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Quando, na tarde do dia 13 de março de 2013, a contagem dos votos dos cardeais fechados na Capela Sistina deixou claro que Jorge Mario Bergoglio sucederia a Bento XVI no trono de São Pedro, o cardeal brasileiro Cláudio Hummes, um dos eleitores no conclave, cumprimentou o então arcebispo de Buenos Aires e segredou-lhe: “Não te esqueças dos pobres.”
O aviso de Hummes foi decisivo para a primeira decisão que Bergoglio teve de tomar enquanto Papa — escolher o nome Francisco, em memória de São Francisco de Assis —, mas também ajudou o novo pontífice a consolidar o programa teológico que tinha esboçado perante os cardeais dias antes do conclave, quando, perante as congregações reunidas antes da eleição pontifícia, leu de uma folha manuscrita a síntese da sua proposta para a Igreja contemporânea: uma Igreja que sai de si própria, abandona a autorreferencialidade e procura as periferias.
Completam-se esta segunda-feira dez anos desde a eleição do Papa Francisco. Durante esta década, extraordinária para a Igreja, o Papa argentino foi frequentemente apelidado de reformador e revolucionário, ganhando um forte apoio popular fora das paredes da Igreja Católica.
A partir do exterior, o seu reformismo foi várias vezes interpretado como uma vontade de revolucionar a doutrina da Igreja e de acabar com as duras restrições do Catecismo nos temas fraturantes da moral sexual e da família. A partir de dentro, o pendor reformador de Francisco foi muitas vezes lido no contexto de um esforço de limpeza da Cúria Romana e de procura de soluções transparentes para os problemas dos abusos de crianças e dos escândalos financeiros no Vaticano. Ambas as interpretações têm elementos importantes sobre o pontificado de Francisco, embora este não possa ser verdadeiramente compreendido sem que nele se leia uma revolução essencialmente pastoral, que procura as pessoas antes das ideias, recusando uma Igreja de normas rígidas, buscando a proximidade a cada fiel e sublinhando uma mensagem simultaneamente inovadora e antiga: a de que a Igreja não é só para alguns, mas para todos.
Isto não significa que o pontificado do Papa Francisco seja marcado pela imposição de ideias mais ou menos novas. Pelo contrário, da formação jesuíta de Bergoglio salta à vista a centralidade do discernimento espiritual na busca de respostas. Mais do que as eventuais reformas implementadas (do ponto de vista da doutrina da Igreja, são poucas, destacando-se uma mudança do Catecismo no que diz respeito à pena de morte, mas nenhuma sobre os temas fraturantes habitualmente associados a Bergoglio), o maior legado do pontificado Papa Francisco são os muitos debates internos que abriu na Igreja — debates que, até Francisco, pareciam distantes da Igreja Católica contemporânea.
A atenção às periferias
No discurso que fez perante os cardeais reunidos no Vaticano dias antes de ser eleito Papa, o cardeal Jorge Mario Bergoglio traçou as linhas programáticas da sua visão para a Igreja Católica dos dias de hoje: “A Igreja está chamada a sair de si mesma e ir às periferias, não só às geográficas, mas também às periferias existenciais.”
Numa intervenção em que sintetizou aquilo que devia ser o lugar da Igreja Católica nos tempos contemporâneos, e que deu a muitos cardeais a convicção de que aquele era o homem certo para guiar a instituição nesse percurso, Bergoglio alertou para o perigo em que a Igreja estava a afundar-se: “Quando a Igreja não sai de si mesma para evangelizar, torna-se autorreferencial e então adoece.” O argentino foi mais longe: “Os males que, ao longo do tempo, se dão nas instituições eclesiais têm raiz de autorreferencialidade, um tipo de narcisismo teológico.”
A partir da Argentina, Bergoglio foi observando como a Igreja Católica, historicamente liderada por europeus e centrada numa mundivisão europeia, começou a perder relevância nas sociedades atuais: em 2011, já só 25,9% dos católicos viviam no continente europeu, mas há 1.200 anos que a Igreja Católica era sistematicamente liderada por Papas europeus e que, na sua esmagadora maioria, os cardeais eram também europeus. Em sentido contrário, a presença católica nas Américas crescia — mais de dois terços dos católicos do planeta vivem ali —, bem como na África subsaariana (23,6%) e na Ásia (13,1%).
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre os 10 anos de pontificado de Francisco.
Aparentemente, uma Igreja excessivamente europeia não estava a ser capaz de fazer passar eficazmente a sua mensagem nas sociedades europeias — e, por outro lado, a maioria dos católicos do mundo parecia já não se rever particularmente na cúpula eurocêntrica da Igreja.
A eleição do Papa Francisco, o primeiro pontífice não-europeu em 1.272 anos de história da Igreja, tornou-se ela própria uma metáfora para o pontificado de Bergoglio. Desde o primeiro momento, Francisco sublinhou que a missão da Igreja passa por se deslocar às periferias — e as periferias geográficas têm servido para colocar os holofotes sobre aquilo que Francisco classifica como as “periferias existenciais”: não só os pobres e os marginalizados, os países menos desenvolvidos e mais devastados pelas guerras, mas também aqueles que durante séculos a Igreja procurou excluir, como as mulheres, os homossexuais, os divorciados que voltaram a casar e, no geral, aqueles que a Igreja classifica como pecadores. O diálogo com aqueles que a Igreja historicamente afastou contribuiu para que o Papa Francisco ganhasse uma grande popularidade entre os não-crentes.
Consciente da imagem de riqueza e opulência que a Igreja permitiu que se gerasse sobre si própria ao longo de séculos, Francisco tem sublinhado a necessidade de “uma Igreja pobre, para os pobres”.
Um dos sinais mais claros desta vontade do Papa Francisco de abrir a Igreja às periferias lê-se na já longa lista de viagens apostólicas realizadas por Bergoglio no seu pontificado. Ao longo dos últimos dez anos, Francisco já visitou 59 países, incluindo lugares como Israel e a Palestina, a Albânia, a Turquia, o Sri Lanka, as Filipinas, a Bósnia e Herzegovina, a Bolívia, o Equador, o Paraguai, o Quénia, o Uganda, a República Centro-Africana, a Arménia, a Geórgia, o Azerbaijão, o Egipto, Myanmar, o Bangladesh, Moçambique, Madagáscar, a República Democrática do Congo ou o Sudão do Sul.
