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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Maria João Pires: "A minha vontade de parar existe. Só que deixei de ter vontade para fazer previsões"

Em entrevista na semana em que dá quatro concertos na Gulbenkian, a pianista fala da magia de Schubert e da eventual separação do piano aos 80 anos, do fim de Belgais e do futuro sem ressentimentos.

Podiam recordar-se os versos de uma canção de José Mário Branco: “Porque a vida não se pode resumir numa canção/ Mudar de vida? / Mudar de vida é uma questão que ainda não está resolvida”. Não é tanto sobre mudar de vida, mas sim sobre mudar de ideias, aquilo que traz Maria João Pires de volta aos palcos, porque – como diz a própria– “todos dizemos ou ambicionamos muitas coisas que depois não fazemos na vida”. Aos 79 anos, quase a virar octogenária, a pianista mantém-se de espírito aberto, ainda que muito do que tem mapeado o seu percurso pareça estar a chegar a um momento de término ou aparente suspensão. Ainda assim, de regresso a Portugal depois de um conjunto de concertos na Europa, sobe esta semana ao palco do grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para um ciclo de apresentações dedicadas à obra do compositor austríaco Franz Schubert (entre os dias 21 e 23, ou seja, de quinta a sábado).

Os quatro concertos recuperam o espírito das célebres “Schubertiades”: as sessões de salão que marcaram Viena no início do século XIX, com o compositor Franz Schubert como figura central e onde o próprio e outros artistas interpretavam e celebravam as composições do austríaco. Mantendo esse mesmo espírito, Maria João Pires irá partilhar o palco com vários músicos convidados, recriando esses momentos íntimos de partilha, nos quais a arte (e a música em particular) ocupava um lugar central. Partindo deste mesmo ciclo, a pianista esteve à conversa com o Observador, onde falou da sua relação com Schubert, do momento de vida que atravessa, mas também de Belgais e da sua relação com Portugal.

Distinguida com a Medalha de Mérito Cultural, em 2019, Maria João Pires mostra-se feliz e pacificada com Portugal, com desejos e ambições para o futuro, mas com vontade de deixar os palcos para segundo plano. O centro de artes que tentou construir em Belgais é um projeto terminado, explica, mas isso não é sinónimo do fim da educação pela arte, que a continua a motivar diariamente. Quanto ao panorama da música clássica descreve-o como dominado por uma ideia de mercado, onde se mistura a competição com a arte. “Todos somos únicos. Um artista e a sua arte também é única, por isso não pode ser remetida à competição”, frisa.

Nunca deixando de lado as atividades mais mundanas, como o amassar do pão ou o tratar da horta, a pianista prefere dar a ideia de um equilíbrio perfeito que, de resto, sempre a colocou num lugar que está para lá do que imaginamos normal para um intérprete num patamar elevada exigência. “Não sou nada chique”, assim o diz. Bem pelo contrário, é simples e espontânea. Primou pela informalidade e sempre que necessário escolheu afastar-se da música por sentir que o momento ou as lógicas dominantes eram prejudiciais ao objeto artístico. Felizmente para nós, é aos palcos que regressa. Acima de tudo porque, como diz, “nunca nada acaba verdadeiramente”.

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"Cada um de nós tem as suas razões para mudar de ideias. E acima de tudo, porque mudar de ideias é extremamente saudável"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Disse que não voltava às salas de grandes concertos, mas continua com uma agenda bastante preenchida. Mudou de ideias?
Acho importante termos noção de que um artista, ou uma pessoa que tem uma vida mais ou menos pública, é exatamente igual aos outros. E nesse sentido, com certeza que todos dizemos ou ambicionamos muitas coisas que depois não fazemos na vida. Portanto, coloco-me ao mesmo nível: muitas vezes digo coisas que depois faço ou não faço.

Portanto, voltou aos palcos?
Eu disse que não queria dar concertos nos próximos anos e acabei a dar. Tinhas as minhas razões. Cada um de nós tem as suas razões para mudar de ideias. E acima de tudo, porque mudar de ideias é extremamente saudável. Não é nada de mal ou errado, porque a vida está constantemente a mudar e nós se não mudamos com ela, morremos por sermos inflexíveis. Podemos não morrer fisicamente ou espiritualmente, mas ficamos presos onde estávamos, se não formos capazes de mudar de ideias. Agora isso não quer dizer…

Que a decisão seja final.
Nenhuma decisão é final. E não há decisões que sejam permanentes.

Vê-se a dar concertos por muitos mais anos?
Não. Não me vejo e a verdade é que a minha vontade de parar existe. Só que eu deixei de ter vontade para fazer previsões. Vive-se um dia de cada vez.

