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Epaminondas. A tortura que durou 44 anos

Após 44 anos de luta, Epaminondas conseguiu corrigir a causa da morte na certidão de óbito do avô, líder camponês que enfrentou a ditadura militar no Brasil. Uma história incrível e inspiradora.

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Na Grécia Antiga viveu um general incorruptível que liderou a revolta de Tebas contra a subjugação ao exército de Esparta. Chamava-se Epaminondas e, num elogio à sua bravura, Cícero chamou-lhe “o primeiro Homem da Grécia”. Em 1902 nasceria no Brasil um outro Epaminondas. Um homem que se tornaria um dos líderes locais da resistência campesina no estado do Maranhão contra a ditadura militar que dominou o Brasil ao longo de duas décadas, até 1985. Em 1971, Epaminondas foi capturado e morreu alguns dias depois, na prisão. Causa da morte oficial? “Anemia”. Após uma luta de várias décadas, porém, o seu neto – batizado com o mesmo nome do avô – conseguiu corrigir a certidão de óbito para que nesta se passasse a ler “tortura por espancamento e choques elétricos“.

Esta é a história de Epaminondas avô e de Epaminondas neto. Em finais de 2013, casualmente, o Observador conheceu o neto, hoje com 53 anos de idade, quando o brasileiro estava a passar alguns dias em Lisboa para se encontrar com Alípio de Freitas, padre português que passou longos anos no Brasil e que é uma figura bem conhecida da esquerda portuguesa. Alípio de Freitas conhecia o avô de Epaminondas e penou, ao seu lado, na assistência aos povos do sul do Maranhão, enfrentando a ditadura militar e os poderes feudais. 

Em 2013, o neto – cuja família nunca quis uma indemnização nem, sequer, um pedido de desculpas – estava prestes a conseguir a sua primeira vitória: encontrar e exumar o corpo do avô e dar-lhe um enterro decente na sua terra natal: Porto Franco, no Maranhão. Mas essa foi apenas a primeira batalha de Epaminondas e da sua família – a maior vitória chegou só esta semana, 44 anos e dois meses após a morte do avô.

epa

Epaminondas, à esquerda na imagem, seguiu carreira de investigador policial com a motivação de encontrar o avô, provar as causas da sua morte e dar-lhe um enterro decente, na sua terra natal.

Quando o meu avô faleceu, eu tinha nove anos de idade. Não entendia porque o meu avô fora morto e nós não velámos nem sepultámos o nosso ente querido como todos os outros mortos. Os meus pais pediam que não falássemos no assunto com ninguém. Na escola éramos rotulados de netos de terrorista, de comunista, sofríamos todo o tipo de preconceitos e, com o passar do tempo, tomei a decisão de encontrar e buscar esclarecer esta história que tanto nos maltratava“.

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O neto Epaminondas tornou-se inspetor policial e, em conversa telefónica com o Observador, explica que seguiu essa carreira porque queria, “em paralelo com o trabalho para o Estado, trabalhar nesta busca” para apurar as circunstâncias reais da morte do seu avô. Em jovem, foi para São Luís do Maranhão para a Polícia Civil e transferiu-se, assim que foi possível, para a Polícia Técnica, onde adquiriu conhecimentos ligados à exumação e à perícia médico-legal. 

Já tinha começado a “busca paralela” do então jovem Epaminondas, uma busca da qual ele não falava com ninguém – “nem com o meu pai nem com a minha mãe”. “De seguida, pedi transferência para a minha cidade – Porto Franco – e passei a entrevistar pessoas do tempo do meu avô, que tinham sido presas com ele no período da ditadura. Obtive vários documentos que o exército não apreendeu”, conta o investigador. Todo esse material, reunido ao longo de anos, viria a ser muito útil mais tarde. Muito mais tarde.

