia da freirinha beata.”

Mas a dúvida continuava a assombrá-la. “Ao questionar-me sobre o porquê dessa alegria que eu tinha quando chegava desses campos de férias, que depois durava mais tempo, comecei a dar-me conta de que era Jesus. Tinha missa todos os dias, confessava-me, rezava todos os dias. Começou a ser muito nítido que era isso que me dava essa felicidade”, lembra Leonor. “Eu tinha 15 anos quando fiz essa descoberta, que foi muito importante: perceber que o que eu vivia nessa semana podia viver durante o resto do ano. Não tinha de ficar um ano inteiro de escola à espera das próximas férias grandes para poder rezar todos os dias, para poder ir à missa ou para poder fazer alguma experiência de serviço. Fui começando a viver isso no dia-a-dia. Se nos campos de férias é tão giro lavar loiça, então também posso lavar em casa. Também posso rezar todos os dias.”

Ao mesmo tempo, Leonor começou a ir à missa durante a semana depois da escola, mas em segredo. “Não queria que me chamassem beata. No fundo, era o medo de ser ridicularizada”, lembra a religiosa. “Eu tinha tido essa experiência antes, no sétimo ano, de todos gozarem comigo na escola por eu ser católica — e de eu também ficar cheia de dúvidas. Mas isso depois foi passando, foi sendo natural, e já não tinha problema nenhum em admitir essa parte de ser católica e de viver a fé de forma aberta.”

Na juventude, Leonor entregou-se cada vez mais à vida da Igreja Católica: começou a dar catequese, tornou-se animadora do grupo de jovens e passou a ser também monitora nos campos de férias. Mas “Deus pedia sempre mais”, recorda a jovem. “Não bastava eu entregar-lhe só uma semana da minha vida, os fins-de-semana, uma hora.” Com 16 anos, surgiu no íntimo de Leonor a ideia de uma vida consagrada — mas a semente demoraria ainda vários anos a despontar. No final da escola secundária, entrou no curso de Arte e Multimédia na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, e terminou a licenciatura. Foi precisamente durante a faculdade que encontrou a resposta à pergunta que não lhe saía da cabeça: “Deus está a chamar-me. Mas para onde?”

Passavam-lhe pelo espírito muitas hipóteses: ser Missionária da Caridade, como uma tia, e dedicar a vida aos pobres? Ir para uma missão em África? Dar catequese aos jovens da sua paróquia? “Se for para África, o grupo de miúdos a quem dou catequese fica sem catequista. Se ficar aqui, não posso ir para as missões”, lembra Leonor. Foi uma atividade de férias com um grupo de jovens católicos nas férias entre o terceiro e o quarto ano de faculdade que lhe deu a resposta. Leonor começara a perceber que havia uma resposta para estar em todo o lado ao mesmo tempo: a oração. “Sentia que Deus me estava a chamar a essa entrega através da oração e sabia que era na vida contemplativa”, diz a jovem. Ainda assim, subsistiam os preconceitos — não propriamente com a vida de clausura, mas com a própria figura das freiras. “Achava que na vida contemplativa era só velhas, freiras velhinhas, tudo fechado, tudo muito escuro, que não se podia rir, que andavam todas lá direitinhas em procissão. E isso também me fazia recuar.”

Naquela atividade de verão, porém, um sacerdote levou o grupo de jovens ao Mosteiro de Santa Beatriz, para visitarem as irmãs. Foi um encontro breve: cerca de uma hora no locutório do convento, durante um dia agitado de campo de férias, mas foi o suficiente. “Marcou-me muito ver que havia irmãs da minha idade, que afinal não eram todas velhas, ver que havia um ambiente muito normal, de alegria. Que eram pessoas como eu, que não tinham nada de afetado nem de estranho, nem de demasiado beato. Saí daqui muito tocada. Mexeu muito comigo.”