Várias dessas viagens foram classificadas como de alto risco por existirem conflitos armados em curso nas regiões visitadas pelo Papa — mas foi também frequentemente noticiada a insistência de Francisco em realizar algumas das viagens.
Noutro sinal de que pretende chegar aos marginalizados e excluídos, o Papa Francisco celebrou várias vezes a missa de quinta-feira santa em prisões, escolhendo lavar os pés a 12 reclusos no ritual em que a Igreja Católica recorda o momento em que Jesus Cristo lavou os pés aos discípulos na última ceia. Durante a crise dos refugiados, o Papa Francisco acolheu migrantes no Vaticano, trazendo para o centro das preocupações da Igreja Católica aqueles que vários responsáveis políticos de crucifixo na mão (como Matteo Salvini) procuravam marginalizar.
Outro dos aspetos em que a vontade de Francisco em levar a Igreja às periferias mais se tem notado é a reconfiguração do colégio cardinalício que o Papa tem operado nos últimos anos: é certo que ainda não foi superada a histórica sobre-representação do continente europeu no colégio cardinalício (25% dos católicos, 40% dos cardeais) nem a crónica sub-representação dos latino-americanos (39% dos católicos, 18% dos cardeais), mas a verdade é que, sob o Papa Francisco, o peso da Europa no colégio tem vindo a decrescer, enquanto a representação da América Latina, da Ásia e da África tem subido.
“Se olhar para a reforma que o Papa Francisco tem feito do colégio dos cardeais, percebe que a mudança mais interessante foi a nomeação de bispos e cardeais que estão nas margens da Igreja. Não apenas do mundo, mas da Igreja. Escolheu bispos com dioceses muito pequenas, às vezes com uma população católica muito pequena, em zonas de guerra ou nas fronteiras do conflito interreligioso”, explicava em 2021, em entrevista ao Observador, o biógrafo do Papa Francisco, Austen Ivereigh.
Na teologia do Papa Francisco, as periferias geográficas traduzem as periferias humanas, aqueles que a Igreja historicamente deixou à margem. “É sobretudo para uma Igreja que não seja autorreferencial, que não viva fechada sobre si mesma, sobre as suas pequenas questões, mas, como o Papa Francisco chama, seja a Igreja em saída”, analisava em 2018, também em entrevista ao Observador, o cardeal português D. António Marto. “Que vai ao encontro do mundo, que se torna uma Igreja próxima, uma Igreja acolhedora, uma Igreja misericordiosa, uma Igreja que estabelece pontes de diálogo com todos os quadrantes da sociedade, uma Igreja que procura ir às periferias existenciais, portanto todos os lugares do sofrimento, da pobreza humana — não só material, mas também espiritual — e, sobretudo, uma Igreja empenhada na construção e na aproximação dos povos em ordem à paz.”
Trata-se de uma atitude que rompe com a posição anterior da Igreja, marcada por uma “tentação de ficar fechada em si mesma”, como explicava também D. António Marto. “O Papa Francisco diz que prefere uma Igreja que suje as mãos e os pés no lodo do mundo, na lama, mas que saia ao encontro dos outros, correndo este risco de sujar, do que uma Igreja doente por ficar fechada em si mesmo e não respirar o ar puro.”
A resposta à crise dos abusos
Quando o Papa Francisco foi eleito, em 2013, a Igreja Católica já atravessava havia cerca de três décadas uma profunda crise de reputação devido ao escândalo dos abusos sexuais de crianças: no início da década de 1980, os primeiros casos de abuso e ocultação tinham começado a vir a público nos Estados Unidos; nos anos seguintes, casos como o escândalo Spotlight, em Boston, ou os relatórios devastadores publicados na Irlanda, tinham aprofundado a crise na Igreja — provocando um enorme desgaste na imagem pública de Bento XVI.
O Papa Francisco recebeu a batata quente em 2013 e, desde os primeiros meses, a questão dos abusos foi um dos temas centrais do seu pontificado, durante o qual se consolidou definitivamente a ideia de uma Igreja a pedir publicamente perdão pelos crimes de décadas. Logo em 2013, o Conselho dos Cardeais (outra inovação de Francisco, um conselho de cardeais composto pelo Papa para o ajudar no seu grande projeto de reforma da Cúria Romana) propôs a Francisco a criação de um organismo dentro da estrutura do Vaticano exclusivamente dedicado à proteção dos menores e à resposta ao problema dos abusos. A Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores seria formalmente criada em 2014 e é desde então presidida pelo cardeal Seán O’Malley, arcebispo de Boston.
Com a criação da comissão, o Papa Francisco colocou na própria estrutura institucional do Vaticano a preocupação com a proteção dos menores e reconheceu formalmente que o problema tinha de ser objeto de ação.
A primeira década do pontificado de Francisco ficou marcada por uma mudança de atitude em relação à questão dos abusos, indissociável de uma evolução também na sociedade, hoje menos tolerante perante a histórica inação da Igreja no reconhecimento do problema e no afastamento dos abusadores. Ao longo dos últimos dez anos, a Igreja Católica reconheceu gradualmente, em diferentes partes do mundo, a necessidade de investigar a fundo o que tinha acontecido no passado no que toca aos abusos: alguns casos, como os da Austrália, Alemanha, Estados Unidos, Espanha, França e, mais recentemente, Portugal tornaram-se paradigmáticos do modo como, durante décadas, a Igreja permitiu que o problema se propagasse no seu interior.
No que respeita à crise dos abusos, que se intensificou nos últimos anos, o legado do Papa Francisco fica marcado não só pela criação da comissão pontifícia, mas também pelo murro na mesa que deu no final de 2018, depois de um annus horribilis para a Igreja: depois da visita do Papa ao Chile (que tocou em feridas por sarar naquele país), do caso do cardeal americano Theodore McCarrick (que se tornou no primeiro cardeal demitido do sacerdócio por abusos) e do devastador relatório da Pensilvânia (que voltou a pôr o problema dos abusos no centro do debate), Francisco decidiu que era hora de dissipar as dúvidas e garantir que a tolerância era zero. Em setembro de 2018, convocou uma reunião inédita com os presidentes de todas as conferências episcopais do mundo (D. Manuel Clemente representou Portugal) para debater o problema dos abusos.
