No dia 23 de março de 1882, nascia na Alemanha uma mulher que viria a ser apelidada por Albert Einstein como “o génio matemático criativo mais significativo até agora desde o início da educação superior das mulheres”. Chamava-se Emmy Noether e herdou a queda para os números do pai, Max. Apesar dos rasgados elogios de cientistas tão reconhecidos como Pavel Alexandrov ou Norbert Wiener, Emmy Noether só conseguiu dar palestras de álgebra e física teórica burocraticamente mascarada com o nome de “Hillbert” e deixava que os alunos e colegas homens publicassem algumas das suas ideias como se fossem deles, só para dar mais contribuição à ciência. Mas morreu sozinha em 1935, com um quisto no ovário e um afinco científico que acabou desvanecido na História.
Desde então, Margaret Hamilton desenvolveu o programa que conduziu a missão Apollo 11 à Lua, Rosalind Franklin entendeu a estrutura do ADN e Hedy Lamar deu os primeiros passos para a invenção do telemóvel. Mas mais de oito décadas depois, o destino de muitas mulheres na ciência continua quase o mesmo, garantem três das mulheres cientistas galardoadas com o prémio L’Oréal e UNESCO For Women in Science que esta semana foi entregue em Paris, França.
O “preconceito inconsciente”
Selene Valverde é uma cientista mexicana que estuda ciências biológicas e que, nos últimos anos, se tem dedicado principalmente a estudar “a matéria negra do nosso ADN, que corresponde a 97% de todo o nosso material genético”, explica ela ao Observador. Não se lembra de ter sentido na pele algum tipo de preconceito pelo facto de ser mulher, pelo menos nada que a tenha feito progredir mais devagar na carreira. No entanto, confessa que tinha bons exemplos em casa: a mãe “foi a primeira a quebrar as barreiras invisíveis”, conta.
“Ela vinha de uma cidade muito pequena no México. O meu avô não queria que ela fosse estudar para fora da cidade, mas ela foi insistente e por isso ele deu-lhe duas opções de cidades para onde ela poderia ir. Ela pensou que do mal ao menos e foi ver que cursos podia seguir. E seguiu química”, recorda Selene Valverde, que pretende descobrir na parte desconhecida do ADN a resposta a algumas das doenças que atacam os humanos.
https://www.youtube.com/watch?v=yq4wMIuiwF0&feature=youtu.be
Há coisas que são difíceis na vida de um cientista, quer se seja homem ou mulher. Selene Valverde diz que o principal obstáculo que um cientista tem de ultrapassar é a falta de investimento e de fundos, que é muito limitada para os dois lados. Mas também admite que a tarefa é mais complicada para as mulheres: “As mulheres sentem que a carreira científica é uma coisa de homens. De onde eu venho, e acho que é uma questão cultural, faz-se muita pressão para que elas fiquem em casa a cuidarem da família e da casa”, explica.
Isso é parte essencial do problema para Ai Ing Lim, uma cientista nascida na Malásia formada em medicina fundamental: “Quando estava a fazer o meu doutoramento, metade da turma eram homens e a outra metade mulheres. Só que, na altura em que o acabamos, já todos estávamos a chegar aos 30 anos. Nessa idade, e porque biologicamente o nosso tempo é mais limitado, as mulheres começam a pensar em constituir família antes que seja tarde demais. E a carreira profissional fica para trás”, justifica.
De facto, os estudos mostram que quanto mais alto se subir nas hierarquias de uma carreira científica, mais escasso se torna o número de mulheres que ocupam os cargos mais elevados. A Tunísia é um exemplo flagrante disso, explica Ibtissem Guefrachi, uma cientista da área da microbiologia que tem procurado nas plantas alternativas viáveis ao uso dos antibióticos: “Na Tunísia, 60% dos estudantes em áreas científicas são mulheres. O problema vem depois: como o mercado de trabalho é muito limitado, muitas mulheres nem sequer tentam arranjar um trabalho e decidem dedicar-se à vida familiar. Os homens não pensam tanto nisso: se lhes aparece uma boa proposta de trabalho, não pensam em quem fica com os filhos, porque assumem imediatamente que essa tarefa pode ficar nas mãos das mulheres“, afirma a microbióloga.
O problema está naquilo a que Selene Valverde chama de “preconceito inconsciente”, que ocorre quando “limitamos o mundo de uma criança em função do sexo com que nasceu”, explica ao Observador: “O problema começa desde tenra idade. Há uma experiência muito interessante que pegou em crianças da escola primária na Ásia — por serem conhecidas por serem boas a matemática — e pediu a algumas raparigas que desenhassem uma boneca e a outras que desenhassem uma bola antes de um teste. Aquelas que desenharam a boneca tiveram notas piores e as que desenharam uma bola tiveram notas melhores“, revela a mexicana. O segredo está todo “naquilo que dizemos às nossas crianças”: “Já reparou como, quando vemos uma menina, costumamos elogiar-lhe mais a beleza do que a inteligência? Se ela mostra interesse por números, dizemos-lhe logo que é muito difícil e incutimos-lhe falta de confiança. Elas começam a acreditar realmente que não são boas”, acredita a cientista.