Agora com um ciclo dedicado a Franz Schubert. Como é que se liga a ele?
Através da música, da personalidade e daquilo que ele representa. No fundo, ele representa um grande humanismo. Acho que essa é a sua característica principal. De qualquer maneira, fazer um projeto à volta de um compositor é algo que a mim me apaixona e que adoro.

Porquê?
Porque podemos ter tempo para estar à volta da obra daquele compositor, daquela pessoa, daquilo de que trata, da sua vida, dos seus sentimentos e de toda a herança que nos deixou. Tudo isso. Portanto, acho que é muito mais fácil do que dar concertos com dois ou três compositores em que temos de andar a saltar de um universo para o outro e não conseguimos aprofundar nenhum deles. Pelo contrário, este projeto foi feito para termos uma visão daquilo que o mundo sente de Schubert e a partir dele. Como é que o mundo vê, ouve e compreende a sua obra.

A obra de Schubert é relevante para olharmos para os tempos que vivemos?
Quer dizer, isto é dar uma importância enorme ao estilo e à época, como se o ser humano, influenciado por uma obra ou por um lugar geográfico, fosse diferente de outros seres humanos. Estamos a evoluir, mas em que sentido? O que se passou há 3000 anos não tem importância? Acha isso?

"A música clássica está neste momento completamente entregue ao comércio. É um mercado e uma maneira de se fazer dinheiro. Se soubermos isso, já temos as respostas todas. Eu fiz o meu percurso fora disso."

Não, diria que tudo isso importa.
Então quem criou esse passado tem sempre importância e devemos sempre olhar para aquilo que nos deixou como marca. Neste caso, olharmos para a obra do Schubert.

Ainda se emociona quando toca certas peças? No passado mostrou-se em ocasiões como conseguia tocar e a seguir chorar por aquilo que tinha tocado…
Exatamente da mesma maneira que sucedia no passado. O sentimento não é diferente. Os músicos são músicos, por isso… Não sou eu, não se trata de uma coisa minha ou pessoal. E mesmo o público que vai a um concerto e sente essa emoção, que consegue aprofundar e compreender e captar a energia que vem da música, essas pessoas são iguais ao intérprete ou ao compositor. São energias que passam. É provável que haja certos tipos de música que não me emocionam a mim, mas que emocionam outras pessoas. Mas isso não dá mais importância a um estilo do que a outro.

O panorama da música clássica foi mudando.  Corrija-me se estiver errado: atualmente será muito mais difícil um pianista chegar a um determinado nível de reconhecimento e manter essa marca durante muitos anos, porque o panorama é cada vez mais competitivo, sobretudo no piano. Concorda?
Basta despir-se um bocadinho… Fora de brincadeiras, obviamente que um jovem intérprete marca se fizer uma série de atuações que deem nas vistas e sejam notadas pela sua qualidade. E hoje temos as diferentes redes sociais que também ajudam. Portanto, não vejo a dificuldade em chegar ao estrelato. Dificuldade é a guerra que tem de se fazer com os outros.

Pela competição?
É uma guerra.

Atualmente, o mundo da música erudita parece programado e dominado por concursos. Que trazem destaque, mas também a efemeridade dessa verdadeira expressão. Sustentam esse lado competitivo, de alguma forma.
Mas se quisermos ser um bocadinho mais pragmáticos, podíamos começar por perguntar a nós próprios o que é a arte? E o que é que a arte tem a ver com a competição? Qual é a relação entre arte e competição? Essas são as primeiras perguntas que devemos fazer.

E tem uma resposta?
A minha resposta é que uma coisa e outra não têm nada a ver. E, portanto, uma pessoa que vai fazer competição com arte está forçosamente a destruir a arte em si. Está a entrar num domínio que é oposto ao da competição. De um artista não dizemos sempre que é único? Todos somos únicos. Um artista e a sua arte também é única, por isso não pode ser remetida à competição.

Nesse sentido, falta desconstruir um bocadinho aquilo que é o panorama da música clássica e a maneira como está construído o percurso destes jovens?
A música clássica está neste momento completamente entregue ao comércio. É um mercado e uma maneira de se fazer dinheiro. Se soubermos isso, já temos as respostas todas. Eu fiz o meu percurso fora disso.

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Maria João Pires em palco: em 1986 e em 2019

Gamma-Rapho via Getty Images

Mas com um pé dentro. Gravou muito, atuou nas maiores salas…
Sempre deixei aquilo que achava que era incorreto e que estava a ser prejudicial em favor daquilo que era o objetivo artístico. Sempre que senti que estava a interferir, larguei. Muitas vezes, as minhas despedidas de palco foram devidas a isso. E depois de alguma reflexão voltei, mas precisei desse tempo e de olhar de fora.

