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Ed Rocha

Ed Rocha

Na pista eletrónica de Moullinex: a dança é terapia, é onde se encontra a luz na escuridão

O luto foi a força motriz para fazer um novo disco. Requiem For Empathy, a sua caminhada das sombras para a luz, pode ser a nossa terapia dançante. Falámos com um dos embaixadores da música portuguesa

Poderia ser um álbum sobre a pandemia, um disco para dançar sobre os destroços de um ano terrível, uma banda sonora eletrónica com laivos apocalípticos mas também com vozes que adoçam esta tragédia comum. Não é: Requiem For Empathy, o novo disco que o músico, produtor, DJ e mestre internacional doutorado na arte de fazer dançar Moullinex (nome artístico do português Luís Clara Gomes) edita esta sexta-feira, 30 de abril, não é um “disco pandémico”. É uma elegia dançante, sim, mas a escuridão de que se alimenta e que combate não é viral.

No dia em que Marcelo Rebelo de Sousa anunciou que Portugal ia entrar em estado de emergência devido à propagação da Covid-19 no país, em março de 2020, Moullinex estava no clube noturno de concertos e DJ sets Musicbox, no Cais do Sodré. Estava ali a finalizar as misturas dos temas que fazem parte de Requiem For Empathy.

O disco, este disco, estava “pronto” — de então para cá, só teve “um acrescento”, uma canção nova chamada “Luz”. Quem achar que adivinha porque ficou o disco pendurado até agora, esperando melhores dias para ser lançado, provavelmente falhará tanto a previsão quanto quem achar que a densidade, o peso e uma certa violência maquinal destes sintetizadores que preenchem Requiem For Empathy resultam de frustrações pandémicas.

As sombras de um disco que se afasta do anterior Hypersex, que foi editado em 2017 e que era mais disco e mais festivo do que este seu sucessor — este um álbum mais soturno e pesado, ainda dançável mas menos leve e eufórico —, não são sombras Covid-19. Ao telefone com o Observador, Moullinex fala numa “sucessão de coisas, de perdas de pessoas próximas” que culminaram em 2019 “numa perda muito grande, do meu avô”.

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Como foi sempre muito “reativo” na música que faz, Luís Clara Gomes começou “a fazer música como forma de terapia para reagir ao luto”. Eis que, chegado ao início de 2020, ficou “com estes temas na mão”. Ainda pensou se os editava como Moullinex ou não, pelo tom ora mais melancólico e introspetivo ora mais agressivo na instrumentação eletrónica, que contrasta com os arranjos mais de banda e de pop eletrónica festiva dos três álbuns anteriores. Mas, conta, pensou o seguinte: “Se até aqui tinha sido honesto com a minha discografia, porque a minha música sempre me representou — sempre foi um reflexo meu —, fazia sentido continuar a ser”.

Chegamos a abril de 2021. A pandemia começa a dar sinais de aligeirar. A tentação do ouvinte de poder ouvir aqui uma banda sonora eletrónica da pandemia é refreada. Luís Clara Gomes vê uma luz ao fundo deste túnel coletivo e interminável que percorremos há mais de um ano. É o momento: o DJ, produtor, músico e compositor português, figura de proa da música de dança nacional (e da música nacional, ponto), sente que é altura de dar a conhecer Requiem For Empathy.

A capa do novo disco de Moullinex, “Requiem For Empathy”, que será editado esta sexta-feira e que será apresentado ao vivo em junho, na Casa da Música (Porto) e Culturgest (Lisboa)

Chamemos a isto música funcional: para o seu autor foi terapêutica, para quem a ouvir pode ser ao mesmo tempo escapista e vingativa de um ano e pouco sem discotecas, com os concertos em estado anémico, com a vida noturna reduzida a compras online de bebidas para cada um beber em sua casa, sozinho ou sempre com a mesma companhia, quiçá com a aparelhagem, a mesa de mistura ou a conta de streaming a transportar a imaginação para um momento em que estes 11 temas pudessem ser ouvidos sem máscaras, sem distanciamento, com o pulso acelerado. E se forem estes os dramas já não é mau.

Requiem For Empathy é uma espécie de eletrónica combate mas para Moullinex, viseense de berço, o combate musical não foi com a pandemia — foi com as suas dores. O ouvinte que pense nas que tem e que se vingue delas dançando-as.

Um milhão de “plays” nos singles, 400 a 500 atuações fora: que fenómeno “Moullinex” é este?