A reunião foi marcada para daí a seis meses, para fevereiro de 2019, e nela foram debatidos não só os problemas que ajudam a explicar a crise dos abusos e do encobrimento dos abusadores, mas também as medidas que devem ser tomadas para garantir a tolerância zero. Na sequência da cimeira, o Vaticano criou novas normas que os bispos em todo o mundo tiveram de replicar nas suas dioceses — e os dois anos que se seguiram à cimeira foram decisivos na criação de novas estruturas e normas internas. Foi nesse período, como resultado das discussões de Roma, que as dioceses criaram comissões de proteção de menores e que as diretrizes que os bispos têm de seguir para lidar com casos de abusos foram atualizadas. Foi também na ressaca dessa cimeira que a Igreja em vários países, incluindo Portugal, realizou investigações históricas sobre a realidade dos abusos.
Entretanto, na reforma da Cúria Romana que entrou em vigor no ano passado, a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores foi formalmente integrada no Dicastério para a Doutrina da Fé, o que consolidou a sua relevância na hierarquia eclesiástica. Como explicava em 2019 em entrevista ao Observador o padre jesuíta Hans Zollner, um dos elementos da comissão e um dos principais conselheiros do Papa no tema dos abusos, a comissão era composta por três grupos de trabalho (um dedicado aos sobreviventes, outro à formação dos sacerdotes e outro às questões legais). E, ao longo dos anos, já tinha organizado centenas de conferências em todo o mundo, realizado múltiplas ações de formação para membros do clero e atuado em vários casos concretos. Por outro lado, foi também a comissão que desenvolveu o modelo das linhas orientadoras implementadas pelas conferências episcopais de vários países do mundo.
“O Papa Francisco tem seguido este problema há quase seis anos, desde que foi eleito, e começou desde muito cedo a falar da necessidade de lidar com os abusos sexuais”, considerava Zollner, falando sobre a convocação da inédita cimeira: “Este é um passo muito importante, mas é um passo num caminho que ele tem colocado num lugar muito importante no seu pontificado até agora.”
A cimeira de 2019, que o Observador acompanhou ao minuto no Vaticano, será provavelmente um dos mais eloquentes exemplos do que tem sido o pontificado de Francisco: o Papa não impôs as suas ideias, mas abriu o debate sobre o assunto, colocando um conjunto de pessoas-chave a falar sobre o tema dentro da Igreja. A cimeira de 2019, que nos primeiros dias soube a pouco devido à falta de medidas concretas, acabaria por se revelar um dos momentos centrais na mudança de atitude da Igreja na crise dos abusos.
A limpeza das finanças do Vaticano
No início de 2012, a pouco mais de um ano de Bento XVI renunciar à liderança da Igreja Católica, teve início na imprensa italiana o escândalo que ficaria conhecido como Vatileaks: um conjunto de documentos com elementos sobre casos de corrupção nas finanças do Vaticano vieram a público (mais tarde, viria a saber-se que o mordomo do Papa, Paolo Gabriele, tinha sido o responsável por roubar os documentos), abrindo um intenso debate público sobre a falta de transparência nos meandros financeiros do Vaticano, sobretudo no Banco do Vaticano, a entidade através da qual a Santa Sé financia muito do trabalho social que desenvolve em todo o mundo.
À semelhança do que fez com a crise dos abusos de crianças, uma das primeiras medidas do Papa Francisco neste aspeto foi a criação de um organismo de supervisão no Vaticano: a Secretaria para a Economia, um novo dicastério da Cúria Romana, inicialmente liderado pelo cardeal australiano George Pell (que seria, mais tarde, arrastado para um processo por abusos de menores na Austrália, que terminaria em 2020 com a absolvição pelo Supremo Tribunal Australiano).
George Pell, até então arcebispo de Sydney, foi chamado pelo Papa Francisco para arrumar os fantasmas do passado, em relação às finanças duvidosas do Vaticano, enlameadas em casos de corrupção e acusações de lavagem de dinheiro. Como sinal da importância que Francisco deu a este combate, o novo organismo foi colocado no topo da hierarquia do Vaticano: Pell passou a ser a terceira figura da Santa Sé, apenas atrás do Papa e do cardeal secretário de Estado.
Cardeal Pell: “Se eu me visse como um verdadeiro embaraço para o Papa, parava amanhã”
“Não sabíamos qual era a situação financeira global do Vaticano e não estávamos certos de não estarmos em dívida. Ninguém, no Vaticano, tinha uma ideia completa do que se passava”, revelou em 2017 o próprio cardeal Pell, em entrevista ao Observador, recordando o contexto em que foi convidado pelo Papa Francisco para o cargo. A primeira decisão da nova secretaria foi a encomenda de um relatório extensivo sobre a situação financeira do Vaticano. “Quanto mais lia, menos supreendido ficava. Mas muito do que li não é edificante”, reconheceu Pell.
A partir do momento em que a Secretaria para a Economia foi criada, o Vaticano deu início a um profundo processo de reforma das finanças eclesiásticas. “Adoptámos os princípios de contabilidade modernos, transparência e cooperação internacional”, explicou Pell na mesma entrevista. Provavelmente, a maior inovação de Francisco neste aspeto terá sido a criação, em paralelo, do Conselho para a Economia, um grupo de 15 pessoas que inclui oito bispos e cardeais (de todos os pontos do globo, refletindo a universalidade da Igreja) e sete especialistas leigos de várias nacionalidades. Este grupo serve para aconselhar o Papa em matéria económica e para lhe dar recomendações sobre situações concretas. Com este conselho fora da alçada da Secretaria de Estado (organismo que, historicamente, tratava do dinheiro), a separação de poderes tornou as finanças do Vaticano mais transparentes no plano global.
Também no caso das questões financeiras, o Papa Francisco não impôs medidas, mas abriu debates e processos. Ao criar organismos novos e ao chamar especialistas para os integrarem, Francisco criou as condições para um sistema financeiro funcional no Vaticano — que, ao longo da última década, tem continuado a expurgar a Santa Sé de fantasmas passados.
Um deles — o escândalo em torno da aquisição de um prédio em Londres por 200 milhões de dólares — ganhou enormes dimensões em 2020 e obrigou o Papa a fazer novas reformas no setor da economia, incluindo a aprovação de novas leis internas para travar conflitos de interesse e para obrigar à realização de concursos mais transparentes para gastar dinheiro da Santa Sé, o encerramento de empresas criadas para gerir património do Vaticano e até a reorganização interna do organismo que administra financeiramente a Basílica de São Pedro.