Voltou porque ainda vale a pena tocar?
Tocar não tem nada a ver com valer a pena ou não. Um artista não tem de pensar se vale a pena… nem tem de valer a pena. Tem de o fazer porque lhe cabe a si fazer. É inato.

O piano é um instrumento onde ainda se inova ou corre-se o risco de se tornar num instrumento também ele demasiado mecanizado e que faz muito do trabalho do intérprete por si só?
O instrumento tem a evolução que têm as pessoas. Eu, por exemplo, hoje em dia não gosto dos pianos modernos. Aliás, a minha ideia de sair do palco seria precisamente para começar a trabalhar e aprender a tocar instrumentos antigos. A função do piano é feita – se falarmos em termos técnicos – para que construa o som do pianista. No tempo em que eu estudei e em que aprendi a tocar piano, tínhamos que aprender a criar o som através do piano. Não era o piano que criava o som. Não tinha um som. Não estávamos lá e ele saia simplesmente. Isso não existia. Mas por isso é que cada pianista tinha um som diferente. Eram únicos.

Atualmente isso não é possível?
Não. Se souber e tiver uma técnica sonora e corporal suficiente, se conhecer o corpo como um desportista, como uma pessoa que sabe como usá-lo, nessa altura, podem ainda tirar destes pianos modernos muitas coisas bonitas e sons que podem ser até extremamente ricos. O piano em si não tem nada de mal ou de errado, só que está feito para salas de três mil pessoas. Está feito para o pianista não precisar desse conhecimento do seu corpo para poder produzir o som.

Precisamos sempre do corpo?
É o que faz quase todo o trabalho. Temos uma ideia do corpo muito errada, mas o corpo é uma grande parte de toda a nossa emoção, influencia imenso a nossa mente e os nossos sentidos, mas atualmente a fisicalidade é mal vista. É vista como um lugar de funções primárias e não é. Na realidade, o corpo é maravilhosamente bem construído e bem e preparado para poder fazer milagres. Não tem só a ver com o funcional do dia a dia e do que é básico.

"[o projeto de Belgais] Acabou. É um espaço de intimidade e onde vivo, porque não tenho outra casa por enquanto. Portanto, é um espaço onde estou até me desligar da casa completamente. [quer vender?] Sim. Não sei quando vai ser, mas espero que seja em breve."

Há muitas histórias interessantes em torno da Maria João Pires: a caravana para viajar nos anos 80, a gastronomia que é uma paixão, a agricultura e a pecuária, o tocar descalça ou de forma informal. Acredita que se criou um lado romântico em torno da sua figura ou revê-se na leitura que fazem de si?
Acho que as pessoas têm uma ideia normalmente certa daquilo que eu sou e, acima de tudo, que sou como elas. E isso é muito importante. Tive uma infância um bocadinho à parte e isso marca-nos. O meu pai tinha morrido, comecei a tocar com três anos e criam-se condições… às vezes há histórias que não têm a ver com a realidade, mas isso é normal, sobretudo com os media. As pessoas sonham muito a volta das coisas e criam-se narrativas. Mas diria que, em geral, as pessoas conhecem-me porque estou sempre ao nível delas. Estou na realidade, como sou, não é fingimento.

Mas faz algo que nem toda a gente consegue fazer, pelo menos com a sua mestria.
Porquê? É uma questão de oportunidade e uma questão de momento. São questões que têm a ver com aquilo que aconteceu, lá está, com a flexibilidade e a impermanência da vida. A vida é tão impermanente que nós pensarmos que não éramos capazes de fazer algumas coisas é provavelmente errado. Nós teríamos sido capazes se tivéssemos estado naquele momento, naquela hora e naquela circunstância.

Sente-se mais compreendida em Portugal?
Nunca me senti incompreendida. Houve um grupo de pessoas numa certa época que, digamos… e até para sermos realistas, não se comportou muito bem comigo a nível humano. Mas todos nós temos essa experiência na vida. Pessoas que não se comportam bem connosco. Faz parte do dia-a-dia. Só que como eu tinha um nome mais público, veio-se a saber que eu achava que tinha sido injustiçada, de certo modo, o que gerou algumas polémicas. E falo obviamente de um grupo de pessoas, nunca de um todo.