Não vale a pena subsistirem dúvidas sobre o que é este Requiem For Empathy. São onze temas, por um lado, mais pesados e densos do que as canções eletrónica mais preenchidas a guitarra e baixo elétricos de Hypersex (2017), Elswewhere (2015) ou Flora (2012), os discos anteriores. Mas são também temas de um autor que faz música de dança com condimento apurado, com uma capacidade de criar batidas e ritmos dançantes que se prolongam mas que se vão revestindo de novas nuances, de vozes, que se alimentam de uma ideia de canção eletrónica pouco plástica mas nada inacessível.

O álbum ainda não saiu mas os singles deste disco já foram escutados um milhão de vezes em streaming. Moullinex calcula ter atuado já "umas boas 400 ou 500 vezes" fora do país e é ouvido mais fora do que dentro. É sucesso indie e de música de dança, mas é sucesso. E tem explicação.

Recuemos para ficar a conhecê-lo. Desde que trocou a engenharia pela música e desde que se começou a apresentar como um dos pontas-de-lança da nova música de dança portuguesa, no final da primeira década dos anos 2000, Moullinex tem vindo a ganhar notoriedade internacional consistente e crescentemente. Mas no seu caso nem se pode dizer que Luís Clara Gomes tem vindo a crescer de Portugal para o mundo — foi durante um período em que vivia em Munique, na Alemanha, que Moullinex começou a entrar de forma mais sólida no circuito internacional de atuações ao vivo.

Ao todo, e tendo em conta que edita “desde 2009, 2010 como Moullinex”, Luís Clara Gomes presume já ter atuado ao vivo fora do país “umas boas 400 ou 500 vezes”. Mas na raiz dessa circulações por outros territórios — em alguns dos quais é mais ouvido do que em Portugal, garante — está a fase em que viveu na Alemanha. “Estava no centro da Europa, a poucas horas de comboio ou avião de muitas das capitais europeias. Conseguia deslocar-me muito rapidamente para a Áustria, para a Suíça, para França, para a Holanda. No início foi especialmente bom começar ali, senti a vantagem de estar a viver no centro da Europa. Principalmente para um projeto a começar, era muito mais fácil deslocar-me desde logo a Berlim”, a meca da música eletrónica na Europa por aqueles tempos.

Ao longo dos últimos 20 anos, a música de dança feita em Portugal e que é ouvida além fronteiras tem-se feito de diferentes tendências. Por um lado há uma abordagem à eletrónica que tem incorporado ritmos africanos na batida dançante, musicando a ligação portuguesa às suas antigas colónias e à afro-descendência — uma abordagem que teve a sua explosão internacional com o sucesso dos Buraka Som Sistema e que nos últimos anos deu origem a editoras como a Enchufada (de Branko e Pedro Da Linha) e como a Príncipe Discos (de Nídia, de DJ Marfox, DJ Nigga Fox e P. Adrix, entre outros). Por outro lado, há uma música de dança esteticamente mais próxima das tendências internacionais, da house e do techno que se ouvem nas discotecas de Chicago, Berlim, Nova Iorque, Detroit ou tantas outras capitais europeias.

Neste último campeonato, a Discotexas, editora da qual é um dos fundadores, tem feito sucesso talvez não apenas pela música, que é feita por produtores, DJs e instrumentistas (como Xinobi e Moullinex) cujo olhar para a música de dança foi antecedido por um interesse nas canções, no pop-rock indie, nas bandas. Outros dos trunfos serão a linhagem estética, a apresentação visual, a própria gestão de carreira que no caso destes artistas — ao contrário de muitos outros que se movem nas águas da música de dança inspirada na house e no techno — é feita como se eles se tratassem de artistas de pop-rock indie.

Nos artistas da Discotexas, e em Moullinex em particular, tem sido notória ao longo destes anos uma vontade de chegar a um público abrangente, ainda que indie. O formato escolhido para os trabalhos que promovem é o mesmo formato adotado pelas bandas indie ou por grandes projetos de sucesso na música eletrónica mundial — em conversa com o Observador, Luís Clara Gomes fala por exemplo dos The Chemical Brothers, dos The Prodigy, dos Daft Punk.

