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ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

Julia Katharine: "A mulher transexual não é vista como um ser humano"

AVISO

Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores

Aos 40 anos, a protagonista de "Lembro mais dos Corvos" apresenta o filme no IndieLisboa. Para trás (e no ecrã), ficam as histórias de como é ser uma mulher transexual no Brasil.

“Os meus sonhos são sempre os mesmos. Eu estou sempre presa em algum lugar e eu não consigo sair dos lugares em que eu me encontro. Isso me incomoda porque me dá uma sensação de que eu estou presa”. Lembro mais dos corvos, do realizador Gustavo Vinagre, faz parte da seleção de filmes da 15ª edição do IndieLisboa. A Lisboa veio Julia Katharine, atriz transexual, protagonista e a primeira a receber um prémio na Mostra de Cinema Tiradentes, em Minas Gerais, em janeiro deste ano.

Uma hora e 20 minutos filmados num único take. Depois de terem trabalhado juntos noutros filmes e curtas-metragens, o realizador desafiou a atriz de 40 anos a falar sobre a sua vida em frente a uma câmera. Julia diz que alguns elementos de ficção foram acrescentados, mas que todas as histórias são verídicas: da relação com um parente mais velho quando tinha oito anos às manifestações de transfobia de que foi vítima durante a infância e a adolescência.

Do isolamento em frente a uma televisão, Julia Katharine passou para a linha da frente na luta pela representatividade transexual no cinema, na televisão e no teatro, no Brasil. Com ela está uma nova geração de realizadores que, nos últimos anos, têm incluído atrizes transexuais nos elencos de curtas e longas-metragens. A discrepância entre estes primeiros passos, dados na indústria das artes e do entretenimento, e a realidade social do país é gritante. O Brasil é o país do mundo que regista o maior número de assassinatos de transexuais e, em 2017, este indicador (incluindo travestis) superou os números dos últimos dez anos. Julia Katharine esteve em Lisboa pela primeira vez e conversou com o Observador sobre a concretização de um sonho, 30 anos depois.

[o trailer de “Lembro mais dos Corvos”]

Fala do cinema de forma muito apaixonada, com um brilho nos olhos. Ele foi uma espécie de tábua de salvação?
O cinema para mim sempre foi uma espécie de tábua de salvação e também uma inspiração para continuar. Era o que me motivava a viver mesmo. E tem sido sempre assim, inclusive agora aqui, muito feliz por estar a participar no IndieLisboa. Se me dissessem, sei lá, há quatro anos, não acreditaria. O cinema sempre foi muito importante para mim, mas sempre me pareceu um sonho distante, sabe… Realizar um filme, fazer um filme.

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A sua relação com o cinema começa logo na infância, muito antes de estar dentro da indústria. Nessa altura, ver um filme era também um processo de catarse?
Era uma catarse, era também uma espécie de escola. Tive de abandonar os estudos muito cedo por conta da transfobia. No Brasil, é muito difícil ser uma mulher transexual. Existe muito preconceito, somos o país que mais mata mulheres trans e travestis, no mundo. Então o cinema foi uma escola. Muita coisa que aprendi foi através do cinema, em relação à cultura, à história, tive tudo isso através do cinema.

Quando se fechou em casa, os filmes foram também uma escola no que toca às relações humanas?
Muito. Aprendi a me relacionar melhor com as pessoas e comigo mesma. O cinema também foi uma psicanálise. A gente acaba aprendendo muito sobre nós mesmos e sobre o ser humano, sobre sentimentos. Para mim, o cinema é muito tudo.

Mas depois a vida real, por oposição à ficção cinematográfica, trai-nos um pouco. Sentiu isso?
Senti. A vida real às vezes consegue ser tão inacreditável quanto muitas coisas que a gente vê no cinema. A maior parte das pessoas fala: ‘Ah isso só aconteceria num filme’. E aí a gente se depara com coisas que, se contássemos num filme, as pessoas não acreditariam. Ficariam muito surpresas. Agora mesmo, no Brasil teve um incêndio num prédio de ocupação, no centro de São Paulo, e eu estava olhando pelo Facebook e não acreditei. Parece um filme catástrofe. E é muito triste lidar com essas coisas. Eu uso o cinema como um refúgio.