No mosteiro, Leonor é quem tem a atribuição de tratar dos animais
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As galinhas estão em destaque na zona agrícola do convento: são precisos muitos ovos para a produção de doçaria conventual
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Leonor também está encarregada de tratar dos patos
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A religiosa, de 34 anos, é licenciada em Arte e Multimédia pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa
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Dentro do convento, não deixou de se dedicar à paixão do desenho e é da sua autoria a brochura sobre a vida no interior do mosteiro
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A vocação começava a gritar de dentro, mas Leonor ainda teve de lutar contra a vergonha de estar a ponderar tornar-se freira. “Essa foi a parte mais difícil. Fugi bastante”, conta. Quando saiu do mosteiro, levou uma série de livros e panfletos entregues pelas irmãs, com apelos vocacionais do género “se te sentes chamada, contacta-nos”, mas deitou-os para o fundo de uma gaveta. “O que é que vocês pensam? Que me vão apanhar assim tão facilmente?”, pensou. Quanto mais fugia, contudo, mais a memória daquele dia com as monjas surgia na sua memória, até se tornar “demasiado óbvio” que “não podia fugir mais”. No último ano da licenciatura, decidiu fazer a tal experiência de uma semana, que serviu de confirmação: “Quando entrei aqui dentro, foi uma sensação de estar a entrar em casa. Como se sempre tivesse vivido aqui, como se conhecesse as irmãs desde sempre, e esqueci-me de que estava com medos, que me tinha de ir embora. Já nem queria sair, mas tive de ir porque tinha exames de fim de semestre.”

Regressou à vida quotidiana, mas só pelo tempo de terminar o curso. Entrou em 2011, “uns dias depois de receber o certificado da licenciatura” — e há poucos meses fez a sua profissão solene, ao fim de um longo processo de formação dentro da congregação.

Quem também teve de lutar contra a vergonha da vocação religiosa foi Inês, de 25 anos, uma das irmãs mais jovens do convento. Como a maioria das companheiras, também nasceu numa família cristã e também fez o percurso normal de catequese e grupos de jovens. Mas, em retrospetiva, Inês admite que sempre viveu esse percurso em piloto automático: “Sabia que Jesus era aquele amigo que existe, que está presente, mas só me lembrava dele quando ia à catequese ou à missa. No meu dia-a-dia normal, nunca me lembrava de Deus.”

Quando entrou para a escola secundária, passou pela dúvida. Lembra-se especialmente do 11.º ano, o momento em que, não sabendo o que queria fazer da vida, sabia que as suas notas escolares já iriam influenciar as suas hipóteses universitárias. Inês gostava das ciências e da matemática, mas não conseguia traduzir esse gosto numa opção de vida. Estudava afincadamente para poder entrar num curso dessa área, mas vivia atormentada pelas dúvidas. “A certa altura, no início do segundo período, lembro-me de começar a pôr muitas coisas em questão, sobretudo que sentido é que tinha esse meu empenho tão grande em estudar, em aplicar-me. Para que é que era isso? O que é que eu queria da minha vida?”, lembra Inês ao Observador.

Natural de São Pedro da Cadeira, em Torres Vedras, Inês estudou numa escola que estava associada ao então seminário menor de Penafirme e tinha, na sua turma, dois colegas seminaristas. Espantava-a “o facto de eles já terem feito uma opção de vida, ou pelo menos ponderarem uma opção de vida, com a idade que tinham, ainda para mais em relação a Deus”.

Aquele 11.º ano de escolaridade foi fundamental por outra razão: foi nesse ano que passou pelo processo de preparação para o crisma, com encontros, catequeses e atividades de serviço. Nessas atividades, sentiu o apelo para não se desligar da Igreja e para se manter ligada à paróquia. “Lembro-me de pensar que, realmente, eu só fazia parte do grupo dos escuteiros, mas pouco mais fazia. Interiormente, ia-me questionando: o que será que Jesus quer que eu faça? O que será que ele quer de mim a partir deste momento? Mas pensava sempre numa coisa muito na paróquia, como ir ler, fazer parte do coro, mas nada mais.”

Inês sonhava com uma “vida normal” — mas não sabia que forma lhe dar. Tal como as irmãs, também na história de Inês houve acontecimentos concretos que, com grande intensidade sísmica, transformaram a sua vida e a sua relação com a fé. Para ela, ambos ocorreram naquele 11.º ano de escola.