O que dizem os números
Em termos estatísticos, a situação em Portugal é melhor do que a média na Europa e no mundo, diz a UNESCO: por cá, os dados mais recentes mostram que 45,4% de toda a comunidade de investigadores científicos é constituída por mulheres. É uma estimativa muito acima daquela que é feita para o mundo, onde há 28,8% de mulheres entre os investigadores; e na Europa, onde essa percentagem é de 39,6% para a Europa Central e Oriental e de 32,2% para a Europa Ocidental em conjunto com a América do Norte. As situações mais extremas estão no Mianmar, onde as mulheres representam mais de 85% de todos os investigadores, e na Arábia Saudita, onde a percentagem desce para os 4%.
Segundo as cientistas com quem o Observador conversou, há forma de dar a volta a estes números. Selene Valverde diz que projetos como o da Fundação L’Oréal são um bom passo nesse caminho porque “mostram às mulheres que, se outras mulheres foram capazes, elas também são“. Para ela, é acima de tudo uma questão de auto-estima e de confiarem nelas próprias: “As pessoas podem dizem muita coisa, mas a vida é nossa, por isso temos de fazer as nossas próprias escolhas. As pessoas vão sempre ter uma opinião, boa ou má, e nunca vais ser capaz de fazer toda a gente feliz. Mais vale fazermo-nos a nós mesmas felizes“, conclui a bióloga. E acrescenta que estamos no bom caminho para uma ciência mais justa para homens e mulheres: as licenças de maternidade estão “mais ajustadas à realidade”, já há companhias com creches incluídas que permitem aos funcionários equilibrar melhor a vida pessoal e a profissional, e até na escola se deu um passo mais firme ao permitir aos estudantes que façam os testes sem assinarem — para que não se repare pelo nome se são homens ou mulheres.
A tunisina Ibtissem Guefrachi acredita que a solução está na prática: há que criar mais clubes científicos onde as crianças possam explorar o mundo e “pô-las em contacto com os cientistas”. E Ai Ing Lim diz que boa parte do problema pode ser resolvido se também se educarem os homens: “Uma mulher não tem de ser obrigada a escolher entre a carreira profissional e a vida familiar. Por isso, tem de ter ao lado alguém que a compreenda, que se sinta orgulhosa dela e que a encoraje a ir mais além”.
Então e os homens?
Para estas cientistas não é verdade que os homens e mulheres sejam iguais na forma de fazer ciência. “Vejo mais mulheres a serem apaixonadas pela ciência e a partilharem com o mundo as suas ideias e perspectivas do que homens a fazerem isso. Nem todas as mulheres e nem todos os homens são assim, mas noto essa tendência. Elas tendem a fazer ciência por isso, e eles por sede de poder e sucesso. Dá a sensação de que, para muitos homens, não importa exatamente o que estão a fazer, desde que isso lhes traga um posto”, explica ao Observador Ai Ing Lim.
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A cientista, que se dedica a estudar as origens da inteligência do sistema imunitário, diz que a prova disso está no facto de “muitas vezes, quererem ficar no centro da conversação, e para isso estarem disponíveis para derrubar outros homens e não só mulheres. Não é apenas uma questão de ego”, acredita ela. Ibtissem Guefrachi, que veio a França em representação da Tunísia, concorda com Ai Ing Lim: “As mulheres têm de ser mais pacientes, mas também são mais apaixonadas pelo que fazem, por norma.”
Mas a diferença de género tem limites, acreditam as três cientistas em entrevista ao Observador. Questionadas sobre se concordam que projetos como o da L’Oréal em parceria com a UNESCO, que são direcionados exclusivamente para o público feminino, podem aprofundar ainda mais essa disparidade e promover a desigualdade de oportunidades, todas elas respondem peremptoriamente que não: “Acho que tenho alguns colegas que sentem isso, mas este tipo de projetos é direcionado a mulheres jovens que precisam de ser inspiradas e isso traz consciencialização para este problema. Muitas vezes, nas conferências a que vou, os organizadores desculpam-se e dizem que não convidaram mais mulheres como palestrantes porque elas não existem. E é graças a iniciativas como estas que nós podemos responder: ‘Sabem que mais? Está aqui uma lista e há mesmo muitas'”, conta a mexicana Selene Valverde.
Ai Ing Lim, que exerce a profissão entre França e os Estados Unidos, tem recordações que “provam a pertinência de programas como este”: “Quando era mais nova e comecei a exprimir a minha vontade de ser cientista, as pessoas diziam-me porque é que me queria meter num laboratório se podia ir para professora e ganhar dinheiro mais certo, ou trabalhar em casa a cuidar da família. É algo que está nas raízes culturais e sociais. Estes projetos servem para encorajar as mulheres a não seguirem essas vozes“.
Mas entre as pessoas que motivam as mulheres a ingressarem mais, e cada vez mais, em carreiras científicas também estão homens. É por isso que a L’Oréal aproveitou a cerimónia desta quinta-feira à noite na sede da UNESCO para anunciar que vai juntar um novo ramo ao programa que celebra 20 anos de vida em 2018: chama-se “Men For Women in Science” e serve para galardoar os homens que mais contribuíram para “tornar a vida das mulheres na ciência mais justa”; mas também para motivar outros homens a juntarem-se ao movimento. É o mais recente passo da parceria entre as duas instituições, que reconheceram o trabalho de 3.100 cientistas mulheres e já financiaram as investigações científicas de mais de 3 mil jovens mulheres.
*O Observador viajou até Paris a convite da Fundação L’Óreal