© André Carrilho/Observador

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

Há muitos episódios na sua vida que nos fazem pensar isso: ‘Não, isto é um filme’.
São factos que as pessoas me perguntam muito se são ficção. E não são, são muito reais. A gente fez um filme que é pontuado por situações ficcionais, mas ele é muito real. Todas as histórias que conto são histórias que aconteceram, mas a gente optou por criar uma narrativa que faz com que, em alguns momentos, as pessoas duvidem do que estão assistindo. Aí a gente ficou tentando achar esses momentos em que a ficção entra e confunde o espetador. Foi muito importante para me preservar e para que o filme não ficasse tão triste. Tinha muito essa preocupação, de que o filme não fosse um filme triste. A vida já é triste o suficiente.

Como é que recebeu este convite do Gustavo Vinagre?
Nós somos amigos há muitos anos, mas a gente ficou distante algum tempo. Quando retomámos o contacto, ele me chamou para fazer algumas curtas e fiquei muito feliz por trabalhar com cinema de novo, já tinha tido uma experiência anterior. Um dia ele me falou: ‘Júlia, e se a gente contasse um pouco da sua vida em um filme?’. Fomos elaborando isso, a coisa foi crescendo nele e em mim, essa vontade de fazermos esse filme. E aí a gente decidiu que seria um filme feito numa noite apenas. Ele é muito cru nesse sentido, não teve segundos takes. A câmara ficou ligada praticamente 12 horas e nesse tempo a gente foi conversando com algumas pausas, mas não teve nenhum momento assim: ‘Vamos fazer essa cena novamente’. Para mim foi muito aflitivo, fiquei um pouco preocupada com isso — ‘Meu Deus, como não ter um segundo take?’. Mas era uma opção dele, fazer um filme muito cru, muito real, e eu acabei concordando. Acho que tinha que ter essa narrativa mesmo.

Imaginava-se a fazer este filme, com a sua vida tão exposta, com outro realizador?
Não, só seria com o Gustavo. Porque a gente tem uma relação muito… Ah, como é que posso te explicar. Temos uma relação de muita confiança, então acho que com outro realizador não teria confiança ou coragem para contar algumas coisas que conto. Muitas outras histórias que ficaram fora e com ele foi possível esse diálogo. Com outro realizador com quem eu não tivesse uma relação de amizade, de confiança, acho que não aconteceria.

"A gente montou todo um set simulando um outro lugar. Depois de ter feito o filme, levei ele para a terapia porque muitas coisas com as quais eu não lidava há muitos anos voltaram, muitas emoções. Tive de levá-lo para a terapia para lidar com esse momento. Abriram feridas, sabe... A história do abuso."

Em algum momento teve de dizer que uma determinada história não seria contada ou que ficaria de fora?
Não, estava muito aberta para falar a respeito de tudo. Isso foi uma coisa que a gente conversou antes. Ele me perguntou várias vezes se havia histórias que não gostaria de expor e eu disse para ele que não, que queria que o filme fosse muito honesto e que estava disposta a contar o que fosse preciso. O que aconteceu foi que, na montagem, a gente optou por deixar de fora algumas histórias por questões fílmicas mesmo. Mas foi uma noite muito intensa assim.

Foi na sua casa?
Não. Na verdade foi na casa do Gustavo. A gente montou todo um set simulando um outro lugar. Depois de ter feito o filme, levei ele para a terapia porque muitas coisas com as quais eu não lidava há muitos anos voltaram, muitas emoções. Tive de levá-lo para a terapia para lidar com esse momento. Abriram feridas, sabe… A história do abuso. Eu fui pensando o significado do filme na minha vida e eu não imaginava que o filme fosse agradar tanto ao público e comover tantas pessoas. Fiquei muito surpresa com essa receptividade. A primeira vez que a gente exibiu o filme foi na mostra Tiradentes, lá em Minas Gerais, e eu estava completamente trémula durante a sessão, com medo da rejeição do público, mas o filme foi muito bem recebido. A partir daí, só tenho tido alegrias. Estar aqui foi um grande presente que o filme me deu. É muito emocionante.