Certo dia, sentindo-se “desanimada” com “algumas questões em relação a um rapaz” com quem lembra, entre risos, que tinha uma “amizade próxima”, precisou de estar sozinha. Depois de almoçar com os colegas de turma, enquanto se encaminhavam para o local da próxima aula, Inês disse-lhes que tinha de ir a um sítio antes e que já os encontraria na aula. Não lhes disse que queria ir à capela do seminário, ao lado da escola, para estar uns minutos com ela própria. “Naquele momento, uma amiga minha disse: ‘Eu vou contigo.’ E eu: ‘Ai, não, mas não é preciso, não te preocupes, é uma coisa rápida.’” A amiga insistiu e Inês ainda tentou, sem sucesso, demovê-la com uma pequena mentira: “Só vou à biblioteca ver se têm um livro.” No caminho, que tanto dava para a biblioteca como para a capela, Inês viveu uma intensa luta interior: “Vou onde queria de facto ir? Ou vou à biblioteca e finjo que ia à procura de qualquer coisa?”

No meio da luta interior, surgiu a determinação: “Não, se eu ia para a capela, vou e já está. E ela que pense o que ela quiser. E fui. Estive um bocadinho, ela também também entrou. Foi por pouco tempo, porque íamos ter aulas a seguir. Quando saímos, eu estava cheia de medo do que ela iria pensar ou dizer. Mas surpreendeu-me, porque ela veio ter comigo e disse: ‘Obrigada por me teres trazido aqui.’ E aquilo desconjuntou-me toda. Eu estava a achar que ela ia ficar com uma ideia e preconceitos em relação a mim, e afinal estava a agradecer-me por uma coisa que nem tinha sido iniciativa minha.” A partir daquele momento, a amizade entre as duas cresceu — e, algum tempo mais tarde, seria ela uma das pessoas de confiança a ajudar Inês a perceber a “presença de Deus” na sua vida.

No mesmo ano, o grupo de preparação para o crisma foi convidado a visitar, no Sábado Santo, o mosteiro das monjas concepcionistas no Estoril — uma pequena comunidade ainda em formação. Inês não tinha qualquer ligação a qualquer tipo de freira: a única que conhecia era uma que ajudava no grupo de jovens da paróquia, uma missionária comboniana. “Fomos visitar as irmãs e tudo era diferente do que eu achava”, recorda a jovem, sublinhando que tinha “alguns preconceitos”, que foram todos quebrados pelo contacto com as monjas. “Sobretudo pela alegria que as irmãs transmitiam, pela luminosidade.” Nesse dia, o culminar de uma Semana Santa que marcou profundamente a vida de Inês, ouviu o testemunho e a história de vida de várias irmãs e deu-se conta de algo semelhante à história contada por Leonor: “Através da oração podia chegar mais longe e estar presente em muitos sítios.”

Inês, de 25 anos, entrou no convento depois da JMJ de Cracóvia, em 2016

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Aquilo cativou-me e mexeu comigo, porque eu na altura, como já disse, estava um bocadinho indecisa do que é que queria seguir. Também já tinha ponderado fazer um ano de pausa depois do secundário, para fazer alguma experiência de missão, de algum serviço mais concreto. O facto de ela ter dito que a oração era uma presença que estava de forma presente e que podia chegar mais longe fez-me perceber que se calhar podia ser por aí essa missão que eu tinha desejo de fazer, mas que se calhar Deus me pedia de uma forma diferente”, recorda Inês.

Na semana seguinte ao encontro com as monjas, Inês fez o crisma, e a amiga que a tinha acompanhado à capela voltou a ter um papel crucial. Ofereceu-lhe um presente, um pequeno quadro com a frase: “Está na hora.” A frase impeliu Inês a uma ação que não lhe saía da cabeça desde a semana anterior: voltar a entrar em contacto com as monjas. “Fui a um encontro que elas organizaram e aí as irmãs propuseram-me fazer um tempo de experiência dentro. Na altura, eu já manifestei algum interesse por conhecer um bocadinho mais”, recorda Inês. No verão depois do 11.º ano, Inês rumou a Viseu para uma experiência de uma semana na clausura monástica: “Marcou-me muito essa alegria e essa rotina. Essa vida fraterna, essa presença de Maria. Foram várias coisas que me marcaram e que de certa forma me foram dando a certeza dessas inquietações que eu fui tendo interiormente.” A certeza consolidou-se, mas a jovem ainda concluiu o ensino secundário antes de avançar para o convento. Inês ainda teve tempo de participar na Jornada Mundial da Juventude de Cracóvia. Depois, regressou a Portugal e rumou definitivamente ao mosteiro, onde, aos 25 anos, ainda está a completar a sua formação, como juniora (a fase formativa após o noviciado, mas antes dos votos finais).