Esse passado atribulado com Portugal está pacificado?
A resposta é sim, mas devo explicar. Não gosto de criar rancores. Detesto. E mesmo em relação a pessoas com quem me incompatibilizei por razões que me parecem óbvias e que para todas as pessoas pacíficas, teriam sido situações em que qualquer um de nós estaria chateado, não gosto de criar rancores. Pode haver incompatibilidade, porque elas existem e fazem parte, mas criar rancores não faz parte da minha forma de ser e estar. Portanto, há sempre um momento em que penso que aquela pessoa com a qual me incompatibilizei, porque foi injusta comigo, provavelmente teve circunstâncias na vida e coisas que aconteceram que fizeram com que ela tivesse rancores e tivesse, por exemplo, ciúmes ou sentimentos que eram negativos. Perante essa pessoa, ao ter essa infelicidade, nós também temos que dar uma margem, porque acho que o queremos é paz.

Falta-nos empatia?
Falta-nos ter uma empatia profunda com toda a gente. É o segredo para não haver guerras. E tenho muita pena que as pessoas não reflitam sobre isso.

E no entanto, chegados a 2023 o mundo e a Europa estão em guerra.
No fundo, a guerra é uma consequência normal dos sentimentos humanos, do dia a dia, mas que é uma expressão humana negativa. Portanto, se quiséssemos virar as coisas ao contrário, se quiséssemos refletir sobre esse assunto, imediatamente deixávamos de ser não só extremamente violentos, mas também extremamente críticos e cínicos, sem sabermos as causas… A verdade é que todos temos tendências muito negativas. E o mundo atual sofre disso mesmo, pela sua falta de reflexão.

"Vou fazer 80 anos e tenho de me poupar. Já não posso trabalhar horas e horas por dia para aguentar dar concertos, ter um espaço dedicado à educação pela arte, entre tantas outras coisas"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Como está atualmente o projeto de Belgais?
Acabou. É um espaço de intimidade e onde vivo, porque não tenho outra casa por enquanto. Portanto, é um espaço onde estou até me desligar da casa completamente.

Mas quer vender?
Sim. Não sei quando vai ser, mas espero que seja em breve.

Acabou o sonho da educação pela arte?
Não, eu continuo a dar aulas e fazer outros projetos.

Referia-me a Belgais.
Sendo um espaço e projeto meu, sim, terminou.

Tem pena disso?
Tenho de pensar de uma forma diferente. Virarmos as coisas de outra forma. Sou extremamente privilegiada em relação à humanidade em geral. Não tenho fome, não tenho falta de casa, não tenho falta de nada. Se fico com mágoa de ficar sem Belgais? Se foi um sonho realizado, mas que depois acabou? De quem é que foi a culpa? Para quê queixar-me ou ter pena disso?

Há não muito tempo ainda mantinha o desejo de fazer lá concertos e até gravar discos, por exemplo.
E não é que não queira, mas não é viável. Vou fazer 80 anos e tenho de me poupar. Já não posso trabalhar horas e horas por dia para aguentar dar concertos, ter um espaço dedicado à educação pela arte, cuidar da quinta, entre tantas outras coisas.

Vê-se como pedagoga, ainda assim?
A palavra é muito pomposa, próxima de professora que não diria que sou. Agora, se me vejo a transmitir aquilo que aprendi? Sim, mas isso gostaria de fazer até morrer.

Continua a amassar o pão e a tratar da horta?
Isso faço tudo ainda.

É mais importante do que tocar piano?
Não.

Como é que equilibra tudo isso?
O equilíbrio é perfeito. Tudo aquilo que fazemos é importante. De manhã, quando acordo às 6 horas e vou carregar a lenha para aquecer a casa, para fazer um café quente, para torrar o pão ou tirá-lo do forno, tudo isso são coisas que têm uma enorme importância.

A Eunice Muñoz disse uma vez que a Maria João Pires era uma verdadeira dona de casa.
Sou e gosto de ser. Para mim é muito importante. Saber receber as pessoas. E não tem nada a ver com luxo nem com educação. Os meus netos às vezes veem-me como uma avó que tem a mania de fazer tudo muito clássico, com a mesa muito bem posta, mas não compreendem que isso é gostar das coisas bonitas. É uma forma poética de organizar o nosso mundo. De termos uma arrumação e uma beleza à volta disso. Não gosto de ver um copo de plástico na mesa. E isto não é ser esquisita para querer ser chique. Não sou nada chique. É só uma forma de vivência que acho importante e que, infelizmente, se perdeu muito.

"[o que falta fazer?] Há de tudo. Ambições, desejos. Algumas coisas por gravar. Há projetos muito concretos para já e outros que se podem desenvolver conforme o que acontecer. Mas como disse, não sei se vou conseguir continuar a tocar muito tempo, porque tenho distonia da mão direita."

