É mais um caso em que uma grávida acusa uma unidade hospitalar do SNS de falhas na assistência na gravidez ou no momento do parto. Desta vez, é o Hospital Amadora-Sintra que está debaixo de fogo. Uma mulher, de 32 anos, perdeu duas bebés gémeas, às 27 semanas de gestão, no dia 25 de dezembro, avançou esta segunda-feira o Correio da Manhã. A angolana Cassilda Camassuetacama acusa o Hospital Fernando da Fonseca de negligência, mas a unidade hospitalar nega.
Cassilda foi internada dia 11 de dezembro, com um quadro de pressão arterial elevada, situação que afeta cerca de 10% das grávidas e pode ter consequências no normal desenvolvimentos dos fetos, através do descolamento da placenta. A mulher terá sido tratada, tendo os valores da pressão arterial voltado ao normal.
“O objetivo do internamento era a garantia de que a gravidez evoluísse de forma estável, com repouso, até poder ser realizado um parto que garantisse a viabilidade dos bebés em cuidados intensivos de Neonatologia”, sublinhou o hospital, em resposta ao Correio da Manhã. A verdade é que a situação se agravou. Nove dias depois, a 20 de dezembro, os médicos terão detetado “restrição de crescimento de uma das gémeas”. É nesta fase que surge a primeira acusação de Cassilda e as primeiras versões contraditórias. A grávida afirma que os problemas foram detetados apenas no dia 20, mas o Amadora-Sintra garante que “a restrição de crescimento” foi identificada ainda no dia 12, logo a seguir ao internamento, e que afetava ambas as bebés — e não apenas uma.
No dia 11 de dezembro, 0 hospital deu indicação para ser feito um ecocardiologia fetal (que serve para avaliar a função cardíaca dos fetos) e pediu a realização do exame ao Hospital de Santa Cruz, que nunca foi realizado. O SNS tem carência de cardiologistas pediátricas, explica ao Observador o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal, Nuno Clode, sem se querer alongar sobre o caso em particular.
Utente recebeu “cuidados diferenciados”, garante Amadora-Sintra
Só no dia 25 de dezembro a morte das duas bebés foi confirmada. Questionado pelo Observador, o Hospital Fernando da Fonseca garante que “a utente e os fetos receberam cuidados de saúde diferenciados e humanizados“.
Fonte oficial do hospital explicou ao Observador que Cassilda tem uma “patologia infecciosa de base” (que a mesma fonte não quis especificar) e “pressão arterial elevada”. Os médicos decidiram não antecipar o parto, uma vez que fazê-lo, numa fase tão precoce da gestação, acarretaria grandes riscos para as bebés. “Um parto com 25 semanas de gestação gemelar terá um risco de mortalidade próximo de 100% (nas gravidezes monocoriónicas [em que as os bebés partilham a mesma placenta, o que seria era o caso] é aconselhado a partir das 34 semanas)”, esclarece a unidade hospitalar.
Cassilda queixa-se de que a quantidade de exames realizados foi insuficiente. A mulher acabou por receber um SMS para uma consulta no Hospital de Santa Cruz (especializado em patologias cardíacas) no dia 4 de janeiro, 10 dias depois da confirmação da morte das bebés. O hospital Amadora-Sintra admite que não informou o Hospital de Santa Cruz das mortes dos bebés. “Uma vez que este hospital não tinha conhecimento do desfecho, a consulta agendada não foi cancelada, motivo pelo qual a utente recebeu a convocatória para o efeito, o que muito lamentamos pelo sofrimento que lhe causou”, realça o Amadora-Sintra.
Só a 27 de dezembro aconteceram os partos. A grávida acusa o hospital de não lhe ter prestado assistência na realização do segundo parto, apesar de ter acionado o botão de emergência — que sinaliza um pedido de ajuda. O Hospital Amadora-Sintra nega e diz que, no segundo parto, realizado três horas depois do primeiro, a mulher foi assistida por duas enfermeiras especialistas. “Primeiro, fez um parto com médicos e, depois, voltou ao quarto com enfermeiros”, diz fonte oficial, acrescentando que este é o procedimento indicado em casos como este.
