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"Acredito que a música faz um bem à humanidade, em todas as épocas ela tem sido a causa de maior felicidade das pessoas. Ela traz conforto e bem-estar"
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"Acredito que a música faz um bem à humanidade, em todas as épocas ela tem sido a causa de maior felicidade das pessoas. Ela traz conforto e bem-estar"

"Acredito que a música faz um bem à humanidade, em todas as épocas ela tem sido a causa de maior felicidade das pessoas. Ela traz conforto e bem-estar"

João Donato: "Não quero ficar famoso nem rico, nem coisa nenhuma, quero trazer felicidade"

Aos 88 anos, o pianista brasileiro surpreende com um álbum de contagiante boa-disposição: "Serotonina". A brincadeira tem data marcada dia 9 na Casa da Música, Porto, e dia 10 no Tivoli, em Lisboa.

A melodia é nebulosa, um saxofone vagueia e o piano entra a medo. Os instrumentos estão dispersos, cada um a seu canto, a sondar a abertura da canção. Enfim, que alívio, uma batida sincopada e a voz desfaz o mistério: “Simbora”. Partida, largada, fugida, vamos embora, segue na frente o samba, baião, caribe e bossa de João Donato, um homem a correr contra o tempo, a resgatar do piano elétrico um groove de uma época mais simples, quando bastava um cantinho e um violão. Neste entusiasmo, o desafio é conter o sorriso. “Simbora” é a primeira de dez canções de Serotonina, a tal hormona da felicidade que dá nome ao surpreendente novo álbum de João Donato, uma criança alegre de 88 anos.

“A ideia é que as pessoas fiquem felizes ao ouvir a música, não é outra coisa mais que trazer felicidade para quem está ouvindo”, garante-nos o mago do piano Fender Rhodes, diretamente do Rio de Janeiro, em estágio para dois concertos em Portugal: 9 de outubro na Casa da Música, Porto, e 10 de outubro no Teatro Tivoli, Lisboa. “A música faz-me muito bem, com 88 anos estou com boa-disposição e alegria”. Estas canções alegres, como canta em “Simbora”, clamam “carinho”, “abraço” e “amor”, uma panóplia de miminhos para esquecer o Brasil em chamas, devorado pela picardia das eleições — “E vamos fugir pra longe / Do sinal triste da dor”. “Acredito que a música faz um bem à humanidade, em todas as épocas ela tem sido a causa de maior felicidade das pessoas. Ela traz conforto e bem-estar. Conforta quem está enfermo, tem um poder curativo. Eu conheço pessoas que deixam de almoçar para ouvir um disco. A música é um alimento.”

Se a música é um alimento, as canções de Serotonina são docinhas, um reflexo radiante do milagre que é o Rio de Janeiro, o céu azul, a brisa do mar, que rica vida, bebe-se “champanhe”, come-se “bombom”, e o embalo desce que nem ginjas. “Eu quando faço música, muitas vezes tenho que deitar música fora porque estão a ser concebidas dentro de um contexto de tristeza, amargura e depressão”, revela João Donato, um compositor há mais de sessenta anos, a qualquer custo, a conservar este bem-disposto balanço. “Eu não quero que ninguém ouça as minhas músicas tristes. Não quero ficar famoso nem rico, nem coisa nenhuma, quero trazer felicidade”.

[“Simbora”, do novo álbum “Serotonina”:]

Serotonina é um regresso às composições originais e à voz de João Donato, o característico trauteio brincalhão, a disparar onomatopeias, tim tim e tum tum, embolado nos restantes instrumentos. “Até hoje eu não tenho confiança para cantar”, confessa. “Agora me acostumei um bocadinho mais. Até aos quarenta anos de idade eu vinha fazendo somente música instrumental, ainda não tinha prática de cantar músicas com letra. No início era muito difícil, eu só queria tocar o piano”. A estreia na voz foi em 1973, sugestão do amigo e produtor Marcos Valle, e durante uma passagem fulminante no Rio de Janeiro, gravou a obra-prima Quem é Quem, com o apogeu na demente “A Rã”, groove complementado pelas palavras mastigas de Caetano Veloso. Dois anos depois, outro clássico, Lugar Comum, agora com o poeta Gilberto Gil a abrir o livro, desde “Bananeira” a “Emoriô”. “Quando eu comecei a cantar as primeiras músicas, pensei, meu Deus do céu, onde eu fui parar.”

