Halim Shirzad estava habituado a observar o aeroporto de Cabul. Da casa onde morava com a mulher e o filho bebé ouviam-se as zoadas dos aviões que por ali se agitavam antes do local se tornar num apinhado de aflição. Halim foi obrigado a conformar-se com a ideia de se tornar vizinho do desespero. No verão de 2021, os talibãs ocuparam o Afeganistão e levaram milhares de pessoas a tentarem fugir do país e do regime opressivo que os extremistas se preparavam para impor 20 anos depois de terem perdido o controlo sobre a região.
Poucos acreditaram nas promessas de maior abertura feitas pelos novos líderes políticos ou não fossem eles os mesmos que um ano antes assinaram um acordo com os EUA em que se comprometiam a não atacar o país. “A nossa casa era muito próxima do aeroporto. Nós vimos tudo. Muitas pessoas estavam a atravessar a nossa casa para irem para o aeroporto”, contou Halim ao Observador. Para muita gente, morrer a tentar fugir parecia um cenário mais animador do que acabar nas mãos dos talibãs. Notava-se isso na forma como os civis se agarravam às asas dos aviões que procuravam descolar numa pista preenchida por pessoas entregues aos impulsos da sobrevivência.
Halim não precisou de mais do que um mês para perceber que não queria continuar em Cabul. “Tudo mudou. Era como se agora te dissesse que não podes usar essa camisola preta. Sentes que não tens direitos. Para mim, isso não faz sentido. Era como no tempo em que as pessoas tinham escravos. Sentes-te um escravo, não és livre. Não é aceitável para mim, não posso viver neste tipo de situação. Nessa altura, decidi que precisávamos de sair”, descreve o homem, agora com 31 anos. “A minha mulher estava a trabalhar e não permitiam que as mulheres fossem à escola, que trabalhassem. O meu filho precisa de ter um bom futuro. Essa foi a razão pela qual saí. Eles precisam de um bom futuro. Não via um futuro brilhante para eles ali”.
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Por esta razão, em conjunto com a mulher e com o filho que ainda não tinha completado dois anos, Halim Shirzad rumou ao aeroporto para tentar viajar, mas o risco de morrer antes de sequer embarcar num avião levou-o a procurar outra solução. “Era difícil furar por entre as pessoas. Tinhas que correr riscos, alguém ia morrer. As pessoas estavam a empurrar e ninguém queria saber se eras novo, velho ou se tinhas crianças. As pessoas só queriam sair do país”.
Ao longo dos anos em que os talibãs estiveram afastados do poder no Afeganistão, Halim tornou-se árbitro depois de, em 2010, abandonar um não assim tão sério percurso como jogador. “Não gostava de ser árbitro nessa altura, mas havia um curso na federação local para o qual nos convidaram a participar. Estive lá com 30 árbitros e fui o melhor”. A partir daí, foi sempre a subir. Começou por arbitrar jogos das camadas jovens e, após anos de experiência e vários cursos, tornou-se árbitro da AFC (Asian Football Confederation) e da FIFA em 2019/2020, o que lhe permitiu arbitrar na Liga dos Campeões Asiática.
A situação profissional de Halim e da mulher levaram a que família dispusesse de duas soluções mais tranquilas para abandonar o país. A primeira foi um programa apoiado pela FIFA que dava hipótese ao staff da Federação Afegã de Futebol sair do país rumo ao Canadá. “Disseram-nos que nos iam enviar um carro e apanhar-nos em casa, porque a situação do aeroporto não era boa. Muito do staff da Federação saiu. Eu não fui, porque a minha mulher e o meu filho não tinham passaporte. Não podia ir sozinho e não sabia quantos anos depois é que os podia ir buscar. Decidi ficar com eles”. No entanto, Halim abraçou a segunda hipótese.
“Houve outra oportunidade para nós. A minha mulher estava a trabalhar na Federação Afegã de Futebol. Houve um programa organizado pela Farkhunda Muhtaj, capitã da seleção nacional feminina do Afeganistão. Ela ajudou as mulheres afegãs e as suas 14 seleções nacionais femininas e contactou a minha mulher. Foi por isso que viemos para Portugal. A minha mulher trabalhava no departamento de relações internacionais da Federação. Foi por isso que a oportunidade veio ter connosco. Queríamos ir para algum lado para estarmos seguros”, recordou Halim Shirzad.
O árbitro afegão voou tranquilamente do Afeganistão para a Geórgia e posteriormente aterrou em Portugal. Inicialmente, ficou instalado em Fátima e pensava que nunca mais voltaria a arbitrar. Graças à ajuda de Jorge Maia, Presidente do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol de Santarém, começou a dirigir jogos da Distrital. Agora, estabeleceu-se em Lisboa e integrou os quadros da Federação Portuguesa de Futebol. “Quando saí do Afeganistão não tinha certezas. ‘Vou conseguir recomeçar de novo ser árbitro ou não?’. Comecei a arbitrar em Santarém e depois deram-me a oportunidade de estar na Segunda Liga. O primeiro jogo [oficial, Oliveirense-Feirense, 3-1] foi fantástico para mim. Foi aí que senti que podia continuar o meu sonho”.
Halim Shirzad recebeu apoio do Estado português durante um ano. Atualmente, tem um vida estável. Em paralelo com a arbitragem, trabalha numa multinacional que opera no setor financeiro. O afegão confessa que pensa deixar de arbitrar a nível internacional para se poder dedicar exclusivamente ao trabalho, à família e ao futebol português. No entanto, sabe que se o fizer fica sem hipóteses de poder dirigir jogos num Mundial.
“Estou a tentar encontrar-me no futebol português. É completamente diferente. Ok, as regras são as mesmas, mas o país é diferente, a forma como o futebol funciona é diferente. Tenho que me adaptar”, confessa. “A atmosfera do jogo é totalmente diferente do Afeganistão e mesmo da Ásia. Aqui, as pessoas vivem para o futebol. Mesmo na Distrital, a atmosfera do jogo é muito tensa. As pessoas estão muito entusiasmadas em relação a cada situação do jogo. Tens que estar constantemente a ler cada situação. Não podes dizer, ‘Ok, isto é um jogo da distrital, ninguém quer saber, estas duas equipas vêm aqui só jogar futebol’. Não. Mesmo que só haja um espetador, há interesse naquele jogo. Para mim, é completamente diferente. Aqui, o futebol é rápido, a emoção está muito elevada, a temperatura é muito elevada. Como árbitro, não podes adormecer por um segundo, tens que estar sempre acordado e focado no jogo”.
O Afeganistão continua a ser controlado pelos talibãs. Apesar das promessas de um maior respeito pelos direitos humanos, a população continua a ter liberdades limitadas. A Human Right Watch, ainda em relação a 2022, destaca que especialmente a população feminina está impedida de circular livremente, poder trabalhar, ter acesso a educação ou receber cuidados de saúde. A oposição ao regime tem sido silenciada com recurso à tortura e a execuções sumárias. Os media são condicionados com ameaças e a homossexualidade é criminalizada. A pobreza e fome que afeta o país ficou em particular evidência com o sismo que atingiu o país em no início de outubro e que causou centenas de mortos.
Halim Shirzad não pensa em regressar ao Afeganistão, pois está satisfeito com a vida que leva em Portugal. “Os portugueses são muito amigáveis e generosos”, afirmou. “Quando cheguei aqui, as pessoas da Federação Portuguesa de Futebol, começando pelo presidente e indo para baixo, mostraram-me sempre uma cara muito alegre. Deram-me a sensação de que posso estar aqui por muito tempo de que não sou estrangeiro. Estou feliz por estar aqui”.