A controvérsia em torno do prédio de Londres traduziu-se, mais recentemente, num ultramediático julgamento na justiça vaticana: dez arguidos, incluindo o cardeal Angelo Becciu (que chegou a ser uma das mais poderosas figuras do Vaticano, como número dois da Secretaria de Estado), estão no banco dos réus a responder por crimes de corrupção e peculato, um julgamento que poderá resultar em condenações de prisão. Becciu foi até afastado dos cargos que tinha — e perdeu os privilégios e direitos associados ao título cardinalício, incluindo a possibilidade de votar num próximo conclave.
O lugar das mulheres na Igreja Católica
Em outubro de 2016, o Papa Francisco visitou a Suécia para participar, com os responsáveis da Igreja Luterana, no início das comemorações dos 500 anos da Reforma Protestante. Num momento considerado, na altura, como um dos passos mais significativos dados pela Santa Sé no que toca ao diálogo ecuménico, o Papa Francisco esteve lado a lado com o então presidente da Federação Luterana Mundial, o bispo palestiniano Munib Younan, a presidir às celebrações.
Com uma celebração conjunta com as igrejas protestantes como pano de fundo, uma questão inevitável ganhou protagonismo: o lugar das mulheres na Igreja Católica. Na Suécia, o Papa Francisco esteve a celebrar ao lado da arcebispa Antje Jackelén, a presidente da Igreja da Suécia, que foi apenas o rosto mais visível de todo o universo do Cristianismo protestante — onde a ordenação de mulheres não só é permitida como comum. Como explicava na altura o Observador, alguns dados recentes ajudavam a ler este debate: na Dinamarca, por exemplo, havia mais mulheres seminaristas do que homens; no Reino Unido, a Igreja Anglicana tinha recentemente começado a permitir a ordenação episcopal de mulheres.
No voo de regresso da Suécia, os jornalistas questionaram o Papa Francisco sobre a possibilidade de as mulheres também virem a ocupar cargos sacerdotais na Igreja Católica. Numa espécie de anti-clímax após uma viagem que muitos dos ativistas pela ordenação das mulheres viram como um sinal de esperança, Francisco declarou: “Sobre a ordenação das mulheres, a última palavra, clara, é a de São João Paulo II, e ela permanece.”
Francisco referia-se à carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, escrita pelo Papa polaco em 1994. Trata-se de um documento em que João Paulo II refletia sobre os muitos pedidos feitos à Igreja para que passasse a admitir as mulheres ao sacramento da ordem, concluindo que “a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja”.
Apesar da desilusão provocada em muitos por esta resposta, é possível ler na globalidade do pontificado de Francisco a cautela de um Papa que sabe que na Igreja os avanços são lentos, muito lentos, e que têm maior possibilidade de sucesso se assentarem em pequenos passos sobre os quais haja acordos consistentes e generalizados: de outra maneira, arriscar-se-ia a promover cismas irreparáveis na Igreja Católica. E, vendo bem, Francisco não disse aos jornalistas que a palavra de João Paulo II é imutável: apenas que foi a última, que foi clara e que ainda permanece.
No caso do lugar das mulheres na Igreja, o pontificado do Papa Francisco ficará marcado, não pela chegada a uma verdadeira igualdade de género, mas pela abertura do debate sobre o assunto e pelo trilhar do caminho que poderá levar a Igreja a esse objetivo. Em agosto de 2016, por exemplo, o Papa Francisco criou uma comissão oficial, composta por 12 teólogos de renome internacional — seis homens e seis mulheres —, com o objetivo de estudar o diaconado das mulheres na história da Igreja. A ideia desta comissão era compreender qual foi, historicamente e sobretudo nos primeiros tempos da Igreja, a presença das mulheres nos lugares que hoje podem ser equiparáveis aos membros do clero ordenado, especialmente aos diáconos. Esse conhecimento científico poderá ser usado, no futuro, para tomar decisões sobre eventuais mudanças na doutrina da Igreja sobre a ordenação das mulheres.
A comissão acabou por não chegar a qualquer acordo sobre a matéria, mas em abril de 2020, depois do Sínodo da Amazónia, o Papa Francisco criou uma nova comissão para estudar o assunto.
Paralelamente ao estudo científico sobre o papel das mulheres na história da Igreja, o Papa Francisco também procurou promover este debate na instituição com ações concretas. Uma das mais célebres ocorreu em agosto de 2020, quando, numa reformulação do Conselho para a Economia em que foi preciso escolher os sete especialistas leigos do organismo, o Papa Francisco escolheu seis mulheres, todas especialistas reconhecidas em várias áreas da economia e finanças.
“É maravilhoso ver o compromisso do Papa na promoção das mulheres para cargos de tomada de decisão no Vaticano”, salientou na altura a economista e antiga deputada britânica Ruth Kelly, uma das especialistas nomeadas pelo Papa. O cardeal norte-americano Joseph Tobin, outro membro daquele conselho, considerou também que a nomeação de seis mulheres refletia “o esforço do Papa Francisco para assegurar maiores oportunidades para as mulheres colocarem os seus dons ao serviço da Igreja”.
O debate sobre o lugar das mulheres na Igreja Católica cruza-se com outro, para muitos teólogos mais importante: o lugar dos leigos e o combate ao clericalismo. Durante séculos, a quase total ausência de mulheres dos lugares de decisão da Igreja Católica não se deveu ao facto de a Igreja não permitir a ordenação de mulheres, mas ao facto de reservar os lugares de liderança para os membros do clero, transformando a pertença ao clero num elemento de poder e autoridade. Ao longo do seu pontificado, o Papa Francisco tem insistido na ideia de que os padres e bispos são tão membros da Igreja como os leigos — pelo que os lugares de tomada de decisão devem poder ser ocupados tanto por clérigos como por leigos.
Uma das perspetivas entre aqueles que melhor conhecem o pensamento do Papa Francisco assenta na ideia de que lutar pelo acesso das mulheres ao sacramento da ordem só contribui para um discurso clericalista que associa o poder aos membros do clero: pelo contrário, o combate deve ser em nome da inclusão dos leigos nos cargos de tomada de decisão. “As chefias de determinados dicastérios estão reservadas aos padres, portanto excluem as mulheres. Mas a exclusão aí não é de mulheres, é de leigos”, sublinhava ao Observador o biógrafo do Papa, Austen Ivereigh, destacando que Francisco está a fazer um caminho que, num primeiro momento, passa pelas “grandes áreas de liderança dentro da Igreja que não dependem da ordenação e que precisam de ser abertas aos leigos no geral e às mulheres em particular”.