A explicação do gosto pelos álbuns: os Daft Punk, os Chemical Brothers e a vontade de contar uma história

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“Os meus heróis pessoais na música de dança fizeram sempre álbuns”, diz Luís Clara Gomes, explicando que em parte está aí a raiz do seu apreço por editar discos completos. “Desde os Daft Punk aos Prodigy, aos Chemical Brothers… são álbuns que marcam uma era. Se calhar muito deles aparecem num contexto de maxi singles mas depois há uma necessidade de contar uma história maior, se calhar organizar um período da sua vida. Os discos também me ajudam muito a fechar capítulos: o que tinha a dizer sobre este assunto, disse-o aqui e agora, está dito”.

Moullinex diz que “embaixador da música portuguesa”, ou “um dos embaixadores da música portuguesa” no mundo, termos que o Observador sugere para o descrever, são “títulos muito difíceis de aceitar”. Mas não renega o “especial prazer” que tem em “como português e como músico português, dar a conhecer a minha cultural e subverter as expectativas sobre o música de dança, sobre o que faz sentido na house e no techno”.

Essa subversão das expectativas já haverá de ser explicada, porque o novo disco de Moullinex explora também um novo caminho e uma nova procura de traço português na sua música, mas antes disso convém explicar que a expectativa que existia quanto a este Requiem For Empathy pode ser quantificada. “Hoje em dia o trabalho de artista independente é sobretudo olhar para estatística e a verdade é que nós, na Discotexas, estamos a viver desde 2019 um dos melhores períodos de sempre em termos de audiências e streams”, começa por dizer o músico, quando questionado pelo Observador se sente que a expectativa em torno deste seu disco novo é maior do que a que existia para os álbuns anteriores. “Calculando tudo o que é streaming global, o meu disco ainda não saiu — sai sexta-feira — mas já teve mais de um milhão de plays no Spotify, se somados os singles”.

O dia-a-dia de um músico independente: "Tens de ser também gestor, designer gráfico..."

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Como é o dia-a-dia de Moullinex? Diz que gosta “de trabalhar em estúdio” mas que muitas vezes faz música “num laptop num comboio ou num quarto de hotel”. E faz muito “trabalho de escritório, de gestão da editora, de preparar novos lançamentos, de conversar diretamente com plataformas de streaming como o Spotify e a Apple Music, de contacto com as diferentes equipas de relações com a imprensa que trabalham [com ele] aqui e lá fora”. A isto acresce “fazer capas” e “trabalhar na identidade gráfica”. Ou seja: “Para fazeres música independente tens hoje de ser também gestor, designer gráfico, gestor de redes sociais e relações públicas”.

Por um lado ”o streaming não é forma de subsistência para os músicos e isso vai ter de ser resolvido num futuro próximo”, entende Moullinex. Em muitos casos a escuta de música é apenas, hoje em dia, “um cartão de visita para as atuações ao vivo, que agora estão postas em causa pela pandemia”, assume. Mas por outro lado, Luís diz dever à internet a sua carreira e a oportunidade de fazer música de nicho a partir de Lisboa, ouvida por público de todo o mundo. O milhão de “plays” nos cinco singles já lançados, “Running In The Dark”, “Ven”, “Inner Child”, “Minina Di Céu” e “Ngoma Nwana”, não deixa dúvidas: Moullinex não pára de crescer no mundo.

As vozes que humanizam a eletrónica, uma nova lusofonia e latinidade nas canções

Quando deu por si com os primeiros temas deste Requiem For Empathy “na mão”, música que andava a compor como terapia e banda sonora do seu luto, Moullinex apercebeu-se que a atmosfera musical do disco era “nervosa, hostil”, que “do ponto de vista musical” — da instrumentação — o disco começava a parecer “bastante violento”, com um registo pesado trazido pelos “sintetizadores e drum machines”. O disco começava a assemelhar-se ao “mais eletrónico” que já fizera, explica ainda o autor.

Chegado aqui, Moullinex tinha duas decisões: ou mudava o tom da música que compusera, suavizando-a e “tornando o pano de fundo mais humano e orgânico, como se calhar fiz noutros álbuns”, ou acrescentava-lhe “contrastes”. Optou pela segunda opção e no álbum temos canções em que essa toada mais pesada, sombria e densa — o que diz ser um fundo “completamente árido” — se conjuga com “vozes frágeis e elementos acústicos como a hora, a harpa e cordas”.