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As letras do novo álbum são novamente emprestadas, à cabeça o produtor, Ronaldo Evangelista, e uma série de craques da cantiga como Céu e Rodrigo Amarante. “O segredo para uma boa parceria é confiar no seu parceiro, deixá-lo fazer as coisas que ele pensa”, explica o músico que no ano passado estava suficientemente confiançudo para ser fotografado pelado, no meio da selva carioca, ao lado de Jards Macalé, capa do admirável álbum a meias Síntese do Lance. “O problema da letra é você conseguir acreditar no que está cantando. Se cantar uma música e não acreditar nas palavras, elas não vão ficar boas.” Os letristas de Donato têm que entrar na brincadeira, saltitar entre o ritmo, à macaca, encontrar onde encaixar as palavras, que podem não ter especial significado, afinal o que é um “patumbalacundê”?

“O segredo para uma boa parceria é confiar no seu parceiro, deixá-lo fazer as coisas que ele pensa. O problema da letra é você conseguir acreditar no que está cantando. Se cantar uma música e não acreditar nas palavras, elas não vão ficar boas.”

“Eu também gosto de fazer melodias com uma certa melancolia embutida, uma certa ternura, uma tendência delicada. Isso faz um bem também”, confessa finalmente Donato, que nos queria fazer acreditar que a vida era só feita de alegria e bem bom, basta ouvir a parceria com Céu, “Floriu”, para nos apercebermos que é ténue a linha entre a doçura e a melancolia. “A primeira vez que me senti assim, era ainda moço, na beira do rio no Acre. Alguém passou assobiando uma música”, recorda o músico nascido em Rio Branco, estado do Acre, a assobiar “Lugar Comum”. “E aquilo me deixou um pouquinho assim amolecido, um sentimento macio, gostei do sentimento, nunca tinha sentido aquilo na vida, me caiu muito bem. Nunca mais esqueci esse sentimento, e na medida do possível, eu quero que as músicas tenham essa qualidade, esse calorzinho”.

Em casa dos pais, primeiro no Rio Branco, e depois no Rio de Janeiro, deslumbrou-se com os discos da família, os arranjos imponentes das canções sinfónicas do Séc. XX, desde “Tristeza do Amor” de Fritz Geißler a “No Mar Negro” de Georges Boulanger. “Quando eu era pequeno, no tempo dos 78 rotações, que se tocava com uma manivela, a gente estava autorizado a mexer nos discos da discoteca do meu pai”, descreve animado, a lembrar as canções que assombravam o jovem de uma ternura soturna. “A melancolia faz parte da nossa raiva, ódio e vingança. E certas músicas pegam nestes sentimentos. Aquelas músicas causavam-me um efeito gostoso. Então achei isso importante na música, que consegue nos deixar mais macios que a gente realmente é”.

Rock in Rio Festival 2011

"Eu também gosto de fazer melodias com uma certa melancolia embutida, uma certa ternura, uma tendência delicada. Isso faz um bem também"

Getty Images

Aos 12 anos era virtuoso no acordeão, o instrumento da moda para as crianças brasileiras na década de quarenta e cinquenta. Em breve, ainda adolescente, acompanhava conjuntos num swing desenfreado, baião pré-Bossa Nova — que poção mágica tinha caído este moleque feito homem, será que esta batida era sequer música brasileira? A fama do jovem músico espalhou-se pelas boates cariocas, mas por ora, era tudo pela desportiva, queria formar-se piloto aeronáutico, como o pai. “Eu só não fui piloto como ele porque fui reprovado no exame de vista como daltónico. Eu vejo as cores e as tonalidades de outra cor.” Depois do acordeão, encontra as tonalidades de outra cor no piano, e a convite de Tom Jobim, um dos compinchas que se entretinham a inventar canções pela madrugada adentro, em bares de hotel, grava um primeiro disco, Donato e Seu Conjunto, e um segundo, Dance Conosco. Neste LP de 1959, está uma primeira parceria com um tal de João Gilberto.