Abdicar de casar e ter filhos “é uma grande luta que todas nós atravessamos”

As histórias destas seis jovens mulheres, hoje voluntariamente enclausuradas num mosteiro em Viseu, são diferentes, embora com vários pontos de contacto. Mas há algo que todas têm em comum: todas tiveram de renunciar a uma vida convencional, abdicar daquilo a que fora do convento é habitual classificar como liberdade, desistir da ideia de namorar, casar e ter filhos. Em troca, uma vida de contemplação, de oração, de trabalho e de muita rotina.

É Leonor quem explica ao Observador o dia-a-dia das irmãs: depois da oração da manhã e da celebração da missa (aberta ao público), as irmãs tomam o pequeno-almoço às 9h00 e dedicam a manhã aos seus ofícios. Leonor, por exemplo, tem como missão cuidar dos animais — e conduz o Observador pelo enorme galinheiro onde são produzidos os muitos ovos necessários ao fabrico da doçaria conventual. Também há patos, um porco, e muita produção agrícola. “Somos quase autossuficientes”, comenta Madalena, lembrando que, durante a pandemia da Covid-19, estiveram mais livres do que muitas pessoas forçadas a ficar fechadas em casa. “Só não temos cá peixe”, acrescenta a abadessa. Também há no mosteiro um conjunto de quartos onde as irmãs acolhem amigos e familiares que as visitam.

Depois do almoço, há nova oração, tempo de recreio e tempo de silêncio, oração novamente às 15h, estudo e trabalho. Depois do jantar, há novo tempo livre, a que se segue a oração da noite. Entre as 22h30 e as 23h, as irmãs estão novamente recolhidas nas suas celas. Aceitar o rigor do horário e da clausura implica abdicar de alguma liberdade — e as irmãs não escondem que isso lhes custou.

“Quando cheguei aqui, assustei-me bastante ao ver as grades”, recorda a irmã Madalena. “Pensei que não era nada disto que eu queria.” Gradualmente, todas começaram a ver as grades no sentido inverso: lá fora, há outras prisões, por vezes mais duras do que a da clausura. As freiras não têm telemóveis nem redes sociais (à exceção das páginas do próprio convento, onde vendem a doçaria) e não sentem falta disso. “É uma prisão para muita gente”, comentam. Sabem o que se passa, veem notícias e a abadessa tem o único telefone da casa — através do qual o Observador contactou o mosteiro.

Para estas jovens entre os 20 e os 30 anos, entrar no mosteiro significou também renunciar à possibilidade de casar e ter filhos. “É uma grande luta que todas nós atravessamos”, admite Ana Rosário. “É algo natural, numa mulher, penso eu, querer ser mãe, querer casar, ter a sua casa, ter a sua vida. Acho que é algo natural em todas nós e todas nós desejávamos isso. Eu desejava ter imensos filhos, ter uma família numerosa. E, claro, todas nós também tivemos as nossas experiências de namoro, umas mais que outras. Mas, quando encontramos este Deus, não há nenhum amor que preencha tão bem esse vazio, esse espaço. Não há nenhum amor humano que vá preencher isso. Acho que é um bocadinho essa experiência que todas as pessoas que optam pela vida religiosa acabam por perceber. É um amor que transcende tudo, não tem explicação. Não se encontra alegria tão grande como neste amor que encontramos.”

  • Inês, 25 anos
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  • Esmeralda, 34 anos
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  • Madalena, 26 anos
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  • Isabel, 22 anos
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  • Ana, 30 anos
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  • Leonor, 34 anos
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O mesmo conta Inês, a quem a questão dos rapazes provocou dores de cabeça no 11.º ano e até foi importante para a levar a dar o passo rumo à capela do seminário. “Depois de dar conta desse Jesus que se queria fazer presente na minha vida, isso foi perdendo peso. Por ir descobrindo este amor maior de Deus por mim, que me cativava, o resto foi-se desvalorizando. Mas, ao mesmo tempo, fui sentindo que as amizades que fui construindo foram sendo cada vez mais fortes, porque eram alicerçadas em Deus.”

Esta foi também uma das grandes questões levantadas por Isabel Franco quando visitou o mosteiro, ainda antes de sonhar que a sua vida passaria por ali. “Fizemos imensas perguntas, incluindo se não queriam ter sido mães. E elas fizeram-me perceber que têm muitos filhos na família da Igreja. Tenho experienciado isso aqui. É uma vocação muito fecunda”, recorda. Uma experiência anterior a trabalhar numa creche já tinha feito Isabel perceber que, possivelmente, a maternidade não seria para si. “Mas claro que depois a sociedade também me levou a ter esse interesse de como é que é ter um namorado. E pronto, lá tive as minhas experiências. Mas não era suficiente.”