“O primeiro parto foi realizado pela equipa médica e ocorreu num bloco, pela apresentação pélvica do feto. O segundo parto foi realizado cerca de três horas depois, no quarto — a prática aconselhada para um feto sem vida, por ser menos traumático — pela equipa de enfermagem, tendo sido realizada posteriormente a curetagem da placenta com assistência de médico anestesista”, detalha o hospital, em resposta ao Observador.
Outra questão ainda por esclarecer é a relativa às autópsias. O Hospital terá informado Cassilda de que a patologia infeciosa que lhe foi diagnosticada obrigava ao encaminhamento dos fetos para a Delegação do Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal, no Porto. A grávida acabou, então, por assinar um documento a dispensar as autópsias, algo que o hospital garante não a ter “coagido” Cassilda a fazer. Entretanto, o serviço de Anatomia Patológica do hospital está a analisar a placenta dos fetos, de modo a determinar a causa da morte, esclarece o hospital.
Apesar de considerar que não ocorreram falhas na assistência à grávida, o Hospital Fernando da Fonseca decidiu-se pela abertura de um inquérito. “O inquérito vai ser aberto exclusivamente por causa da notícia, porque não existe nenhuma reclamação formal”, diz fonte oficial da unidade hospitalar, que entretanto tem prestado apoio psicológico a Cassilda, na consulta de luto gestacional. A IGAS já foi também informado do sucedido.
Das Caldas a Santiago do Cacém, último ano e meio marcado por falhas
Ao longo do último ano e meio, e à medida que se vai agravando a carência de obstetras no SNS, têm-se sucedido os relatos de falhas na assistência às grávidas. Em junho de 2022, uma mulher perdeu o bebé alegadamente por falta de obstetras no Hospital das Caldas da Rainha. A mulher deu entrada de madrugada, num período em que o hospital foi incapaz de completar a escala da urgência de Ginecologia/Obstetrícia, como concluiu a Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS). Para o desfecho trágico do caso, sublinha a IGAS, terá também contribuído a conduta de uma funcionária, que teve o primeiro contacto com a grávida (que lhe recusou a inscrição) e também da médica assistente, por ter “violado os seus deveres funcionais”.
Grávida perde bebé alegadamente por falta de obstetras no hospital das Caldas da Rainha
Em agosto de 2022, uma grávida de 34 anos morreu durante o transporte entre dois hospitais de Lisboa. A mulher, de nacionalidade indiana, e grávida de 31 semanas, estava a ser transferida do Hospital de Santa Maria, por alegada falta de capacidade de internamento, para o São Francisco Xavier. Durante a viagem, sofreu uma paragem cardiorrespiratória. Ainda foram feitas manobras de reanimação, mas a mulher acabaria por morrer. Em dezembro, a Entidade Reguladora da Saúde concluiu que o Santa Maria não garantiu os recursos humanos adequados no transporte, uma vez que a mulher foi acompanhada apenas por um interno de primeiro ano, sem a supervisão de um especialista. O caso acabou por ganhar maior exposição mediática porque foi a justificação dada pela ex-ministra da Saúde Marta Temido para abandonar o cargo.
Em novembro de 2022, uma grávida de 35 semanas e o bebé, de seis meses, morreram depois de a mulher ter sido transferida de Torres Vedras (onde residia) para o Hospital das Caldas da Rainha. A mulher sentiu-se mal e foi acionado o INEM, que, deparando-se com a urgência obstétrica de Torres Vedras encerrada, levou a grávida para as Caldas da Rainha, a 45 quilómetros da sua residência. À chegada àquela unidade hospitalar, a mulher entrou em paragem cardiorrespiratória, que não foi revertida. O Centro Hospitalar do Oeste lamentou o sucedido, mas descartou responsabilidades no desfecho deste caso.
