“Dá para perceber que, claramente, há qualquer coisa que não está a correr bem dentro da cabeça dele…”. No final de agosto de 2019, motivado pelo oitavo lugar conseguido na Áustria que tinha sido até esse momento a melhor posição de sempre no MotoGP, Miguel Oliveira apostava forte no Grande Prémio da Grã-Bretanha. Acabou a conhecer aquilo que até aí era terreno virgem: o alcatrão. Uma manobra sem nexo do companheiro de equipa na Tech3, Johann Zarco, fez com que tivesse de desistir em Silverstone, quebrando algo que já era uma imagem de marca do português: melhor ou pior, mais ou menos rápido, fiabilidade era a palavra do meio no nome do português. Recuando ao Moto2, foram 35 corridas seguidas sempre a cortar a linha da meta, numa série que tinha começado dois anos antes. As duas temporadas seguintes não foram tão limpas, a última pela KTM em 2022 teve apenas duas desistências, no ano passado voltou tudo a mudar para pior. Se existe desafio para 20424, o mesmo passa por recuperar essa característica, mais importante do que nunca.
A introdução da corrida sprint no sábado também contribuiu para isso mas aquilo que ficou de 2023 foi o aumento do número de quedas entre os pilotos do MotoGP (358), superando o anterior registo máximo de 2022 (335). Marc Márquez foi o rei das idas ao asfalto (29), seguindo-se o companheiro de equipa da Honda (agora antigo companheiro) Joan Mir (24). Em condições normais, Miguel Oliveira deveria aparecer nos últimos lugares do ranking. Ao invés, foi o 11.º (15). Até nos pormenores se percebeu que, entre algum azar por ser “vítima” na maior parte dos casos da confusão por uma posição melhor nas curvas iniciais, o piloto português estava ainda a perceber as dinâmicas da mudança de equipa, da KTM para a Aprilia. Com isso, terminou sem um único pódio pela primeira vez desde esse ano de estreia na principal classe, em 2019.
Foram demasiados contratempos num só ano. Em Portugal, quando tinha todas as condições para fechar em posição de pódio depois de um sétimo lugar na sprint na sequência de uma curva mais larga na última volta, Miguel Oliveira foi abalroado por Marc Márquez, ficou de fora e falhou a corrida na Argentina. Em Espanha, mais do mesmo mas com Fabio Quartararo a dar o toque final que provocou nova lesão no ombro e outra ausência na prova seguinte, em França. Em Itália, o português voltou a cair e falhou os pontos. Nos Países Baixos, o “adversário” foram mesmo os problemas mecânicos. O piloto da RNF, que andou sempre à frente do companheiro de equipa Raúl Fernández, ainda conseguiu um período de alguma estabilidade com um quarto lugar na Grã-Bretanha, um quinto na Catalunha e um sexto em São Marino mas a época iria terminar como começou, neste caso com os problemas na moto a serem um obstáculo sem solução.
A 16.ª posição no Mundial que terminou com a revalidação do título por Pecco Bagnaia, superando a luta que Jorge Martín e Marco Bezzecchi foram dando ao longo da temporada, soube a pouco. Sobretudo, e num outro contexto, poderia ser uns lugares acima sem tantas quedas e questões na moto. E também, em paralelo, porque foi nessa parte final da época que foram começando a surgir as notícias de uma possível mudança.
Apesar dessa temporada aquém das expetativas quando trocou a KTM pela Aprilia, recusando uma oferta de contrato que era superior à que tinha com a marca austríaca por considerar que deveria manter-se na equipa principal e não “regressar” à GasGas Tech3, tudo aquilo que tinha feito no MotoGP continuou a funcionar como um cartão de visitar para tudo o que poderia acrescentar a uma equipa. Depois, mexeu a primeira peça: Marc Márquez anunciou a saída da Honda, passando para a Gresini em equipa com o irmão Álex. É certo que a formação nipónica estava longe dos bons velhos tempos mas a oportunidade de entrar num projeto como aquele que tinha levado o espanhol a todos os seis títulos de campeão mundial era aliciante. As conversas exploratórias existiram, a possibilidade de saída da Aprilia também. Acabou por ficar, não só com a crença de que o novo projeto tinha margem de crescimento mas também com a esperança de merecer a oportunidade de subir para o conjunto principal. Essa era a ideia, essa é a ideia. Questão? Acaba contrato em 2024.