Ainda é profundamente espiritual? Pela sua experiência, tornamo-nos mais espirituais à medida que envelhecemos?
Não. Tornei-me, provavelmente, mais conhecedora e mais experiente à medida que envelheci. A vida é espiritual e se dizemos que não somos espirituais, estamos a querer anular uma coisa que não se quer aceitar. Na fórmula da vida atual as pessoas não são espirituais e se são há sempre quem as ache um bocadinho hippies e alternativas. Mas não acho que seja assim.

Por mais do que uma vez, creio que falou, muitas vezes de forma indireta, sobre como a ruína do espaço ou das coisas a inspira. É como ter lugar onde é possível sempre recomeçar?
Adoro a ruína. Na ruína estou a ver o espírito do passado, onde tudo se recomeça, até porque nunca nada acaba verdadeiramente. Por exemplo, uma pessoa que se sente insegura em relação aos seus conhecimentos e que diz “eu não sei nada disso, sou um ignorante”, no fundo, não se está a dar a ela própria a possibilidade de aprender. Ora, se eu disser que não sou espiritual, estou a dizer que não quero aprender nada disso, porque isso me vai dar muito trabalho…

Temos de dar oportunidade de errar e aprender?
Um exemplo muito bom: quando se diz que não se acredita em Deus ou que se acredita… há um fechar e um abrir. Se nos abrimos, não temos nem que acreditar nem que não acreditar. Passa a integrar a nossa forma de estar.

Está quase a chegar aos 80 anos [em julho de 2024]. Se não tivesse sido pianista, o que é que teria feito?
Provavelmente teria estudado medicina, porque estive muito ligada a essa ideia antes de ir para a Alemanha estudar. Mas não quer dizer que gostasse de ser médica. Se assim fosse, teria escolhido a neurociência. Já trabalhei com vários neurocientistas, nomeadamente pelos temas ligados à educação. É uma área que me entusiasma particularmente.

O que ainda falta fazer?
Há de tudo. Ambições, desejos. Algumas coisas por gravar. Há projetos muito concretos para já e outros que se podem desenvolver conforme o que acontecer. Mas como disse, não sei se vou conseguir continuar a tocar muito tempo, porque tenho distonia da mão direita [contrações musculares involuntárias]. Não é assim permanente no sentido de que todos os dias sofro com isso, mas tenho muitas épocas em que penso que pelo menos não vai melhorar e é cansativo.

"Estou feliz. Agora gostava de ter férias e espero tê-las ainda este ano."

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Muitas vezes aborda-se o fraco consumo cultural e pouco interesse dado às artes em Portugal. Como é que olha para isso?
Portugal sempre teve uma componente muito importante de flexibilidade e de abertura. Aliás, somos considerados por muita gente aqueles que sabem desenrascar as coisas à última da hora. Isso é um bom sinal. É um sinal de que a pessoa não está fechada, está aberta à solução. É uma grande qualidade dos portugueses. O que não podemos é estarmo-nos sempre a comparar, mesmo em termos culturais. Somos iguais aos outros. Temos um bocadinho mais de mar, um bocadinho mais calor, ali um pouco mais de frio ou de neve, mas as nossas diferenças acabam por ser ridiculamente pequenas. Portanto, quando se diz que falta cultura, não concordo.

Mas gostamos do queixume?
Isso gostamos. Até eu gosto. Há sempre aqueles que dizem ‘vitimize-se’!

[O neto de Maria João Pires, Sebastião, assiste à entrevista e decide ler uma passagem de Heráclito: “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”]

Voltamos à questão de mudarmos de ideias?
Ora aí está. E muito bem! Isto sim, diria que é de um génio. É isto que considero um génio: uma pessoa que vê e que percebe a realidade em permanência.

Nunca se considerou um génio?
Eu não. Nunca conseguiria escrever isso. Não era o Einstein que dizia que o génio era 99% de trabalho e 1% de talento?

Mas tocou piano como muito poucos.
Tinha talento para fazer certas coisas e trabalhei muito. Só isso.

Belgais era projeto de um génio?
Talvez. Mas há coisas que por vezes ficam na intermitência. E ficaram porque houve, naquela altura e naquela zona, uma falta de preparação para um projeto que se diria um pouco futurista. Podemos dizer isto sem ofensa para ninguém. Não estavam preparados. Senti-o e sofri isso com muita violência.

Sente que tem uma vida boa? O que é que gostava de fazer nos próximos tempos?
Sim, estou feliz. Agora gostava de ter férias e espero tê-las ainda este ano.

 
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