Coma anémico por desnutrição anémica”

O avô, Epaminondas Gomes de Oliveira, pertencia ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e foi capturado no estado vizinho do Pará pelo Pelotão de Investigações Criminais (PIC), que logo o levou para Brasília. Terá sido em inícios de agosto de 1971. Ninguém sabe a data ao certo, porque Epaminondas foi, inicialmente, dado como desaparecido

O que se sabe é que no dia 20 do mesmo mês, Epaminondas morreu e a família foi informada pelo Exército de que a causa da morte fora um “coma anémico” relacionado com uma “desnutrição anémica“, um tipo de maleita que não se ganha numa dúzia de dias. Foi essa a causa da morte que ficou registada na certidão de óbito mas “o meu avô não tinha anemia, ele trabalhava muito, não fumava, não bebia, tinha bom porte físico e saúde ótima”, garante o neto, ao Observador.

epaminondas

A única foto que restou de Epaminondas Gomes Oliveira.

“O meu avô não usava armas. Estudava muito e não tinha medo de denunciar o que via e as atrocidades cometidas pelo governo da época”, garante Epaminondas. A ditadura militar brasileira perseguiu milhares de pessoas suspeitas de pertencerem ao Partido Comunista ou de discordarem com o regime. A própria Presidenta Dilma Rousseff esteve presa e, também por isso, patrocinou a criação em 2011 da Comissão Nacional da Verdade, um organismo que procura esclarecer os crimes contra a Humanidade praticados pelo regime militar.

"O meu avô não usava armas, estudava muito e não tinha medo de denunciar o que via e as atrocidades cometidas pelo governo da época"
Epaminondas Oliveira Neto

Foi nessa altura que todo o material recolhido por Epaminondas, desde jovem, foi útil – quando recebeu um telefonema da Comissão Nacional da Verdade “para falar sobre Epaminondas Gomes de Oliveira”. Foi aí que o processo avançou e em breve se saberia mais sobre o que aconteceu ao antigo líder comunista. Um homem que atraiu ainda mais atenções quando, a certa altura, ajudou a levar um médico independente para a sua terra natal. “Esse médico tinha a alcunha de Juca“, recorda Epaminondas, que diz que isso foi algo visto como uma “afronta aos poderes dos senhores feudais, que facilitavam cuidados de saúde a troco de votos das pessoas e de submissão ao seu poder”.

O telefonema da Comissão foi uma bênção para Epaminondas, que havia várias décadas tinha um objetivo simples mas que significa tudo: corrigir na certidão de óbito do avô a causa da morte, a tal onde se lia que Epaminondas – avô – tinha morrido com uma “anemia”. Era só isso.

“A Cadeira do Dragão”

A primeira batalha do neto Epaminondas foi, em conjunto com a família, encontrar onde o corpo estava enterrado em Brasília – capital federal para onde o avô foi transportado porque se recusava a dar informações ao regime e porque gritava ‘ninguém muda os meus ideais’ enquanto estava sentado na Cadeira do Dragão, conta o neto. 

“Você sabe o que é a Cadeira do Dragão?”, pergunta Epaminondas ao Observador. “Eles colocam a pessoa amarrada a uma cadeira de ferro. Aí eles dão choque elétrico na cadeira de ferro e a pessoa leva a carga elétrica por inteiro, no corpo inteiro”.

Durante dez dias, Epaminondas terá sido torturado, eletrocutado e espancado. Acabou por morrer e foi enterrado, nunca entregue à família. “Diziam que só cinco anos depois poderiam entregar o corpo mas isso não aconteceu. Houve uma nova tentativa por parte da família para recuperar o corpo mas sem sucesso, eles não entregaram”.

"Você sabe o que é a Cadeira do Dragão? Eles colocam a pessoa amarrada a uma cadeira de ferro. Aí eles dão choque elétrico na cadeira de ferro e a pessoa leva a carga elétrica por inteiro, no corpo inteiro".