Mais a sul, em Santiago do Cacém, uma grávida perdeu o bebé em abril de 2023, por demora excessiva na assistência. A mulher, que estava grávida de 32 semanas, ligou para 112 e foram acionados os bombeiros locais. A grávida tinha indicação do INEM para ser transportada para o Hospital de Beja, mas, segundo relata o casal que perdeu o bebé, terá estado “mais de duas horas dentro da ambulância sem saber para que unidade hospitalar iria”. A Viatura Médica de Emergência e Reanimação (VMER) do Hospital de Beja também foi ativada, para ir ao encontro da ambulância que transportava a grávida. No entanto, desconhece-se a razão da demora no transporte. Para a família, houve “demora e falta de decisões rápidas no parto, o que levou à morte do bebé”.
Hospital Beatriz Ângelo manda grávida com bebé morto para casa duas vezes por falta de vagas
Em julho, o país ficou a conhecer a história de uma mulher grávida, na fase final da gravidez (com mais de 38 semanas de gestação) que perdeu o bebé, depois de percorrer cem quilómetros até ao Hospital de Santarém. A mulher, residente em Vila de Rei, deveria ter sido atendida na urgência obstétrica de Abrantes, mas o serviço encontrava-se encerrado. Quando chegou a Santarém, foi diagnosticada com uma “morte fetal in uterus”, o termo clínico que indica que o feto morreu no útero. O Centro Hospitalar do Médio Tejo (que engloba o Hospital de Abrantes) abriu um inquérito, cujas conclusões ainda não foram reveladas.
Mais recente é o caso de uma grávida de oito meses que, por duas vezes, foi mandada para casa com uma bebé morto no útero. A mulher recebeu a notícia de que a filha tinha morrido, em outubro, durante uma consulta, mas o hospital mandou a utente para casa, com a indicação para voltar no dia seguinte. No entanto, nessa segunda ida ao hospital, a mulher recebeu a mesma orientação, depois de a instituição ter alegado não ter vagas para fazer o parto — uma vez que esta mulher tinha de ficar internada pelo menos durante 48 horas, o tempo que demora uma indução de parto.
Em dezembro de 2023, inverteu-se o cenário. Uma adolescente de 17 anos viu-se obrigada a dar à luz no Hospital de Abrantes, uma vez que a unidade hospitalar da sua área de residência (o Hospital de Santarém) tinha a urgência de Obstetrícia encerrada. Um caso que o ministro da Saúde Manuel Pizarro classificou como “pontual” e um exemplo de como o funcionamento em rede estaria “a dar resposta com qualidade e segurança”.
A carência de médicos obstetras no SNS tem vindo a agravar-se ao longo dos últimos anos (à boleia do aumento da concorrência dos hospitais privados), mas o impacto nos serviços de urgências obstétricas do SNS foi particularmente visível a partir de 2022. No verão desse ano, vários hospitais (sobretudo da zona da Grande Lisboa) anunciaram encerramentos das urgências obstétricas por falta de capacidade para preencher as escalas. Em dezembro desse mesmo ano, o Ministério da Saúde lançava a operação “Nascer em Segurança no SNS”, num esquema de encerramentos alternados que se tem arrastado até hoje.
De acordo com o último plano conhecido, as grandes constrangimentos continuam a sentir-se na região de Lisboa e Vale do Tejo. Até final de março, a urgência de Ginecologia/Obstetrícia do Hospital das Caldas da Rainha vai estar encerrado aos fins de semana (de sexta-feira a domingo). O mesmo vai acontecer no Hospital Garcia de Orta (aos sábados e domingos).
Com encerramentos alternados aos fins de semana estão os serviços de urgência obstétrica dos Hospitais de Abrantes, Santarém e de Vila Franca de Xira. Os hospitais do Barreiro e Setúbal encerram durante metade dos dias de cada mês (em semanas alternadas). Já a urgência de Obstetrícia do Hospital São Francisco Xavier encerra, no período noturno, para todas as grávidas não referenciadas pelo INEM ou pela linha Saúde 24. O mesmo acontece no Hospital Amadora-Sintra durante o período noturno, mas também durante todo o período de fim de semana. No restante território continental, existe apenas uma outra urgência obstétrica condicionada: a do Hospital de Santo André, em Leiria, que encerra aos fins de semana (entre sexta e domingo) de forma alternada.