Fala no facto do filme ter reaberto algumas feridas. Havia episódios da sua vida que tinha varrido para baixo do tapete?
Alguns episódios da minha infância, a relação que tenho com a minha mãe, algumas coisas foram… Eu não digo varridas para baixo do tapete, mas eram coisas com as quais eu não lidava mais. Tudo veio à tona depois que a gente filmou e lidar com isso foi um processo. Também me preocupei muito com a rejeição do público, não queria passar uma ideia errada de quem sou e das coisas que falei a respeito de abusos, da minha relação com a minha mãe, da minha relação com o meu corpo, com a minha transição. Porque isso é muito difícil para mim. Durante o processo de transição, idealizei na minha cabeça uma mulher e ela não aconteceu, fisicamente falando. Isso me provocou muita frustração, me causou muita dor. No filme, quando me vi no primeiro corte, entendi que… Enfim, que preciso entender melhor o meu corpo, quem sou, lidar com essas frustrações que acontecem com todo o mundo. De alguma maneira, todos temos as nossas frustrações e a minha tinha muito a ver com a imagem.

Acha que essa é uma história pouco contada? O choque com o corpo durante e após a transformação?
Sim. Acho que existe um padrão estético muito opressor para todos nós, na nossa sociedade. E a mulher trans sofre muito com isso e o homem trans também, só não vou falar tanto sobre os homens trans porque é uma realidade que não conheço. Para nós, mulheres trans, é muito difícil porque a gente nasce mulher, se entende como mulher desde sempre, mas a imagem que nós vemos no espelho não é a mulher que nós temos na nossa cabeça. E a construção dessa mulher ela é muito dolorosa, é muito cara também. É preciso que você tenha dinheiro para fazer intervenções cirúrgicas, tratar o cabelo, para o tratamento hormonal. E a gente sofre uma cobrança da sociedade para que nós sejamos bonecas, mulheres extremamente bonitas. Eu via as mulheres trans e os travestis na televisão e no cinema, eram mulheres muito bonitas, com uma beleza excecional. E só essas mulheres se destacavam. Me lembro que quando era pequena achava que a Roberta Close era a única mulher trans no mundo e não era. Mas por ser uma mulher extremamente bonita, ela tinha muito destaque. Isso me preocupa porque existem mulheres trans extremamente talentosas nas suas áreas, extremamente capazes, mas o que acontece é que elas não têm visibilidade por não terem essa imagem padrão, da mulher extremamente bonita, sexualizada, objetificada. Eu mesma tenho muitas amigas que são advogadas, trabalham na área da saúde, e não têm esse corpo padrão que a sociedade exige que tenhamos e são pessoas muito incríveis e que sofrem por isso. Algumas não, e essas eu admiro muito, porque não sofrer pela imagem é algo que ocorre com poucas e essas poucas eu aplaudo de pé. Quero chegar nesse grau de aceitação.

A Júlia ainda sofre com isso?
Ainda sofro. Eu me sinto muito tímida. Cheguei aqui em Lisboa extremamente tímida, muito assustada e preocupada com como seria a minha relação com… Porque é muito estranho para mim, hoje, entender que a minha história está atravessando fronteiras. Estou chegando aqui e o filme vai para Nova Iorque e aí ele tomou uma proporção que eu não imaginava, então me sinto muito mais exposta, me sinto muito mais… não sei te explicar. Esse é um grau de exposição que não me incomoda, mas ele me causa um desconforto por essa questão, a da minha própria imagem.

Mas também lhe trouxe uma aceitação que nunca tinha experimentado antes?
Trouxe. Me sinto muito amada agora. Todas as vezes em que as pessoas assistem o filme e vêm falar comigo, a maioria vem sempre com muito elogio, muito carinho, muito amor e fico muito feliz com isso. E agora estou lidando melhor com a minha imagem. A minha auto-aceitação começou a acontecer como nunca antes. Tenho entendido melhor o meu corpo, o que é possível, o que não é possível. Para as mulheres trans, para que sejamos aceites na sociedade, tenho percebido que, muito mais importante do que a qualificação profissional, a primeira coisa que vem é a imagem. É o primeiro grande desafio que nós temos, porque quando a mulher transexual não tem a passabilidade [semelhança entre uma mulher transexual e uma mulher cisgénero] que a sociedade exige é extremamente excluída. Aí, você fica incapaz de sobreviver, de se manter, financeiramente falando e emocionalmente também. A rejeição, a exclusão causa muita dor, é muito sofrido. Você ter potencial, ter qualidades, querer fazer parte da sociedade, mas não poder, porque você não tem a imagem que a sociedade quer. Isso é muito triste.