Leonor, por seu turno, confessa que só começou a pensar em namorar quando chegou à faculdade de Belas Artes. Antes, a jovem “maria-rapaz” ocupava-se a jogar futebol e “não pensava muito” no assunto. “Mas quando os rapazes começaram a aparecer, já foi tarde. Porque já estava mais decidida, já tinha mais consciência de que Deus me estava a chamar para algo mais concreto.”

Mas, provavelmente, aquela que sentiu de forma mais concreta as dores de abandonar a possibilidade de uma vida familiar convencional foi a irmã Esmeralda. Nascida numa Angola em guerra há 34 anos, começou desde os cinco anos a sentir-se chamada a qualquer coisa de diferente. “Todas as noites eu sonhava que estava vestida de branco, de mãos dadas com outras irmãs, assim vestidas como nós estamos agora, a abraçar uma bola, que eu hoje penso que seria o mundo”, recorda. A mãe foi incapaz de lhe explicar o sentido daquele sonho que a assombrava diariamente, mas a pequena Esmeralda encontrava parte das respostas na catequese, lecionada por missionários europeus na pequena vila de Calulo.

“Tinha lá catequese, também tinha lá aulas, e aos domingos íamos à missa. E o senhor padre, no final, perguntava quem é que queria casar com Jesus. E eu dizia que queria. Ficava muito contente, dançava, queria casar com Jesus”, conta Esmeralda, que até chegou a inventar uma canção, que cantava quando regressava a casa a pé: “Quem quer casar com Jesus Cristo neste dia de alegria? Quem quer? Eu quero!” O caso começou a ficar conhecido na vila e havia quem comentasse o estado de Esmeralda com a sua mãe. “As pessoas achavam que eu estava a ficar maluca da cabeça.”

Aos nove anos de idade, Esmeralda foi enviada para Portugal pela família, para viver com uma familiar e cuidar dela durante a velhice — uma prima direita do pai que, por já ter 70 anos, Esmeralda considerava a sua avó. Quando chegou a Portugal, fixando-se em Setúbal, Esmeralda deixou de ter aquele sonho estranho que a perseguia desde a infância, mas manteve-se ligada à Igreja Católica: matriculou-se na catequese, andou num grupo de jovens e entrou na escola (muito mais tarde do que a maioria, apenas com 11 anos).

Aos 15 anos de idade, Esmeralda apaixonou-se por um rapaz de Lisboa e os dois começaram a namorar, sobretudo aos fins-de-semana. Como ele morava em Lisboa e ela em Setúbal, encontravam-se ao sábado e ao domingo, habitualmente no Parque das Nações, em Lisboa. “Nessas alturas, eu deixava de ir à missa, para termos tempo”, ri-se Esmeralda ao recordar a história. Isso causou-lhe grande embaraço com a avó. Sempre que chegava a casa, a avó fazia-lhe a pergunta de sempre: quais foram as leituras da missa? Antes do namoro, Esmeralda partilhava todos os detalhes com a avó, falava-lhe das leituras da missa e do que mais a tinha tocado na celebração. “Depois, deixei de fazer isso.” Ficava calada ou tentava esquivar-se, dizendo que já não se lembrava — mas a avó começou a estranhar. A desconfiança aumentou quando a idosa começou a receber telefonemas da catequista de Esmeralda: “A sua neta tem estado a faltar, não vem à missa, não sei o que é que se passa com ela, não atende o telefone nem vem ao grupo de jovens.”

Com o namorado, porém, também se sentia dividida. Durante a semana, falavam apaixonadamente pelo telefone. Mas, quando chegava o fim-de-semana e se encontravam, Esmeralda ocupava todo o tempo do encontro a falar de Deus com o namorado, que não queria ir à missa com ela. “Ele dizia-me assim: ‘A sério, há aqui qualquer coisa que não bate certo. Por telefone, estamos a falar normalmente. Mas, quando estamos perto um do outro, tu só me falas de Deus!’ E dizia-me que começava a sentir que estávamos perto, mas ao mesmo tempo estávamos muito longe.” Durante algum tempo, Esmeralda viveu aquela divisão interior, que a entristecia, com os olhos no futuro: queria ser educadora de infância ou, talvez, entrar na política, trabalhar na Assembleia da República.