O disco tem várias colaborações. No primeiro tema, “Inner Child”, a parceria é com GPU Panic, o que se repete no terceiro tema, “Running in the Dark” — e em ambos o canto suave e frágil torna mais acessível temas que se diria à partida serem mais melancólicos, introspectivos, sombrios até. Em “Minina di Céu”, a quinta faixa, é Sara Tavares quem, em crioulo cabo-verdiano, adoça com voz açucarada e tonalidade lusófona a canção.

No sétimo tema, “Ven”, é a voz sussurrada de Ekstra Bonus — uma cantora dominicana que vive em Los Angeles — que suaviza a toada instrumental e torna esta canção eletrónica mais acessível. Esta parceria em particular tem uma história curiosa: o tema, tal como a base instrumental de outros duas canções do disco, foi feito em Nova Iorque, em sessões onde Moullinex esteve “a trabalhar com diferentes pessoas e em diferentes projetos” e onde aproveitou para trabalhar também na sua música.

Ekstra Bonus “vive em Los Angeles há muitos anos e já não cantava em castelhano há muito tempo”, diz Moullinex. Numa das sessões em Nova Iorque, esteve presente e cantou uma espécie de maquete, apenas sons vocais sem letra, para servir de guia ao que se poderia vir a tornar “Ven”. E cantou, sem grandes preocupações, em castelhano e com um timbre mais baixo. “Gostei tanto do timbre… estava sussurrado para depois ser cantado da maneira correta, mas neste tom parecia que nos estava a cantar ao ouvido. Desafiei-a a cantar naquele timbre e em castelhano” e assim ficou, conta Moullinex.

Logo depois de “Ven” surge, no disco, “Ngoma Nwana”, em que a cantora moçambicana Selma Uamusse — que vive há muitos anos em Portugal — decidiu cantar num dos dialectos do seu país, a língua changana. E a terminar o disco aparece a voz de Afonso Cabral, que além de ser vocalista da banda You Can’t Win Charlie Brown tem também já um disco editado a solo (Morada), a cantar em “Hey Bo”, um dos temas mais emocionais do seu disco e uma aparente homenagem de Luís Clara Gomes ao seu avô.

Perguntamos a Moullinex se as canções em crioulo caboverdiano e em changana, resultantes de parcerias com Sara Tavares e Selma Uamusse, são uma tentativa de fazer uma ponte entre a pop eletrónica ancorada na house e techno em que se notabilizou e os ritmos africanos que têm sido incorporados na música de dança lusófona nos últimos anos. Ele responde que “sim e não” e alude ao “momento muito especial da música global” a que se assiste “no mundo”.

Que momento da música global é essa que motivou Moullinex a trazer mais lusofonia à sua música? “Estamos a assistir ao eixo anglo-saxónico a perder terreno na indústria da música”, aponta, dando o exemplo da cantora espanhola Rosalía que se “tornou uma estrela pop internacional com influências latino-americanas e a cantar em castelhano” mas também “o trabalho de editoras mais underground em vários pontos do mundo” que tentam incorporar e dialogar com a “tradição musical local” das suas regiões.

Garantindo que os convites a Sara Tavares e Selma Uamusse não pressupunham que tivessem de cantar nos idiomas escolhidos, Moullinex junta à equação Ekstra Bonus que canta em castelhano para dizer que está “muito contente por poder estar a fazer música eletrónica nesta altura em que deixou de haver um padrão e dogmas quanto à língua que as canções devem ter, quanto às cores e texturas que têm de ter e quanto à incorporação ou não de culturas” locais nas canções.

Luís Clara Gomes diz que ficou interessado pela “convivência entre um olhar para a cultural local e a contextualização dessa cultura no futuro”, moldando e levando para o presente histórias antigas e velhos ritmos, algo que tem notado como tendência musical em vários pontos globo. E acrescenta que “é muito bonito ver que às vezes não percebemos a língua do outro mas a carga emocional no que canta pode tocar-nos se estivermos disponíveis, é também a prova que a música de dança é uma linguagem universal”.

A forma como o álbum foi apresentado oficialmente aludia ainda a uma “combinação de artistas que redefinem a cena musical de Lisboa” e a “múltiplas expressões culturais” que têm na capital portuguesa “ponto de encontro”. Ao Observador, o músico explica: “Tinha criado aquele pano de fundo musical hostil, e algo artificial, de sintetizadores. Fui à procura de pessoas que pudessem humanizar a música. Para mim era importante ter diferentes manifestações de humanidade e nada melhor do que a diversidade de Lisboa para representar essa humanidade”.