"Isso me preocupa porque existem mulheres trans extremamente talentosas nas suas áreas, extremamente capazes, mas o que acontece é que elas não têm visibilidade por não terem essa imagem padrão, da mulher extremamente bonita, sexualizada, objetificada."

Neste momento, consegue sustentar-se financeiramente?
Não. Estava um desses dias falando para a minha mãe: ‘Espero que a minha carreira no cinema cresça para que possa sobreviver disso, para que possa sair de casa’. Moro com a minha mãe e é uma relação muito difícil. Tenho 40 anos e quero ter o meu próprio lugar, o meu espaço, e não tenho. Até para vir para cá foi difícil. Torço muito para que as coisas aconteçam no cinema, para que possa desenvolver outros projetos. Agora, dirigi uma curta-metragem, a minha primeira, e fiz o roteiro. Estou indo por esse caminho, o caminho de roteirista e atriz. Espero conseguir sobreviver disso e enfim, estou aberta a outras possibilidades, produção… O que eu quero é trabalhar para ter a minha independência económica, que não tenho, e para ter o meu cantinho. Aquilo que você viu no filme, aquele espaço, é o meu sonho. Eu quero ter aquele cantinho para dizer: ‘É a minha casa’. É o meu maior sonho nesse momento. A gente pensou nisso quando idealizou aquele cenário. Eu disse: ‘Quero que as pessoas vejam um espaço que seja meu’. Não é real, mas quero ter esse espaço.

Falou da aceitação que esta carreira lhe trouxe. Ela mudou alguma coisa na relação que tem com a sua mãe, na forma como ela a vê?
No começo, ela não acreditava muito que isso fosse dar em alguma coisa. Quando comecei a fazer as curtas com Gustavo, ela achava que era mais uma distração, um hobbie, uma bobagem. Agora, com os prémios que ganhei pelo filme, ela passou a me ver em alguns sites, matérias e começou a ter esperanças de que: ‘Nossa, será que isso pode ser alguma coisa, pode ser o seu caminho profissional?’. Mas, cá entre nós, ela não viu o filme, ela nem imagina que eu falo dela e isso para mim tem sido uma questão. Uma das coisas que ela mais pedia era que não expusesse a nossa relação e, de certa forma, fiz isso. A gente conservou sobre isso alguns dias atrás e ela disse que não tem interesse em ver o filme, exatamente para que isso não complique a nossa relação, mas ela sabe. Contei para ela que em algum momento do filme falo a respeito da nossa relação, mas que não me aprofundo nisso, para que ela não se sinta mal, não crie uma mágoa. Honestamente falando, não tenho apoio da minha família em relação a essa carreira. A maior expectativa que sinto que ela tem é que eu possa, através do cinema, sair de casa. Esse é o maior desejo dela. Que possa ter o cinema como uma ferramenta para que me sustente financeiramente e possa sair de casa. Quando eu vim para Lisboa, ela disse para mim: ‘Eu espero que essa viagem seja o começo da sua saída de casa’. Ela torce muito para que eu tome o meu caminho. Acho que isso vai ser muito bom, tenho a impressão de que a minha relação com ela vai melhorar muito. Ela vai me ver uma pessoa mais empoderada, realizada.

Cena do filme "Lembro mais dos corvos"

A sua mãe sabe de todas as outras histórias que conta no filme?
Sabe. A parte do abuso era a questão mais preocupante para ela. Ela não queria… Isso envolve a minha família inteira e toda a minha família, os irmãos dela, os meus primos, eles não querem que isso. Tive uma questão muito forte com isso porque não quero que o filme sofra nenhum tipo de retaliação dos meus parentes. Nessa parte, fico um pouco preocupada. Por conta disso, eu e o Gustavo, a gente ficcionou algumas partes. Era importante que pudesse me proteger e à minha mãe. É difícil porque… Quando se faz a transição, ela não acontece só comigo, ela acontece com todo o meu entorno, muda a minha relação com a minha mãe, muda a minha relação com os meus irmãos, muda a minha relação com todos os meus parentes. Quando a gente envolve outras pessoas eu acho até um pouco injusto porque… No caso do personagem com quem em tive uma relação, ele não está mais vivo para se defender, mas tem pessoas que são ligadas a ele e que podem se sentir ofendidas ou expostas e isso é o que não quero. Falando para você francamente, a gente ficcionou uma parte para que não houvesse, mais tarde, problemas jurídicos.