A irmã Esmeralda chegou ao convento depois de uma experiência de namoro que a fez afastar-se da religião

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O mundo de Esmeralda mudaria quando recebeu um convite para participar num retiro promovido pelo movimento dos Convívios Fraternos — um movimento juvenil que organiza retiros de três dias para jovens católicos. Aceitou e foi à descoberta. Nesse encontro, recorda hoje, sentiu-se “novamente com Deus”. Confessou-se e reviveu o sonho que a perseguira na infância. Na reflexão interior, deu-se conta de que não se sentia feliz: “Antes pelo contrário: isolo-me e não me sinto realizada. Não me sinto bem.”

“Senti fortemente que Deus me estava a chamar para ser dele. Para me consagrar a ele. Depois, perguntava-me: mas como? E onde? E quando? E não obtive resposta”, lembra Esmeralda. No final do retiro, a jovem dedicou-se mais intensamente a uma busca espiritual — e a primeira conversa que teve de ter foi com o namorado. A resposta que recebeu foi no mesmo sentido: “Realmente, eu acho muito estranho, tu estás cada vez mais estranha, cada vez mais distante. Acho que também não faz sentido estarmos a namorar assim desta maneira.” Acabaram ali a relação e, segundo conta hoje a religiosa, Esmeralda recuperou parte da alegria que tinha perdido.

Nessa fase, voltou a pensar no sonho de infância e a relê-lo à luz do que já sabia sobre a vida da Igreja: sentiria ela uma vocação para a vida consagrada? A família não aprovaria: queriam que Esmeralda se casasse e a própria jovem admite que gostaria de ter “muitos filhos”. Inquieta e sem respostas, Esmeralda inscreveu-se noutro retiro de três dias, mas dessa vez foi diferente. Não conseguia concentrar-se a rezar, doía-lhe o corpo, não suportava o silêncio. “É tão secante”, pensou. Só não se foi embora porque não tinha meios de transporte para dali sair sozinha.

Mas foi justamente naquele retiro que, num “momento de oração muito intenso”, algo mudou na vida de Esmeralda. No grupo havia vários padres e, sabe hoje Esmeralda, um deles rezou em silêncio para que, “se naquela assembleia houvesse alguém que Deus queria chamar para a vida missionária, sacerdotal e até a vida contemplativa claustral, no final fosse ter com ele”. No final da oração, à medida que os participantes foram saindo da sala, Esmeralda foi ter com aquele padre, sem saber da oração que o sacerdote tinha feito.

O padre perguntou à jovem o que é que ela queria fazer no futuro. “Quero ir para o seminário”, respondeu Esmeralda. “Mas para o seminário só vão os rapazes”, respondeu o padre. “Então, quero ir para as missões”, devolveu Esmeralda. Foi naquele momento que o sacerdote lhe falou pela primeira vez de Santa Beatriz e das monjas concepcionistas de vida contemplativa. Propôs-lhe que experimentasse passar lá uma semana. O momento não era o melhor: a avó tinha sido operada e precisava de apoio em casa. Mas Esmeralda ficou com os contactos das irmãs e marcou uma data. Antes de ir, falou novamente com aquele padre, que lhe contou o dia-a-dia das monjas. “Assustei-me imenso! Fechadas? A rezar?”, questionou-se. “Para rezar não precisamos de estar fechadas, pensei eu interiormente. Acho que não vou conseguir. Não me vejo fechada entre quatro paredes para rezar. Sou tão dinâmica, gostava de fazer de tudo um pouco. Quando estava lá fora eu trabalhava, estudava, ia para passeios. Agora, assim fechada acho que não vou conseguir.”

Ainda assim, aceitou o desafio — convencida de que se viria embora ao fim de três dias. Apanhou o autocarro em Setúbal e, 300 quilómetros e um saco de gomas depois, chegou a Viseu. Quando chegou ao portão do mosteiro, porém, tudo foi “completamente diferente” do que tinha imaginado. “Senti que uma mão se estava a estender e me estava a convidar para subir. Eu subi, toda muito feliz. Aquela ansiedade que eu trazia, aquele medo que eu trazia, desapareceu. Senti-me inundada de uma paz muito grande, uma alegria muito grande. Eu disse: realmente, é um mistério. Fiquei daquele lado, vieram todas as irmãs, estava super feliz, como se já tivesse estado aqui há mais anos, como se já tivesse conhecido este sítio. Senti-me na minha casa, numa palavra só.”