Epaminondas e os outros caras

Passaram décadas e, há dois anos, “graças a um enorme trabalho de pesquisa, a família viajou até ao local onde, de acordo com os registos, o avô estaria enterrado. Foram acompanhados de outras famílias, que também procuravam os seus parentes. Várias famílias encontraram caixas vazias. Em algumas situações as ossadas de outros caras, outros presos políticos, foram substituídas por ossos de animais“, conta Epaminondas. Mas acabou por ser encontrado o local exato onde o avô estava. “Estava num cemitério muito antigo – o Campo da Esperança – e os dados oficiais que encontrámos diziam que ele estava na cova 125. Mas num outro documento, um carimbo identificava que ele estava na cova 135″.

Cova número 135. Era aí que estava Epaminondas. Foram encontrados os restos mortais e feita a exumação. Vários testes em laboratório comprovaram a identidade – até as roupas foram reconhecidas por 43 testemunhas, entre as quais um antigo guarda. “Recolheu-se uma prótese dentária que foi levada para o dentista dele na época e o dentista tinha um molde, que tinha guardado aquele tempo todo”, que confirmou a expectativa da família de Epaminondas.

“Foi feito um trabalho de antropologia forense, fizeram todos os estudos científicos, foram contactadas testemunhas e não existem quaisquer dúvidas de que era ele“. Os restos mortais de Epaminondas viajaram até ao Maranhão e aí foi sepultado o antigo líder campesino, no mesmo mês da sua morte – agosto – mas de 2014, 43 anos depois.

funeral

Depois de exumado em Brasília, Epaminondas foi sepultado no Maranhão em 2014.

O que significa um pouco de tinta num papel?

Trazido o corpo para perto da família, chegara a hora de passar à segunda fase, a mais difícil mas, de certa forma, a que tinha o maior simbolismo. Epaminondas começou aí, com família e amigos, a delinear um plano para ser autorizada a alteração da causa da morte do avô na certidão de óbito. Em conversa telefónica com o Observador, Epaminondas passa vários minutos a agradecer a todos os intervenientes no processo, desde a advogada que preparou o processo (Alessandra Belfort e Silva), passando pelos promotores de Justiça (entre os quais a procuradora Ana Cláudia Cruz dos Anjos), até ao juiz que viria esta semana a decidir favoravelmente neste processo – António Donizete Aranha Baleeiro. 

Eis o que escreveu o juiz na deliberação, de final de agosto, sobre este processo e sobre os relatos das testemunhas que contaram o que realmente se tinha passado nos últimos dias de Epaminondas.

“Não precisam de maiores argumentos para se ter em mente que os danos são irreparáveis, num contexto histórico de erros, abusos e equívocos. São danos que não podem ser totalmente reparados, mas há meios legais que permitem ao menos amenizar a dor. As convicções são inequívocas de que perdeu a vida em razão de maus tratos, sofridos injustamente. Não vale transcrever tanto sofrimento de uma pessoa indefesa, que mal conseguia dizer ‘não sou comunista, sou socialista’, além de gritos horríveis”.

Foi uma decisão inédita, suportada no que o juiz considerou serem “convicções inequívocas”. Em nenhum outro caso, para já, foi alterado o registo de uma certidão de óbito em crimes relacionados com a perseguição pela ditadura militar. Num cartório em Brasília, Epaminondas obteve esta semana a nova certidão, onde se lê: “Causa da morte: tortura por espancamento e choques elétricos na Polícia da Aeronáutica e/ou Pelotão de Investigações Criminais (PIC) na cidade de Brasília“.

certidaaao

Depois de 44 anos, o que significa um pouco de tinta num pedaço de papel? “Hoje, tenho a consciência do dever cumprido e todo o desfecho positivo desta luta para mim está a ser uma grande celebração, uma grande vitória da nossa família e de toda a nação brasileira”, responde Epaminondas. E continua: “ver a correção de um ato que ceifou a vida de um homem de verdade representa um grande marco, um grande avanço para esclarecer as graves violações de direitos humanos e para esclarecer a verdade sobre a causa da morte de Epaminondas Gomes de Oliveira“. E dos outros caras.

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