Abuso sexual, mendicidade, prostituição há muitas situações na sua vida que não estão diretamente associadas ao facto de ser transexual. Que conjugação de fatores a fizeram passar por isso? Ter nascido no Brasil? Condição social? Uma família disfuncional?
Me pergunto muito isso. Não sei, acredito muito na palavra, que a palavra tem poder. Desde muito nova eu pensava: ‘Eu quero ser uma mulher que trabalha com cinema, quero ser uma realizadora, quero ser atriz’. É claro que, no caminho, tudo ia parecendo muito impossível por conta do preconceito. Entrei no curso de teatro quando era criança e aí o meu professor me desestimulou a dar continuidade. Ele disse: ‘Você não vai chegar a lugar nenhum, está gastando um dinheiro que você não tem, que está fazendo falta no seu orçamento, no orçamento da sua família’. Então você é desestimulado o tempo todo. Chega um ponto em que você pensa: ‘Bom, então o caminho é a prostituição ou viver de favor com a mãe e ser uma pessoa de casa’. Isso é muito triste.

Porque é que isso acontece?
No Brasil, a maior parte das mulheres trans e travestis recorrem à prostituição, não por gosto, mas por necessidade. E mesmo as que vivem de prostituição porque querem, porque gostam, acredito que elas são julgadas de uma forma muito hipócrita. Porque, enfim, o corpo é delas, elas têm o direito de fazer o que elas quiserem com o corpo. Eu as respeito muito, acho que não é demérito nenhum ser uma mulher profissional do sexo. No meu caso, falo isso no filme, nunca conseguiria fazer porque sou uma pessoa extremamente emocional. Então, para mim, seria muito difícil. Mas quando você não tem essa questão da prostituição na sua vida, tudo fica muito mais difícil, porque aí você não tem renda mesmo, você depende da sua mãe para comer, da sua mãe para se vestir. Aí, fico pensando nas mulheres trans e nas travestis que não têm a mãe para dar de comer e é muito triste. Graças a Deus, em São Paulo, a gente teve um programa chamado Transcidadania do prefeito Fernando Haddad, inclusive eu fiz parte. Voltei a estudar por conta desse programa, consegui terminar os estudos da fundamental. Com esse programa, a gente recebeu uma bolsa, uma ajuda financeira para que a gente não se desestimulasse e para que algumas meninas tivessem possibilidade de ir à escola sem se preocuparem assim: ‘Vou para a escola ou vou para a rua? Porque se vou para a escola, vou perder o dinheiro que eu ganho na rua, então é melhor ir para a rua’. Aí o prefeito com essa bolsa, eu imagino que ele conseguiu levar as meninas para a escola e com a bolsa elas conseguiam pagar as suas contas e sobreviver minimamente. Hoje, no Brasil, a mulher trans e a travesti, a gente conquistou uma certa visibilidade, mas ainda é muito pouca. Não gosto muito de atriz trans, eu sempre falo mulher transexual atriz, porque ninguém fala dentista trans, advogado trans. Nós temos no Brasil muitas mulheres transexuais que são atrizes, que estão nessa profissão, que são maravilhosas, mas que infelizmente têm pouco trabalho. As que têm são privilegiadas, eu sempre falo. Mas são muito poucas ainda, existem muitas meninas que adorariam fazer cinema, fazer teatro, televisão, mas falta a elas a oportunidade e a qualificação. Falta um entendimento de que nós somos pessoas normais. Nós somos seres humanos e a mesma qualificação para atriz que uma mulher cis tem, nós também temos. E é uma questão de a sociedade repensar todo esse padrão estético que impera. Acho que a gente precisa ter esse avanço. Estamos em 2018, tanta coisa avançou, tecnologicamente falando, mas o pensamento do ser humano ainda é muito antiquado, muito velho. Eu ainda sonho que um dia eu vou ligar a TV e ver uma mulher trans em horário nobre fazendo uma novela num papel que não seja exatamente de prostituta, de marginal, ligado a esse submundo. A Maria Clara Escobar me deu um presente dos mais lindos. Ela me deu um papel, no filme dela Desterro, em que interpreto uma mulher cis que é mãe. Para mim, isso foi uma realização. Acho que precisa ter pessoas com coragem para comprar essa briga.