Vários cenários estavam em aberto. Subir à equipa principal da Aprilia, caso Maverick Viñales fosse para a Honda. Assinar pela Honda, numa troca direta com Marquéz. Ficar na RNF Aprilia para ter uma espécie de ano de consolidação e a partir daí mostrar que poderia ter outro espaço na marca italiana. Na verdade, de uma forma “literal”, não aconteceu nenhuma delas. “Após algumas tentativas de contacto da Honda, percebeu-se alguma falta de liderança e de estratégia, por isso decidimos continuar aqui. Foi esse o meu compromisso desde o início e é aqui vou ser fiel. Mais do que aquilo que a Aprilia evoluiu, é a minha evolução na condução. Fizemos alterações na moto para o meu estilo, fiz-me mais à moto”, revelou num momento em que tinha a decisão sobre o futuro consolidada, numa semana que coincidiu com o nascimento do filho. No entanto, nem tudo foi linear e, após a revogação de licença da RNF, foi a Trackhouse Racing que assumiu a posição no MotoGP continuando a trabalhar com a Aprilia. Nova equipa, nova moto, nova cara, novo projeto.
Os desafios e oportunidades de uma equipa que traz algo mais ao MotoGP (e à Dorna)
Se a Califórnia é vista como um estado de estrelas, dificilmente poderia haver melhor contexto para toda a apresentação da nova equipa da Trackhouse Racing com Miguel Oliveira e Raúl Fernández. “Obviamente que estou super satisfeito por estar no lançamento desta equipa americana. É um grande prazer fazer parte da família Trackhouse. Mal posso esperar para começar a nova temporada, com cores excitantes e competitivas. Mal posso esperar para subir para a moto e que a temporada comece”, destacou o piloto português nesse momento em que Justin Marks, líder da Trackhouse Entertainment Group (que tem a Trackhouse Racing), falou em “dois grandes pilotos” para comandarem um projeto onde “o céu é um limite”.
Os problemas com a equipa que era chefiada pelo malaio Razlan Razali funcionaram como um mero acelerar da entrada do conjunto norte-americano no MotoGP, “um mundo global” que há muito era visto como aquele passe de gigante para a expansão pretendida e que, em paralelo, apresentava como “retribuição” a hipótese forte para a Dorna explorar o mercado da América do Norte nos projetos de crescimento de uma modalidade que vai dando passos seguros para se tornar cada vez maior e com mais seguidores. Sendo também uma marca com algumas vitórias do Nascar, havia outra vantagem na Trackhouse Racing que passava pelo tipo de aposta projetada para a ligação com a Aprilia, mais parecida com o que acontece entre a Pramac e a Ducati e entre a GasGas Tech3 e a KTM do que havia por exemplo entre RNF e Aprilia. O facto de Miguel Oliveira poder ser o primeiro símbolo dessa ligação é uma oportunidade de ouro na carreira que traz os seus desafios em termos de desenvolvimento de mota mas muitas oportunidades a breve e médio prazo.