A perspetiva contrária (ou seja, a de permitir o acesso das mulheres à ordenação para lhes dar um papel mais significativo na vida da Igreja), disse já o Papa, “iria restringir a nossa visão e levar-nos-ia a clericalizar as mulheres”.
Ao mesmo tempo, o Papa tem promovido o debate sobre a presença das mulheres na Igreja Católica abrindo formalmente os papéis de leitor e acólito às mulheres — até aqui estas ordens menores eram, do ponto de vista formal, reservadas aos homens, na maioria das vezes aos seminaristas que se encontravam no caminho rumo ao sacerdócio. “Ou seja, não há nada que impeça as mulheres de estarem no altar”, resumiu Ivereigh.
Entretanto, numa Igreja essencialmente descentralizada nos vários bispos do mundo, o Papa Francisco tem procurado dar o exemplo: em 2016, nomeou a historiadora da arte Barbara Jatta para o cargo de diretora dos Museus do Vaticano; em 2017, nomeou duas mulheres italianas, Gabriella Gambino e Linda Ghisoni, especialistas em bioética e filosofia, como subsecretárias do Dicastério para o Laicado, a Família e a Vida; em 2020, nomeou Francesca Di Giovanni para subsecretária da Secção de Relações com os Estados da Secretaria de Estado da Santa Sé, tornando-a na primeira mulher a ocupar um cargo diplomático no Vaticano.
Dificilmente o Papa Francisco poderia alterar, de um dia para o outro, a totalidade da doutrina da Igreja Católica para incluir as possibilidade de ordenar mulheres sem abrir a porta a uma fratura possivelmente irreversível na instituição. Contudo, os passos dados durante o pontificado de Francisco parecem ter aberto um debate que, até há algum tempo, estava definitivamente encerrado.
Nos temas “fraturantes”, as pessoas antes das polémicas
“Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?” A pergunta, feita pelo Papa Francisco durante uma conferência de imprensa a bordo do avião que o levou do Rio de Janeiro para Roma logo no primeiro ano do seu pontificado, após a Jornada Mundial da Juventude, viria a acompanhar todo o percurso do Papa ao longo dos anos. Tornar-se-ia até o título de um livro que reúne vários dos textos fundamentais para conhecer o pensamento de Francisco sobre os temas habitualmente classificados como “fraturantes”.
Ao longo de dois milénios, os homossexuais terão sido, sem dúvida, um dos grupos mais marginalizados e excluídos por parte da Igreja Católica. Até aos dias de hoje, o Catecismo da Igreja Católica continua a descrever os atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo como “depravações graves”, “intrinsecamente desordenados”, “contrários à lei natural” e, por isso, “não podem, em caso algum, ser aprovados”.
Logo nos primeiros meses do seu pontificado, o Papa Francisco deu sinais de que, sob a sua liderança, a Igreja Católica seria uma instituição menos empenhada na exclusão. Como resumiria mais tarde a revista Time, a abordagem de Bergoglio aos temas “fraturantes” é a de que “a verdadeira fé significa colocar as pessoas antes das polémicas”.
Ao longo do pontificado, o Papa Francisco usou esta ideia para reabrir debates que há muito pareciam encerrados na Igreja Católica.
O caso concreto das pessoas LGBT tem sido um dos mais relevantes. Em 2020, por exemplo, o Papa indicou que é a favor da possibilidade de uniões civis para pessoas do mesmo sexo. “As pessoas homossexuais têm o direito de viver em família”, disse, numa entrevista para um documentário. “São filhos de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deve ser expulso ou tornado infeliz por causa disso. Temos de criar uma lei para a união civil. Assim, essas pessoas estão legalmente protegidas.”
Embora não tenha defendido a possibilidade de abrir o matrimónio católico a pessoas homossexuais, o Papa Francisco abandonou a retórica antiga da Igreja — a da exclusão — e centrou o seu discurso na defesa e na inclusão das pessoas e não na aplicação cega de normas canónicas. Em muitas das suas intervenções sobre o assunto, o Papa lembrou que há muitos países onde a homossexualidade ainda é criminalizada; este ano, por exemplo, veio a público afirmar que as leis que criminalizam a homossexualidade são injustas.
A relação de Francisco com as pessoas LGBT manifestou-se especialmente no apoio público dado pelo Papa ao padre jesuíta americano James Martin, um clérigo mundialmente conhecido por se ocupar maioritariamente da inclusão da comunidade LGBT na Igreja Católica — e que, por isso, se tornou num dos principais alvos dos insultos das alas mais conservadoras e tradicionalistas da Igreja. “O Papa Francisco fez mais pelas pessoas LGBTQ que qualquer Papa antes dele”, disse, numa entrevista ao Observador, o padre James Martin. “Foi o primeiro Papa de sempre a usar a palavra ‘gay’ em público. As suas palavras mais famosas são ‘quem sou eu para julgar?’ e foram ditas acerca de pessoas homossexuais. Disse aos pais para não excluírem os filhos homossexuais da família. Nomeou cardeais, arcebispos e bispos que são muito mais acolhedores das pessoas LGBTQ. Tem amigos homossexuais, nomeou um homem assumidamente homossexual para uma comissão pontifícia.”
James Martin: “Não há ninguém mais marginalizado na Igreja de hoje do que as pessoas LGBTQ”
“Ele não mudou a doutrina da Igreja, mas seguramente mudou o rumo da conversa. E mudar o rumo da conversa é mudar a Igreja”, resumiu o sacerdote.
Outro dos exemplos da recusa do Papa Francisco em alinhar pelo clássico discurso da exclusão foi o caso dos divorciados que voltaram a casar. Durante décadas, a Igreja Católica — que considera o matrimónio indissolúvel — determinava que as pessoas que se tinham divorciado civilmente e voltado a casar estavam, na verdade, a viver em adultério (uma vez que a Igreja não considerava terminado o primeiro casamento), pelo que viveriam em pecado grave e não poderiam, por isso, aceder aos sacramentos, como a comunhão.
Em 2016, depois do Sínodo da Família, o Papa Francisco escreveu a exortação apostólica Amoris Laetitia, um dos documentos centrais do seu pontificado. Trata-se de um extenso texto sobre as questões da família, no qual o Papa recusa algumas práticas eclesiásticas, afirmando que “um pastor não pode sentir satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas”.
Francisco foi ainda mais longe, ao escrever: “Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado — mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja.” Numa nota de rodapé colocada nesta frase, o Papa escreveu: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos.”