Que tipo de coragem?
Porque não uma mulher trans interpretando uma cis? O contrário também é possível mas aí a gente entra na questão da representatividade trans. Não digo que é proibido uma mulher cis interpretar uma mulher trans, mas digo que é importante que nesse momento se pense em incluir as mulheres trans nessa área e lhes dar esses papéis. Se você escreve um roteiro com uma personagem trans, então dê o papel a uma mulher trans. No Brasil, a gente tem um movimento chamado Representatividade Trans. Muitas mulheres trans atrizes fazem parte: a Leona Jhovs, a Renata Carvalho, a Renata Peron, a Maria Clara Spinelli, muitas atrizes mulheres trans lutam por essa representatividade. A Maria Clata Spinelli recentemente fez uma novela das oito na Globo em que ela interpretava uma mulher cis, isso para a gente foi uma grande vitória, uma grande alegria. A Renata Carvalho está no teatro interpretando Jesus, numa peça muito bacana. Se você pensa em roteiro de cinema ou teatro e cabe naquela personagem qualquer mulher, porque não uma mulher trans? Não sei se aqui em Portugal tem alguma mulher trans atriz nesse momento, mas torço para que as mulheres trans que sonham em ser atrizes, roteiristas, diretoras, diretoras de fotografia, o que quiseram, sigam o sonho, para que não desistam. É possível, estou aqui aos 40 anos realizando um sonho que tinha desde os 12. Esse sonho começou agora, tudo está acontecendo a partir dos meus 40 anos. Em junho, faço 41 e já tenho dois prémios. Falo no filme que adoro prémios, mas gosto especialmente porque isso coloca a gente no radar, nós nos tornamos pessoas reais. Porque às vezes, não sei, acho que as pessoas imaginam que nós vivemos de brisa, da luz sol, que a gente não tem contas para pagar, não come, não paga aluguel. Não é possível.

"A gente é muito exotificada. Eu nunca fui paquerada num café por um homem para que a gente fosse ao cinema ou para ele me convidar para tomar um café, para almoçar. Não. A paquera que a mulher trans sofre é extremamente objetificante e sexualizada. É assim: 'Vamos trepar? Vamos foder? Vamos ali que eu quero que você me chupe!'. Sabe? São coisas muito vulgares e muito abominantes."

E não tem receio de que esta porta de entrada das mulheres trans no cinema e na televisão possa acontecer pela via da “exotificação“, uma coisa de que também fala no filme?
É muito preocupante. A exotificação vai acontecer, como acontece com os negros. É por isso que insisto: a sociedade num todo tem que evoluir. No Brasil, e estava conversando sobre isso com uma amiga, vai estrear agora uma novela da Globo que se passa na Bahia e 90% do elenco é branco, sendo que a Bahia é o estado do Brasil que mais concentra população negra. É bizarro você vender para o mundo que a Bahia é aquele lugar branco, lindo e maravilhoso. É um lugar lindo e maravilhoso, mas não é um lugar de maioria branca. Então, a exotificação, a objetificação, tudo isso vai acontecer como acontece nas nossas vidas quotidianas, na realidade. A gente é muito exotificada. Eu nunca fui paquerada num café por um homem para que a gente fosse ao cinema ou para ele me convidar para tomar um café, para almoçar. Não. A paquera que a mulher trans sofre é extremamente objetificante e sexualizada. É assim: ‘Vamos trepar? Vamos foder? Vamos ali que eu quero que você me chupe!’. Sabe? São coisas muito vulgares e muito abominantes. A mulher transexual não é vista como um ser humano, nem a travesti, e isso é triste. É óbvio que na TV e no cinema vão aparecer todos esses tipos de exotificação, de papéis… ‘Olha, tenho esse papel para você mas você é uma prostituta, tem esse papel para você mas você é uma viciada em drogas, tenho esse papel para você mas você vai ter de mostrar os seus genitais’. Vai acontecer? Vai, mas acho que também depende da sensibilidade e do entendimento de cada realizador, sabe? De entender que nós não somos objetos sexuais.

Acha que há uma nova vaga de realizadores com essa sensibilidade?
Sim, tenho tido muita alegria em perceber que essa geração mais nova de cineastas brasileiros é muito sensível a essa questão. O Gustavo Vinagre, a Maria Clara Escobar, o Diogo Leite, que é um realizador novo, o Daniel Ribeiro, que também vai fazer um filme agora com personagens trans. Tem todo um movimento novo de entendimento e de acolhimento para essa população e isso me deixa muito mais feliz.

