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Entre uma série e os livros que a inspiraram: o que se passa na cabeça (e na história) deste psicopata?

"You", o thriller de Caroline Kepnes, foi publicado em 2014 e fez sucesso na Netflix. No total são três livros, que agora estão publicadas em Portugal. Mas o que está nas páginas é o que vemos na TV?

Logo no primeiro volume, a surpresa é grande. O estilo do livro é quase epistolar, já que Joe Goldberg narra para a sua obsessão, Guinevere Beck. Da parte do leitor, fica criado um elo de empatia, ainda que seja com um psicopata. É que, de imediato, estamos na cabeça de Joe, e é por aí que vemos a acção.

Assim que Joe vê Beck, fica obcecado. A seguir, as redes sociais fazem o seu caminho, já que Joe procura toda a informação possível online e, quando não a consegue, encontra outros meios: binóculos, um boné que lhe disfarça a cara, a distância no meio da multidão. Depressa descobre onde mora Beck, entra no seu apartamento, elabora planos minuciosos para encontros “naturais”. Havendo percalços, dá cabo deles, mesmo que nos refiramos aqui a vidas humanas. A sua justificação é quase benevolente: tudo é válido para o triunfo dos amantes. E esse triunfo aparece como motor total mesmo quando Beck não demonstra interesse. Cabe a Joe, à amante romântico e obsessivo, provar-lhe que a sua indiferença está errada, que tudo pode ser chutado para canto para serem felizes – juntos – os dois.

Aos poucos, Joe toma-lhe conta da vida. Atrás de cada pequeno gesto, estão mil gráficos de hipóteses. A forma como orquestra as jogadas tem perícia e inteligência, além de malícia, e o leitor sente-se encantado por poder seguir uma cabeça, já que não apenas vê o resultado das marionetas como ainda vê como se mexem. Como Joe, tem visão panorâmica sobre a narrativa, está sempre vários passos à frente das personagens.

[o trailer da adaptação de “You” na Netflix:]

Tanto nos livros como na série, podemos ver o charme de Joe. Enquanto namorado, parece perfeito: atencioso, descomprometido de si mesmo, sem medo do compromisso com Beck, com uma paciência infinita – que nem parece real. E, no meio disto, é altamente compreensivo, capaz de se pôr em segundo plano porque percebe que Beck tem a sua vida, os seus amigos. O leitor, que vê a sua cabeça, vê também o grande desfasamento entre o que Joe é e o que dá, ainda que também veja o seu conflito consigo mesmo, a sua batalha interior constante por ser bom. Deixando um rasto de cadáveres para trás, e justificando-os sempre com uma coisa superior à banalidade da vida humana, convence-se de que é uma vítima de si mesmo, que faz o que tem de fazer porque o amor é superior a tudo, e o amor exige que uma ou outra pessoa pereça entretanto. Quem nunca?

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O grau de crença de Joe nas coisas que inventa é o que permite tudo. Conhece Beck por acaso (ele livreiro, ela a comprar um livro) e do nada imagina uma história de amor para a vida. Cogitando-a, tem de a fazer real. O nível de loucura está ali escancarado, chega a horrorizar a falta de barreiras, principalmente quando não há sequer um aval do outro lado, e enquanto o namorado de Beck morre sem que ela tenha sequer Joe na cabeça. Ainda assim, o leitor, por estar lá dentro, tem de continuar a busca. Vê Joe a encontrar uma prova de amor em qualquer sinal de cortesia e consegue ver as duas histórias a acontecer em paralelo – a verdade e a ficção do narrador.

A inteligência e a fragilidade emocional de Joe permitem que o leitor empatize com ele. A personagem está bem montada, e o sentido de humor retorcido ajuda. Como o romance está escrito na primeira pessoa, passa a haver um elemento desarmante desde a primeira página. O leitor vê o interesse de Joe por Beck e, como o faz dentro da sua cabeça, não se dá muito espaço para julgar de cima ou de lado.

Mais do que um psicopata, Joe será uma personagem consumida por uma obsessão-compulsão. Mesmo quando quer parar de perseguir, não consegue. E não chega a querer, porque vê ali tudo o que não apenas o consome mas também o preenche. Ao ser consumido, parece não ser capaz de se controlar.

Acredita-se, porque o narrador o diz, que Joe nunca sentiu um amor assim. E é possível, pela insistência, acreditar nessa verdade, e usá-la para justificar todos os eventos retorcidos – a perseguição, a invasão de privacidade, as tentativas de afastar Beck das amigas, as mortes. Em situações em que outras personagens violam a privacidade de Beck, Joe indigna-se. No caso dele, tudo é justificado, e ele mesmo cria uma aura de herói romântico que cumpre a sua missão, independentemente de. Até esta parte, a narrativa é coesa, a personagem é plausível. Em contraposição com o Joe da série, estrelada por Penn Badgley, o Joe dos romances é mais ácido, mais misógino e muito mais sexual, o que não surpreende, visto que as adaptações para formatos audiovisuais têm sempre tendência para suavizar estes aspectos. Assim sendo, a multidão de fãs da série terá mais Joe no Joe dos livros.

O sucesso do livro/da série terá estimulado mais história. Quando Kepnes entra no segundo romance, já começa a entender-se que encontrou uma fórmula para agarrar leitores e a pôs a render. Se, por um lado, o público queria saber o que teria sido a vida de Joe depois de este ter assassinado Beck (um destino recorrente das mulheres “amadas” tão completamente), por outro, percebe-se, ao ler os livros, que a fórmula ficara gasta no primeiro. É que, num romance, ao contrário de uma série, importa mais o impacto do que a permanência. A um livro, em geral, basta a estopada. Uma série dura e acompanha, e é fácil ver que a história de Joe se alongou porque o sucesso lhe ditou o epíteto de entretenimento. E, realmente, enquanto entretenimento, a escrita de Kepnes funciona: nada limpa tanto a cabeça como ser outra cabeça. E não é que não se leia o segundo volume com agrado. Pelo contrário: já que a personagem forçara o leitor à empatia no primeiro livro, é natural que se queira passar mais tempo na cabeça de Joe, e conhecer o que será a vida depois de o mais importante já ter acontecido.