Com estas palavras, o Papa Francisco abriu a polémica que viria a escavar o mais profundo fosso entre conservadores e progressistas na Igreja nos últimos anos. Como o Observador explicou na altura, para os setores mais progressistas, era um sinal de que o pontífice mostrava uma inédita abertura para admitir os divorciados recasados aos sacramentos. Para os mais tradicionalistas, uma afronta aos valores milenares dos sacramentos, sobretudo à comunhão.
Divorciados, abstinência sexual e Igreja. 8 perguntas para perceber a polémica
Multiplicaram-se as críticas contra o Papa, com origem nos setores conservadores da Igreja. Francisco foi até acusado de heresia por alguns teólogos, e quatro cardeais (incluindo o americano Raymond Burke, considerado um dos principais inimigos de Francisco dentro da Igreja) escreveram uma carta ao Papa pedindo-lhe a clarificação daquelas palavras. Francisco nunca respondeu diretamente ao pedido e, em várias intervenções públicas, manteve a sua posição: preocupar-se com o pecador antes de se preocupar com o pecado.
A posição de Francisco valeu-lhe muitos inimigos internos — e o mesmo aconteceria em relação ao aborto, outro dos clássicos temas “fraturantes” para a Igreja Católica. Em 2021, quando se vivia um clima de guerra aberta entre o Presidente dos EUA, Joe Biden, e os bispos americanos (um país onde a polarização dentro da Igreja Católica se tem acentuado particularmente nos últimos anos) devido ao facto de Biden, católico, defender o direito ao aborto, o Papa Francisco interveio para impedir os bispos de estabelecerem normas internas com vista a proibir políticos pró-aborto de aceder à comunhão.
Na guerra entre Joe Biden e os bispos, o Vaticano interveio para defender o Presidente dos EUA
Além de apelar ao diálogo dentro da Igreja sobre o assunto, o posicionamento do Vaticano também não terá agradado aos mais conservadores por ter incluído esta declaração: “Seria enganador se uma declaração dessas transmitisse a impressão de que o aborto e a eutanásia, por si só, constituem os únicos assuntos sérios da doutrina moral e social da Igreja que requerem a total responsabilização da parte dos católicos.” Por outras palavras, perante uma Igreja que tem insistido reiteradamente nos temas do aborto e da eutanásia, o Papa Francisco defendeu que há mais temas importantes que devem merecer a atenção da Igreja. Durante o seu pontificado, Francisco tem apontado para vários deles, incluindo a pobreza, os migrantes ou os conflitos armados em vários pontos do mundo.
A reforma da Cúria, o lugar dos leigos e o sínodo
As congregações gerais que antecederam o conclave de 2013 não ficaram apenas marcadas pelo poderoso discurso do cardeal Jorge Mario Bergoglio, que serviu como rampa de lançamento para a escolha do novo Papa. Um a um, todos os cardeais presentes falaram perante os colegas sobre as suas ideias e visões para a Igreja Católica e disseram aquilo que consideravam ser expectável do futuro Papa. Desses discursos, destacou-se uma palavra: reforma.
“Houve um apelo constante para uma reforma. Houve muita gente a alertar para a necessidade de reformar a Igreja”, contou em 2018, numa entrevista ao Observador, o cardeal ganês Peter Turkson, um dos principais aliados do Papa Francisco na hierarquia do Vaticano e frequentemente apontado como possível sucessor de Bergoglio. “Para o Papa Francisco, esta reforma para a qual os cardeais alertaram é a continuação do Concílio Vaticano II.”
Quando Francisco assumiu o trono de São Pedro, a reforma da Igreja, a começar pela reforma da pesada estrutura da Cúria Romana, era uma das tarefas centrais do seu caderno de encargos. “Uma das reformas era simplificar a estrutura da administração da Igreja, a Cúria. Simplificar essa estrutura, torná-la mais eficiente, torná-la mais criativa e mais inovadora”, explicou ainda Turkson. “Esta simplificação tinha de ser guiada por uma certa filosofia, uma certa lógica, e, para o Papa Francisco, a lógica que guia a reforma é a lógica de uma Igreja que é pobre, uma Igreja que consegue ir às periferias, uma Igreja que consegue dar resposta às condições da humanidade dos dias de hoje.”
Cardeal Peter Turkson: “Separar o Estado e a Igreja é esquizofrénico”
Em 2013, a maioria dos cardeais já conseguiam ver claramente que a Igreja Católica estava a perder a sua capacidade de se manter relevante no continente europeu. “Muitas pessoas costumam dizer que a cultura europeia se baseia em três coisas: a filosofia grega, o direito romano e a tradição cristã. Estas três dimensões juntam-se para criar uma cultura europeia. Mas, como sabemos agora, a Europa tem dificuldades com esta parte cristã. A esta situação, uns chamam secularização, outros laicização, dão-lhe nomes diferentes. O grande desafio é que a experiência cristã na Europa, agora, não é o que foi antes”, considerava Turkson.
Para o Papa Francisco, era bem clara a missão de reformar a Cúria Romana, “mas não o queria fazer sozinho”, sublinhava o cardeal ganês ao Observador. “Por isso, criou um grupo de nove cardeais, com quem se encontra para planear e pensar tudo isto.” Seria este grupo, batizado como Conselho de Cardeais, a recomendar ao Papa Francisco a criação da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores.
Sob a liderança do Papa Francisco, os cardeais assumiram a missão de “reestruturar a organização da Cúria Romana, para permitir que o Papa possa fazer melhor o seu trabalho”. A ideia central era libertar a Igreja de um peso institucional e mundano excessivo e colocar a estrutura funcional e burocrática da instituição ao serviço da missão central. “Nós somos a Igreja, não somos as Nações Unidas. As Nações Unidas, para falar de desenvolvimento, vão falar do PIB. Isso é muito económico. Para nós, não é isso que importa”, exemplificava Turkson.
Ao longo das décadas, a Cúria Romana — no fundo, a estrutura executiva de governo da Santa Sé, ou seja, da Igreja a nível global — transformou-se numa pesadíssima máquina burocrática, com dezenas de congregações, dicastérios, secretariados, organizações financeiras, comissões e conselhos, com centenas de funcionários. Dentro desta estrutura pesada, floresceram as lutas de poder, os lóbis, o carreirismo eclesiástico e os conflitos internos que alimentaram múltiplas teorias da conspiração dignas dos romances de Dan Brown.