O maior preconceito da população brasileira é em relação à questão da prostituição e nós somos sempres associadas a isso, à marginalidade e à prostituição. Mas falta às pessoas o entendimento de que se nós estamos nessa situação é porque elas nos colocaram lá.

Acabou de gravar a sua própria curta-metragem, T for Two. O que há de autobiográfico nela?
Realizei o T for Two agora no mês passado. Tem muito coisa minha em todos os personagens, mas ela sofreu uma virada absurda durante o processo. Eu havia me apaixonado, filmicamente falando, por um ator e por alguns problemas que não vêm ao caso ele não pôde fazer o filme. Eu não tinha outro homem na minha mente que não fosse ele. É uma história de amor que fala sobre uma mulher trans que se relaciona com um homem mais velho e acabou se tornando um outro filme, acabou se tornando um filme de mulheres. O que seria o protagonista homem virou uma mulher. Eu estou muito feliz com o filme ter tido essa virada porque me abriu muito a cabeça. Eu tinha uma história muito hetero normativa e hoje tenho uma história muito rica, uma história de amor entre mulheres, e acho isso magnífico.

Tem contactado com outros países e com outras culturas. Acha que o Brasil tem um atraso na forma como lida com as pessoas transexuais?
O Brasil é um país muito transfóbico. Estamos lutando para que isso mundo mas infelizmente é uma mudança muito lenta. O maior preconceito da população brasileira é em relação à questão da prostituição e nós somos sempre associadas a isso, à marginalidade e à prostituição. Mas falta às pessoas o entendimento de que se nós estamos nessa situação é porque elas nos colocaram lá. Se nos dessem emprego, se nos dessem qualificação, teríamos muito mais mulheres trans fora da prostituição. Mas também acho que a prostituição não é um problema. Não sou essa pessoa que diz que a prostituição é um problema. Não é. Acho que cada um entende o seu universo e vive da forma que quer e se existe é porque existe procura, e enfim, é uma história longuíssima. Mas o brasileiro ainda é muito preconceituoso. É o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, é um absurdo isso. Recentemente, a gente teve o caso da Dandara, que foi muito triste, muito penoso para todas nós, a gente sofreu muito. Fiquei muito tocada. Alguns anos atrás, aqui em Portugal, teve o caso da Gisberta, que se tornou uma curta-metragem linda e maravilhosa do Tiago Carvalhais. Agora, virou uma peça de teatro em São Paulo, mas é uma peça muito polémica porque é um trans fake. Enfim, espero que as coisas evoluam. Quero usar o cinema como uma ferramenta de transformação. Adoro cinema como entretenimento, quero fazer filmes para que as pessoas sonhem, tenho a intenção de só fazer filmes com historias de relações humanas, com historias de amor. Quero muito fazer mil comédias românticas, quanto mais melhor, porque acho que falta amor no mundo em que a gente vive hoje. Tudo se tornou muito distante, as pessoas se comunicam mais pelo telefone do que olho no olho. Isso é uma coisa que me incomoda muito.

© André Carrilho/Observador

ANDRÉ CARRILHO/OBSERVADOR

E esse é um trabalho de mobilização cultural ou é preciso mobilização política também?
É preciso começar na política. Todo esse desenvolvimento social que espero que aconteça reverbera, ele vai para as artes. A gente tem feito muita coisa no sentido de arte, filmes com personagens trans, peças de teatro, mas políticas públicas quase nenhuma. Existe uma discrepância muito grande. Acho que é preciso que haja mais políticas públicas pensando nessa população de travestis e transexuais, com todas nós, trabalhando, nos desenvolvendo, estudando, isso provavelmente vai afetar as artes, porque muitas de nós vão descobrir que querem ser escritoras e vão escrever um puta romance. O fundamental é pensar em qualidade de vida para depois pensar em arte, porque sem qualidade de vida você não faz arte. Eu, muitas vezes, não tinha o que comer, não tinha dinheiro para comprar um bilhete de metro, mas ia nos lugares porque queria fazer arte, mas isso é porque queria muito. Só eu sei a dor que sentia nesse período, nesse processo, porque não é fácil você viver com fome, você viver preocupada se você vai ter onde morar amanhã, é muito difícil. A falta de certezas de que você tem um teto para dormir e um prato de comida te desumaniza. Você não vai conseguir pensar em arte se você está com fome. Como é que você vai conseguir escrever o roteiro de um filme se a sua maior preocupação nesse momento é saciar a sua fome, se manter de pé e ter saúde? Não tem como.