Uma semana depois, não queria sair do mosteiro. Tinha encontrado o caminho da sua vida. Já tinha 18 anos e podia entrar, mas a família não aprovava a ideia. “Começou a guerra na minha casa”, lembra Esmeralda. Os pais queriam que a jovem terminasse, pelo menos, o nono ano — já que, devido à guerra e ao atraso no início dos estudos, ia ainda bastante atrasada no ensino formal. No entanto, opôs-se e decidiu que aquele seria mesmo o seu caminho. No mês seguinte ao da experiência de uma semana, entrou como postulante no mosteiro. Já dentro do convento, teve de enfrentar uma grande pressão exterior para sair. “Telefonaram-me da escola para eu voltar, sofria muita pressão para voltar. Tive de me desligar de tudo e de todos. Cortei com telefonemas, com tudo”, recorda. Mas Esmeralda não ficaria sem estudar: através da modalidade de estudo à distância, completou não só o 9.º, mas também o 12.º ano a partir do convento — e continuou, depois disso, a sua formação nos estudos religiosos que todas as irmãs fazem. “Estou feliz e sinto-me realizada”, sintetiza.

A oração comunitária na igreja é uma parte fundamental do dia das irmãs
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As freiras rezam várias vezes por dia na igreja, que está sempre aberta ao público
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A liturgia das horas é observada estritamente pelas irmãs
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As jovens freiras vivem em comunidade e, apesar de as suas vocações terem surgido de histórias distintas, todas abdicaram de uma vida familiar convencional
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As “Jornadas no convento”

A poucos dias da chegada do Papa Francisco a Portugal para a realização da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, o Mosteiro de Santa Beatriz está profundamente envolvido no evento — embora, das seis jovens religiosas, apenas uma, a postulante Isabel, vá participar fisicamente no evento.

Na verdade, a JMJ teve um papel relevante na vocação de pelo menos três destas jovens. Uma delas é Leonor. Poucos dias antes da visita que fez ao mosteiro, nas férias entre o terceiro e o quarto ano da faculdade, a jovem tinha tido um encontro bastante significativo com a realidade da JMJ. Corria o ano de 2010 e, no ano seguinte, a Jornada realizar-se-ia em Madrid, com a presença do Papa Bento XVI. Naquele verão, os símbolos da JMJ — a cruz e o ícone mariano dados por João Paulo II à juventude católica — tinham passado por Portugal, no caminho para Espanha.

“Estiveram na igreja de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, e eu fui lá ver. Estive lá ao pé da cruz. Era o dia 17 de agosto — que é o Dia de Santa Beatriz. Mas eu não fazia ideia, nem sequer sabia quem é que era Santa Beatriz. Lembro-me de estar lá ajoelhada aos pés da cruz, a pedir a Jesus que me mostrasse qual é que era o meu caminho e que me desse força para dizer que sim àquilo que ele me pedisse. E três dias depois foi essa visita aqui”, recorda Leonor.

Antes de descobrir definitivamente a vocação, a jovem tinha pensado em ir à JMJ de Madrid. “Pensei: já percebi o que queria, não preciso que Deus me dê mais nenhuma resposta. Claro que eu poderia ir à Jornada, tinha direito de o fazer, nem as irmãs se iriam importar. Mas, um dia ao rezar, estava a preparar a catequese para as crianças, eram do terceiro ano, parece-me. Nesse dia a catequese era sobre o chamamento dos apóstolos, que estavam a pescar, que Jesus os chamou. E dizia lá no evangelho que eles deixaram imediatamente as redes e o barco e seguiram Jesus. E eu, ao rezar aquilo, senti que era para mim, que tinha de pôr aquilo em prática antes de ir pregar às crianças”, lembra a religiosa. Optou por não esperar mais — e viu a JMJ de Madrid pela televisão, a partir do mosteiro.