O leitor vira a excepcionalidade no primeiro romance. Joe convenceu-se tanto de que aquele era o único amor que importava que não apenas se permitiu cometer crimes a sangue-frio como convenceu o leitor de que só Beck importava. É por isso que, quando a mesma paixão doentia surge por Love Quinn, já vemos que a coerência obsessiva da personagem é uma fórmula para fazer render. Mais uma vez, há um rasto de corpos, há a instrumentalização de uma ideia de amor para anular fronteiras que o impeçam de conseguir o que quer. E, ainda que pareça haver verdade nos sentimentos de Joe por Love, tudo o resto é falso. Tudo o que lhe dá é o que julga que ela quer, jamais o que ele é. Faz-se amigo do irmão dela, apesar de o detestar. Quase nenhuma das suas falas tem verdade, porque é nos seus pensamentos que o vemos. Podemos aqui debater a fronteira entre o que se é e o que se escolhe ser, mas Joe só escolhe ser o que acha que poderá colmatar os desejos do que é. E o amor, mais do que amor, parece transformar-se apenas em compulsão. De repente, Beck é nada, Love é tudo. Com Beck, nem chegou a haver amor. Amor só depois de Love. E, aqui, chega a quebrar-se o laço de empatia com Joe. Tudo soa a treta. Perde-se a paciência. E, ao deixarmos de acreditar nas suas paixões totalizantes, entendemos que o descalabro é previsível.

Pelo meio, num e noutro livro, Joe consegue pensar-se como uma espécie de justiceiro social que vem trazer a paz ao mundo. Para lá das suas obsessões com mulheres, parece dar alguma atenção ao que o rodeia e a sua solução é sempre a mesma: contra um erro, a morte.

Love engravida e Joe vê-se pai. O pensamento não dura muito tempo, até porque nos livros, ao contrário da série, Love corta com ele. Ainda assim, a decisão da série parece mais plausível. Na terceira temporada, Joe e Love casam e criam a criança. Ele desapaixona-se ao descobri-la tão psicopata quanto ele – também ela tinha um pequeno rasto de mortos. Ainda assim, parece querer honrar o compromisso, ainda que se apaixone logo no primeiro episódio pela vizinha. A paixão tem perna curta, Love arranca mesmo o mal pela raiz, e a vizinha morre. A seguir, Joe apaixona-se pela bibliotecária. A narrativa tem várias reviravoltas e o espectador fica em transe à espera do que virá. Já se sabe, nesta altura, que, como a paixão cai de repente, não é credível. E Mary Kay, a bibliotecária, não parece ter carisma suficiente para fazer durar uma narrativa. Simplesmente, é a mulher que aparece, e é lá que a paixão de Joe bate em cheio. O padrão de um perseguidor passa, afinal, a ser este. Não é o amor ou a paixão que o estimulam, é perseguir que o preenche e o ocupa mentalmente.

Mais do que um psicopata, Joe será uma personagem consumida por uma obsessão-compulsão. Mesmo quando quer parar de perseguir, não consegue. E não chega a querer, porque vê ali tudo o que não apenas o consome mas também o preenche. Ao ser consumido, parece não ser capaz de se controlar.

No livro, que a Presença publicou em Portugal este mês, Love está na sua vida e Joe numa ilha onde conhece Mary Kay, que tem algumas semelhanças com a da série e muitas diferenças em termos de enredo. Claro, a principal diferença é mesmo a disponibilidade de Joe, que aqui não está a viver um casamento. Assim, e estando este viciado na ideia de perseguir e numa ilusão de amor, é claro que encontrará forma de obcecar com a primeira que aparecer.

Assim é. O terceiro volume é divertido, vemos de novo as ondas de uma cabeça que precisa de ser alimentada com várias doses de ficção. Mas, para além de Mary Kay ser uma personagem aborrecida, também se repete a fórmula: o amor que nasce porque sim, os amigos da amada como inimigos, mais mortos que aparecem aqui e ali, o desgraçado do perseguidor sempre em auto-comiseração por arranjar sempre forma de se ver em grandes problemas, como raptar alguém ou fazer de alguém refém. No final, há umas reviravoltas com o intuito declarado de apanharem o leitor de surpresa, mas nesta altura já se conta com isso. As obsessões de Joe já não convencem ninguém porque já sabemos que têm perna curta e que o grande final de Joe nunca poderia ser tão básico, com o amor menos impressionante e a mulher menos impressionante dos que haviam sido dados até este ponto.

Mais do que um psicopata, Joe será uma personagem consumida por uma obsessão-compulsão. Mesmo quando quer parar de perseguir, não consegue. E não chega a querer, porque vê ali tudo o que não apenas o consome mas também o preenche. Ao ser consumido, parece não ser capaz de se controlar, e em muitos pontos percebe-se que Joe, apesar dos seus momentos tortuosos de reflexão, que não chegam a ter auto-censura, encontra uma justificação para o que faz, salvando-se moralmente, de forma a poder continuar a fazê-lo. Assim, perante um cadáver, nada sente. Se morre uma mulher que amou, são vicissitudes da vida. A sua forma de pensar é tão peculiar, a narrativa é tão bizarra, que nem o leitor nem o espectador podem resistir à experiência de o seguirem.

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