Outro momento que relata no filme: a sua viagem ao Japão. Ela foi mais traumatizante do que pensava?
Foi extremamente traumatizante. Tinha em mente a história com o meu pai. Tínhamos uma relação muito difícil. Quando ele morreu, não fui no enterro, não fui no velório, nem o vi antes de morrer e isso ficou me assombrando por muito tempo. E quando era criança, ele morou no Japão, enquanto eu morava no Brasil com a minha mãe. Eu mandava muitas cartas para ele pedindo coisas, imaginava que viver no Japão era lindo e maravilhoso, porque as fotos que ele mandava e as notícias que vinham de lá davam margem a você imaginar muitas coisas. Então ele mandava uma foto do lado do Starbucks e eu imaginava meu pai vivendo bem. Imaginava que ele tinha uma vida financeira muito melhor do que a que nós tínhamos, então mandava cartas para ele pedindo o último disco da Madonna, a camiseta tal e ele nunca me respondia. Um dia, quando foi ao Brasil, ele disse para mim que trabalhava tanto que o tempo que tinha era para dormir e para comer. Eu não acreditava, achava que ele tinha tido outra família, feito outras coisas. Então, quando ele morreu, precisei descobrir esse universo do meu pai, se tudo o que ele me falou era verdade. Fui para o Japão e vi que tudo era verdade. Você trabalha 12, 16 horas de pé, você não tem tempo para comer, você não tem tempo para ter uma vida social, você chega da fábrica e vai direto dormir porque no dia seguinte você tem de estar às cinco da manhã de pé para ir trabalhar. Tudo o que ele viveu no Japão eu vivi, só que vivi de uma forma muito pior porque sou uma mulher trans. Trabalhava muito pouco tempo em fábricas, porque as pessoas não aceitavam. Era demitida constantemente, independentemente da minha funcionalidade, do quanto eu era capaz. Não tinha nada a ver com capacidade, tinha a ver com preconceito. Vivia mudando de fábrica e se você vive mudando de fábrica, você vive mudando de lugar. Conheci quase todo o Japão por demissões.

Como assim?
Fiquei quatro meses morando na rua, foi muito difícil. É por isso que te falo: tudo o que está acontecendo hoje na minha vida é uma grande alegria, é o maior sonho. Eu me belisco. Ontem, estava no hotel olhando para Lisboa à noite pensando: ‘isso realmente está acontecendo? Eu não morri?’. Morei na rua quatro meses sem sem perspetiva nenhuma de voltar para o Brasil. Imaginava que uma hora eu fosse morrer ali de fome, por algum motivo de saúde. Aí, um amigo meu, Tiago Grandeza, de São Paulo, mandou uma passagem para eu voltar para o Brasil. Fui de uma do Japão até ao aeroporto de Narita, em Tóquio, só com uma sacola plástica com um prémio da Ida Feldman que tinha recebido no MixBrasil e um Chanel No. 5, só. Cheguei no aeroporto, me deitei no chão, chorei, tive todo um momento catártico ali e aí voltei para o Brasil. Mas, em consequência disso, quando voltei a morar com a minha mãe, tive uma depressão, uma síndrome do pânico, tinha medo de sair de casa porque pensava que se saísse podia não voltar e não queria morar na rua de novo, passar fome de novo. Fiquei em casa e saía só para ter encontros românticos e foi quando, como contei no filme, tomei muitas hormonas, conheci um cara e blá blá blá. Me sinto muito privilegiada porque sei que sou uma no meio de um milhão que conseguiu sair das estatísticas. Quero que o meu papel nesse mundo do cinema e das artes não seja só de vaidade. Isso aqui é meu? Não. Eu me sinto responsável por criar espaço para outras mulheres trans terem esse mesmo espaço. Adoraria estar aqui hoje no IndieLisboa e ter um grupo de mulheres trans me esperando para tomar um café, que trabalhassem na mesma área. Não tenho, mas sei que terei um dia. Farei o meu melhor para que isso aconteça.

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