A experiência de Inês foi diferente. Depois de ter feito a experiência de uma semana no convento, nas férias de verão após o 11.º ano, ainda regressou para terminar o secundário. Aquele ano já foi diferente, porque a jovem sabia o que queria fazer depois de concluir o 12.º ano, mas ainda lhe permitiu ter a experiência de participar na Jornada Mundial da Juventude e de se envolver a fundo na paróquia e no grupo de jovens. Na escola secundária, entretanto, já se formara um grupo de amigos mais ligados à Igreja. “Pensámos em fazer a nossa viagem de finalistas, em vez de ser como é habitual, na altura da Páscoa, em que iam para Espanha, pensámos que seria muito mais interessante e faria muito mais sentido para nós, irmos à Jornada Mundial da Juventude, que calhava exatamente nesse ano”, recorda.

Naquele ano, 2016, a JMJ realizou-se em Cracóvia, a terra-natal de João Paulo II, na Polónia. “Então, fomo-nos preparando ao longo do ano com encontros que íamos tendo lá na escola ou no seminário, ou entre nós, e fomos, nesse verão, à Polónia. Fomos de autocarro, fomos à pré-jornada e à Jornada. Fomos de autocarro, tivemos de fazer paragem, porque a distância é longa. Parámos em Paris e depois chegámos. Fui para a Jornada já a saber que ia entrar aqui no convento.”

Apesar dessa convicção, Inês foi à JMJ em busca de “algum sinal, alguma manifestação dessa presença de Deus”, que confirmasse a sua vocação. Na longa viagem de autocarro, uma dinâmica realizada entre os participantes marcou-a especialmente: cada um ia à parte dianteira da viatura encontrar-se com o sacerdote que acompanhava o grupo, abria a Bíblia ao acaso e meditava na citação escolhida aleatoriamente. “Marcou-me muito pela frase que me tocou. Senti que não valia a pena estar a pôr mais as coisas em questão. Era uma frase do Cântico dos Cânticos que dizia: ‘Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim.’ Vivi essa Jornada, no fundo, com a certeza de que Deus me chamava, esperava a minha resposta, mas ao mesmo tempo com muita liberdade de aproveitar e desfrutar dessa experiência.”

Foi no decorrer da JMJ que Inês partilhou, com os colegas, que queria ser freira. “Houve assim um misto de reações. Muitas questões, também. Mas acho que, no geral, também por essa experiência que tivemos em comunidade ao longo dessas duas semanas, perceberam e viram que teria sentido uma entrega a Deus. Não puseram tanto isso em questão. Se calhar mais pela radicalidade da forma de vida do que propriamente pela vida de consagração.”

Das seis jovens religiosas, Isabel Franco é a única que irá participar na JMJ de Lisboa. Antes de entrar no mosteiro, em setembro de 2022, a jovem já estava envolvida na preparação da JMJ a nível local, na paróquia do Lumiar, em Lisboa. Excecionalmente, vai sair do convento esta semana para participar como voluntária paroquial, na parte logística do evento. “Trabalhos muito discretos, mas que se for aí que Jesus quer que eu esteja para mostrar que ele está vivo”, sustenta.

Em abril de 2022, no domingo de Páscoa, os símbolos da JMJ passaram pela igreja do convento e as irmãs puderam rezar junto da cruz que, na década de 1980, João Paulo II ofereceu aos jovens católicos de todo o mundo. Agora, o mosteiro está apostado em estar ligado à JMJ, recebendo grupos de jovens durante a semana da pré-Jornada e acolhendo religiosas de outros países que precisam de lugar para ficar na passagem por Portugal. “A nossa participação é mais na retaguarda”, resume Madalena. “É essa a nossa principal missão na Igreja. Ser as raízes que não se veem, mas que são necessárias para que a árvore tenha vida.”

Ao mesmo tempo, durante a semana da JMJ, as monjas vão adaptar o horário quotidiano do convento às celebrações do Papa, que vão seguir ao minuto pela televisão. Na noite de sábado, vão também fazer a vigília de oração na igreja do mosteiro, juntando-se aos mais de um milhão de jovens que são esperados no Parque Tejo-Trancão. “O facto de não irmos não significa que não vamos participar. Vamos participar de uma maneira diferente. Porque vamos acabar por acompanhar tudo através dos meios de comunicação”, explica Esmeralda, que não esconde que, se não fosse freira de clausura, gostaria de participar. Ainda assim, dentro do mosteiro, as irmãs vão preparar algumas dinâmicas para viverem “essa semana de forma diferente”, explica a irmã Inês, entre risos: “No fundo, a ‘Jornada no convento’.”

A abadessa fecha a porta da clausura

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

 
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