“O João Gilberto quando chegou da Bahia para substituir o cantor do grupo vocal os Garotos da Lua, disseram-lhe que ia encontrar no Rio um camarada parecido com ele. E falaram para mim que ia chegar da Bahia um camarada parecido comigo. Quando nos deparamos um com o outro, no estúdio da Rádio Tupi, no Rio, o João falou: ‘é mesmo!’. E nunca mais nos largamos, ficamos amigos para o resto da vida. Um dia ele disse que tinha feito uma letra para uma música minha. Eu perguntei-lhe qual delas, e ele disse: ‘você só tem uma’ [ri-se]. É uma das minhas primeiras músicas no estilo Bossa Nova”.

E agora que o verão nos vai deixando, que o tempo fechado promete meses de indisposição, lançamos o repto ao mestre zen João Donato, com dois concertos marcados em Portugal, consegue recuperar a nossa boa-disposição? “Sim, com certeza!” — então siga, ou melhor, simbora.

As revoluções musicais aconteciam na calada, sequer o público estava particularmente entusiasmado com esta meia dúzia de músicos, de Johnny Alf a Roberto Menescal, a fantasiar uma nova identidade brasileira. A existência indigente, um dia atrás de outro a laurear a pevide, não incomodava particularmente João Gilberto, mas o virtuoso João Donato, com mão hábeis para o jazz, sabia que tinha outro mercado. “Estava difícil para tocar, a gente tinha que esperar até de madrugada, quatro e cinco horas da manhã quando não havia mais ninguém, para poder tocar alguma coisa, e de graça ainda. Surgiu a oportunidade e fui para os EUA.”

Na Califórnia continuou a gravar canções próprias e versões instrumentais dos amigos, entretanto músicos de sucesso internacional, compositores de standards da música popular, de Tom Jobim a Luiz Bonfá. E o Brasil seguia em frente, passando ao lado de João Donato: Bossa Nova, Festival de Música Popular Brasileira, Tropicália, e até um Golpe Militar. “Não tinha ninguém que fosse brasileiro na Califórnia, estava muito sozinho. Foi muito difícil, muito complicado”, desabafa. No ápice do infortúnio, desalojado, dorme num motel, convence o gerente a aceitar um relógio como garantia, e durante esta cena triste, depara-se com o percussionista cubano Armando Peraza. “Eu reconheci logo o Armando Peraza, porque ele tocava com o George Shearing. Expliquei-lhe a situação e ele pagou na hora ao gerente do motel.”

[ouça “Serotonina” na íntegra através do Spotify:]

O percussionista introduz o novo amigo brasileiro à cena musical cubana e porto-riquenha, a lendas como Tito Puente e Mongo Santamaria. “Quando assisti à orquestra de Cal Tjader com o Mongo Santamaria, eles convidaram-me para tocar uma música. Depois, o Mongo chamou-me a um canto: ‘não fala nada ao Cal Tjader, mas nós vamos sair da orquestra e fazer a nossa própria banda, e você é o nosso pianista’. Mas eu nem sei tocar este estilo! ‘É isso que você fez aí’”. Quem diria, João Donato descobre que entre o Brasil e Cuba, ou qualquer país da América Latina e Central, está um cântico único. “As origens são as mesmas, as tribos africanas que vieram nas embarcações com as suas canções religiosas”.

Depois do samba, baião, jazz e bossa, os complementos finais para a canção João Donato foram a melodia caribenha e a descoberta do piano Fender Rhodes — ouçam “Órbita” de Serotonina, aquela hormona da felicidade, o jeitinho reconhecido à primeira vista. Nesta época de autoajuda, louvemos o músico que patenteou uma receita de contentamento, abram espaço, achega-se uma batida firme, e uma melodia apátrida, entre o Rio de Janeiro e o Caribe. E agora que o verão nos vai deixando, que o tempo fechado promete meses de indisposição, lançamos o repto ao mestre zen João Donato, com dois concertos marcados em Portugal, consegue recuperar a nossa boa-disposição? “Sim, com certeza!” — então siga, ou melhor, simbora.

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