O salto de uma moto de 2022 para 2024 para adaptar à “regra” do segundo ano
Há uma espécie de “regra” de Miguel Oliveira no MotoGP que, em 2024, a continuar, iria permitir uma boa classificação final no Mundial: os segundos anos nas equipas são sempre melhores, mais regulares e muito proveitosos. Após o 17.º lugar na Tech3 em ano de estreia sem qualquer pódio, seguiu-se uma nona posição com vitórias nos Grandes Prémios da Estíria e de Portugal em 2020. Depois da 14.ª posição na estreia na KTM de fábrica com um triunfo na Catalunha, seguiu-se um décimo posto no Mundial de 2022 com vitórias nos Grandes Prémios da Indonésia e da Tailândia. Na última temporada, que assinalou a estreia pela Aprilia, não houve pódios e o máximo que o português conseguiu foram três top 5 na Grã-Bretanha, nas Américas e na Catalunha. Mantendo-se a “regra”, este seria ano de vitórias e de top 10 no Mundial. E, não sendo um prolongamento da RNF mas sim a nova aposta da Trackhouse Racing, pode ter condições para isso.
“O Miguel passou da moto de 2022 para 2024. Parece-me um salto enorme. O que sinto é que é quase como se estivesse a mudar de marca. Não sei se é verdade ou não, têm de perguntar-lhe, mas o que digo é que não se trata apenas de uma evolução. É um enorme salto. E isso diz-te o quão diferentes são as duas motos de um ano ou dois para os outros. Estamos a trabalhar muito na aerodinâmica da moto de 2024. Pelo que vejo até as outras equipas nos estão a copiar. O que é fantástico. É quase como um feito alcançado… Por isso creio que a Aprilia está numa boa posição para desafiar. Claro que a Ducati precisou de muitos anos para lá chegar e esperemos que a Aprilia siga o mesmo caminho, isto sem subestimar os outros, como a KTM”, comentou David Brivio, novo diretor desportivo da equipa. A qualificação e a sprint do Grande Prémio do Qatar não demonstraram na totalidade aquilo que a Trackhouse Racing poderá ser em 2024 com o passar das provas.
O último ano de contrato a procurar aquilo pelo qual era reconhecido por todos
Mexeram uma ou duas peças, mexeu quase metade do tabuleiro. Marc Márquez deixou a Honda depois de 11 anos de ligação e rumou à Gresini para fazer equipa com o irmão Álex, Luca Marini passou para a Honda, Fabio Di Giannantonio passou para a VR46 Racing, Álex Rins passou para a Yamaha, Franco Morbidelli rumou à Pramac, Johann Zarco foi para a LCR Honda e ainda houve aquela que foi a maior surpresa pelo contexto da troca em causa, com Pol Espargaró a ter ligação à KTM mas a perder lugar na GasGas Tech3 para a subida do campeão de Moto2, Pedro Acosta, ao MotoGP. Cada mercado de transferências traz uma dose maior de incertezas e Miguel Oliveira estará em 2024 numa posição de menor força em relação à que tinha em 2023, tendo em conta o final da ligação com a Aprilia. “Os pilotos que não têm contrato renovado vão ter muita pressão mas é o Campeonato do Mundo de MotoGP, para quem não pode ter performance sob pressão não é realmente o lugar deles. Vou tentar estar à margem disso”, comentou o português.
Quando aborda sem qualquer tipo de tabus questões em relação ao seu futuro, Miguel Oliveira deixa sempre nas entrelinhas que todas as equipas acompanham a sua situação e conhecem aquilo que pode acrescentar a qualquer conjunto que represente. No entanto, em 2023, muitas vezes sendo mais “vítima” do que “culpado”, perdeu aquele que era o seu maior atributo enquanto piloto do MotoGP: a fiabilidade e a garantia de que, numa corrida melhor ou pior, consegue sempre acabar e em zona de pontos. Enquanto os desenvolvimentos da moto não têm ainda traduções em pista, essa estabilidade de resultados será o primeiro passo para chegar à abertura do mercado de transferências podendo escolher o futuro sem estar à espera de ser o escolhido. A partir daí, com o passar das corridas, um triunfo como aconteceu em três das cinco temporadas que fez na principal categoria do motociclismo ou o top 10 na classificação poderão ser os passos decisivos.