O trabalho de reforma da Cúria Romana foi o grande projeto institucional do pontificado de Francisco. O processo foi longo, arrastou-se durante quase uma década e foi-se desenrolando nos bastidores de um pontificado inevitavelmente marcado por múltiplas crises dentro e fora da Igreja, desde a questão dos abusos de crianças à pandemia da Covid-19 (que atrasou todos os processos em curso no Vaticano). O próprio Conselho dos Cardeais, o inédito grupo onde este processo se desenvolveu, sofreu várias reconfigurações ao longo dos anos.
A reforma ficou finalmente pronta em junho de 2022, com a publicação da constituição apostólica Praedicate Evangelium, um documento com 250 artigos que implementa uma nova organização interna do governo eclesiástico. Em primeiro lugar, são abolidas as antigas “congregações”, que passam a designar-se apenas “dicastérios” — e todos os organismos da Cúria, incluindo a Secretaria de Estado, os dicastérios e as outras instituições, passam a ser juridicamente iguais entre si, acabando com uma hierarquização que favorecia o carreirismo e a distinção entre dicastérios “maiores” e “menores”.
Mas as alterações ao funcionamento da Cúria Romana são mais numerosas e significativas. Uma das maiores inovações prende-se com a igualdade entre todos os cristãos, que se traduz especificamente no facto de, com esta nova lei interna, a liderança dos dicastérios — que podem ser, grosso modo, comparados aos ministérios de um governo — deixar de estar reservada a clérigos e poder passar a ser ocupada por leigos. Francisco já tinha dado um primeiro sinal de que queria que este fosse o caminho, ao nomear o jornalista italiano Paolo Ruffini como prefeito do Dicastério para a Comunicação. Agora, a lei do Vaticano prevê expressamente essa possibilidade.
Os novos regulamentos da Cúria Romana são um tratado contra o clericalismo, um dos grandes problemas identificados pelo Papa Francisco na Igreja Católica contemporânea, perversão das ideias de poder, autoridade e serviço que levou a instituição a girar em torno de um suposto “poder” dos membros do clero, classificados como elite que atua num plano superior aos leigos. Na ótica do Papa Francisco, o clericalismo contribuiu decisivamente para o aprofundar da crise dos abusos de crianças na Igreja, que historicamente sobrepôs a proteção da sua reputação e do seu poder à defesa das vítimas.
Numa apresentação pública do novo documento, em março de 2022, o canonista italiano Gianfranco Ghirlanda, um dos relatores da constituição, explicou a intenção do Papa Francisco de, com as novas regras, assegurar a igualdade entre todos os batizados — membros do clero ou não. Segundo Ghirlanda, quando um católico é nomeado como líder de um dicastério, a sua autoridade não se deve “ao grau hierárquico que lhe é investido”, mas à “potestade” que lhe é entregue pelo Papa. “Se o prefeito e o secretário de um dicastério são bispos, isso não deve levar ao equívoco de que a sua autoridade vem do grau hierárquico recebido, como se agissem com um poder próprio. A potestade vicarial para exercer um ofício é a mesma se for recebida de um bispo, presbítero, consagrado ou consagrada, leigo ou leiga”, afirmou Ghirlanda, sublinhando que “o poder de governo na Igreja não vem do sacramento da Ordem, mas da missão canónica”.
Entre as novidades da reforma da Cúria Romana inclui-se também a obrigação de rotatividade dos funcionários dos dicastérios, que passam a ter uma limitação de cinco anos em funções, podendo no máximo ser reconduzidos por um novo período de cinco anos, depois do qual devem voltar à sua diocese de origem — uma medida que tem como objetivo combater o carreirismo eclesiástico nos centros de poder do Vaticano. Regista-se também a descentralização de competências do Vaticano para as dioceses e conferências episcopais, a redução do número de organismos na Santa Sé, um combate à burocracia desnecessária e a inclusão da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores no Dicastério para a Doutrina da Fé, dando mais poder a este organismo.
Em entrevista ao Observador, o cardeal D. António Marto sublinhava a relevância da reforma da Igreja levada a cabo pelo Papa Francisco, elogiando o facto de esta reforma dar “um lugar próprio ao laicado, aquilo a que ele chama Igreja sinodal, que não é só feita pelo clero, que vivia no clericalismo, mas com a participação responsável de todo o laicado”.
A conclusão da reforma da Cúria Romana no verão de 2022 fez surgir uma questão inevitável: agora que o grande projeto do pontificado de Francisco estava concluído e que pairava no ar uma sensação de “missão cumprida”, seria de esperar para breve a renúncia do Papa, que nunca afastou a possibilidade de seguir os passos do antecessor?
É pouco provável, como explicou na altura o Observador. Para compreender porquê, é preciso ter em conta outro processo iniciado pelo Papa Francisco: o sínodo sobre a sinodalidade. O Sínodo dos Bispos, que existe desde 1960, é uma assembleia de bispos de todo o mundo que se reúne a cada três ou quatro anos para colaborar com o Papa na tomada das decisões mais importantes sobre as principais linhas orientadoras da vida da Igreja Católica.
Em outubro de 2021, porém, o Papa Francisco pôs em cima da mesa uma proposta diferente: a realização de um sínodo sobre a sinodalidade, com a participação dos leigos de todo o mundo. Em vez de uma única assembleia de bispos em Roma, este sínodo está a funcionar de modo diferente, por fases a nível paroquial, diocesano, nacional, continental e finalmente universal. Neste processo, a Igreja tem procurado ouvir os fiéis sobre o que consideram ser os principais problemas da instituição. O processo vai concluir-se com a realização de duas assembleias — em outubro de 2023 e outubro de 2024 —, das quais deverá sair, depois, um documento final do Papa.
Católicos portugueses alertam para Igreja “estagnada, pouco transparente e preocupada com a imagem”
O sínodo sobre a sinodalidade, que abriu na Igreja Católica um debate interno inédito no qual a voz principal foi dada aos leigos, e não aos bispos, é, na ótica de muitos analistas, o grande legado que o Papa Francisco pretende deixar à Igreja Católica no que toca aos processos internos da instituição. No caso português, por exemplo, os resultados das discussões internas nas paróquias e dioceses revelou uma Igreja “demasiado hierárquica, clerical, corporativa, pouco transparente, estagnada, resistente à mudança”. Em outubro deste ano, serão estes e outros contributos — oriundos dos cristãos comuns — a estar em cima da mesa do Papa no Vaticano.
A diplomacia no Vaticano
Será, provavelmente, um dos atos que ficarão para a história do Papa Francisco: no dia 25 de fevereiro de 2022, um dia depois de a Rússia invadir a Ucrânia, o pontífice saiu do Vaticano e deslocou-se pessoalmente à embaixada da Rússia na Santa Sé para falar com o embaixador russo e “expressar a sua preocupação sobre a guerra”, numa reunião em que terá, alegadamente, falado por telefone com Vladimir Putin; depois, telefonou a Volodymyr Zelensky; mais tarde, enviou dois dos principais diplomatas do Vaticano à Ucrânia. Nas primeiras semanas da guerra, o Papa Francisco não poupou esforços na tentativa de oferecer a mediação do Vaticano para a resolução do conflito.
Ao longo dos meses seguintes, a esperança numa mediação bem sucedida viria a esmorecer — sobretudo quando se começou a tornar claro que o patriarca de Moscovo, Cirilo I, que poderia ser o interlocutor de excelência do Papa Francisco na Rússia, se assumiu como um defensor da intervenção militar na Ucrânia. À medida que a esperança foi perdendo força, o Papa Francisco endureceu o discurso contra a Rússia, mas nunca deixou de lado a possibilidade de mediar eventuais negociações de paz entre Kiev e Moscovo.
A forte aposta na diplomacia vaticana será também um dos grandes legados do pontificado do Papa Francisco — e um dos principais processos que o Papa argentino abriu no Vaticano nos últimos anos. Basta pensar em episódios concretos, como o momento histórico em que o Papa Francisco juntou o presidente de Israel, Shimon Peres, e o presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, nos jardins do Vaticano para uma oração pela paz no Médio Oriente, ou então no acordo assinado entre Estados Unidos e Cuba em 2014, que permitiu o restabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países ao fim de décadas de afastamento, e que só foi possível graças à mediação direta do Papa Francisco.
A diplomacia “tem sido muito bem exercida pelo Papa Francisco e pelos seus diplomatas”, considerava, em entrevista ao Observador em 2022, o jornalista romeno Victor Gaetan, um dos principais especialistas do mundo nas questões da diplomacia vaticana. “Ouvir, mostrar empatia, procurar formas de entender as angústias dos outros, levá-los a entender os valores mais elevados da cedência para alcançar a paz. Isto são instrumentos que foram exercidos em 2014, nos detalhes, quando os dois lados chegaram a um impasse — as delegações de Cuba e dos EUA — e pediram ao Vaticano para intervir. (…) É uma mediação em que não há vencedores nem derrotados.”
Gaetan dava ainda um exemplo que ilustra a relevância da diplomacia vaticana sob o Papa Francisco: nos primeiros dias da guerra, o núncio apostólico “foi o único diplomata que não saiu de Kiev”. A nível global, o Vaticano está numa das posições mais privilegiadas para exercer a diplomacia, uma vez que tem pessoas espalhadas por todo o globo. Não apenas os diplomatas propriamente ditos, mas todos os padres, freiras, missionários e outros agentes pastorais, que compõem uma autêntica rede diplomática que permite à Santa Sé ter informação pormenorizada do terreno em qualquer latitude: basta pensar no caso do terrorismo em Moçambique, situação dramática que se conhece, em grande medida, devido à presença da Igreja no local.
Ao longo do seu pontificado, o Papa Francisco tem usado com frequência as muitas ferramentas diplomáticas da Santa Sé para as colocar ao serviço da sua visão da Igreja. “O Papa Francisco é um monarca. Não tem constituintes, não tem comércio internacional, não tem interesses territoriais. É livre, o que é uma vantagem. Está livre de quaisquer preocupações terrenas, de quaisquer posições. É assim que ele se dirige a todos os líderes”, resumia Gaetan ao Observador.
O lugar de um Papa
Finalmente, será relevante mencionar um outro debate aberto ao fim de dez anos de pontificado: a discussão em torno da nova relevância dada ao lugar do Papa.
Nos primeiros meses do pontificado, o Papa Francisco atraiu a atenção mediática global mais pelos pequenos gestos quotidianos do que pela sua teologia. A recusa de vestes e mobiliário litúrgico ostensivo, a preferência por residir em comunidade na Casa de Santa Marta em vez do luxuoso apartamento papal, as constantes quebras de protocolo, os telefonemas ao quiosque e à receção do hotel, e por aí fora — gestos que, sobretudo quando colocados em contraste com o clássico Bento XVI, contribuíram decisivamente para construir a ideia de “homem normal” em torno de Francisco.
Para a consolidação desta ideia contribuíram também, em larga medida, as posições do Papa Francisco nos temas mais quentes do debate público, incluindo as questões LGBT, os direitos das mulheres, o combate aos abusos sexuais e o tratamento dos escândalos financeiros. Por contraste com lógicas de atuação antigas, marcadas pelo distanciamento do Papa e por um grande foco colocado sobre o legalismo eclesiástico que levava à exclusão e à recusa do diálogo com aqueles que se encontram à margem dos ditames do Catecismo, Francisco assumiu uma postura de proximidade que poderá ter atraído os fiéis que andavam mais descontentes com a instituição — mas, na mesma medida, aprofundou divisões e discórdias em relação aos grupos mais tradicionalistas e conservadores, que já desde o Concílio Vaticano II olhavam com desconfiança para uma certa tendência de mundanização da Igreja.
Importa também ter em conta que o Papa Francisco foi eleito num momento particular para a Igreja: num conclave que não se seguiu ao funeral do antecessor, mas a uma renúncia histórica de Bento XVI que marcou decisivamente a história da Igreja. Depois da renúncia de Bento XVI, o papado não poderia voltar a ser como antes: sobre o seu sucessor recairia sempre a questão de seguir ou não o exemplo. Durante os dez anos do seu pontificado, o Papa Francisco foi dando vários sinais de que, se perdesse as forças para continuar, não descartaria optar um dia pela renúncia, decisão que considerou ter contribuído para humanizar o lugar do Papa.
Se é verdade que será muito difícil prever quem será o sucessor de Francisco à frente dos destinos da Igreja Católica, é igualmente verdade que uma das grandes apostas de Bergoglio tem sido a nomeação de cardeais entre os bispos mais alinhados com a sua visão da Igreja — o que significa que, no próximo conclave, a maioria dos eleitores serão figuras com perspetivas sobre a Igreja contemporânea muito semelhantes às do Papa Francisco.