Uma das coisas mais difíceis, conta, foi decidir a ordem das canções, o alinhamento do disco que organiza “o arco que se quer contar da história”. Moullinex, que diz que por ser DJ já está “habituado a contar histórias, a fazer longas-metragens de duas, de três, de quatro horas”, garante que teve dificuldades aqui e que chegaram a ser ponderados “sete ou oito alinhamentos diferentes”.

Uma coisa sabia sobre a ordem dos temas: se existem no disco “momentos sombrios e luminosos”, era importante ter a meio uma pausa celestial e cósmica, um “momento em que ascendemos a um vácuo, em que ficamos a flutuar para depois voltar a mergulhar” nos ritmos dançantes. E Moullinex encontrou “Coral”, tema que nasceu porque muitas vezes põe-se a tocar os “Corais” de Bach — “quase um manual da música barroca” — no piano, o que lhe serve “tanto de exercício como de uma espécie de meditação”. “Lembrei-me de trocar os timbres do piano por sintetizadores. Emocionalmente foi uma espécie de mantra para me ajudar a meditar. Há cinco anos teria feito isto com um beat, com mais arranjos, com voz. Aqui fiz um exercício de subtração, de não ser maximalista, de libertar-me das minhas muletas habituais”.

A dança como terapia espiritual — e a falta que nos faz

Se fazer esta música eletrónica foi para Moullinex uma regeneração pessoal, a sua saída de um luto, não é de hoje que o DJ, produtor musical e instrumentista português vê a dança em conjunto como uma possível terapia. “Já via a pista de dança e a experiência coletiva da música como um ritual terapêutico, seja em espetáculo, seja em DJ set, seja em outro tipo de artes performativas”, começa por dizer.

Neste cenário de pandemia, com as discotecas e os clubes de DJs encerrados há mais de um ano, essa falta pode estar a ser especialmente sentida, admite: “A falta que esses rituais nos fazem se calhar é uma das coisas que contribui para as estatísticas de problemas de saúde mental, associadas ao isolamento, ao stress e aos traumas causados pela pandemia”.

Na música que faz, mas também — adianta — “nas relações humanas” que tem —, Luís Clara Gomes valoriza as experiências partilhadas como processo de regeneração coletivo. Dançar pode ser uma delas. A ideia motriz é que “podemos atravessar juntos momentos menos bons, difíceis e desafiantes” e essas experiências partilhadas podem ser “catárticas” e é possível “sair delas melhorado”. No caso deste disco, em particular, isso aconteceu para o seu criador mas se o álbum não foi lançado mais cedo foi também porque Moullinex achou que podia estar excessivamente e erroneamente colado à realidade: “Não queria associá-lo ao meu disco de pandemia porque não o foi. Parecia uma profecia auto-cumprida. Esperei para se ver uma luz ao fundo do túnel, um horizonte melhor, para o editar”.

Na forma como a música de dança é vista, Moullinex vê ainda alguns preconceitos por resolver — é preciso, diz, equipará-la mais à restante produção musical. E dá o seu exemplo: “Normalmente como DJ fechei sempre festivais e é uma coisa que gosto imenso de fazer. Quando me apresento com banda também sou muitas vezes programado no final das noites. Gosto disso mas acho que deveria haver espaço para a legitimação da música de dança como algo que não é um parente pobre do resto das músicas. Só porque tem um propósito funcional não quer dizer que deva ser descurada ou menorizada”, aponta.

Não por acaso, essa legitimação da pista de dança em espaços mais institucionais é algo pelo qual tem lutado: o disco anterior foi apresentado no MAAT, em Lisboa, numa performance que não era apenas musical e este novo álbum será mostrado ao vivo em duas salas emblemáticas, a Culturgest (Lisboa) e a Casa da Música (Porto), respetivamente a 4 e 9 de junho. É também um programa de intenções: esta música pode ser ouvida mesmo sem ser dançada, mesmo sem ser fora de horas e na discoteca.

Será até errado ver o percurso de Luís Clara Gomes como o de um produtor típico de música de dança. Moullinex diz que cresceu “com canções, com o Sérgio Godinho, com o Chico Buarque e com os Pink Floyd”. Talvez isto desvende em parte o seu apreço pelo formato álbum e pelas atuações com banda, embora também aprecie fazer DJ sets. “Com o gosto pelos Pink Floyd veio também o interesse pelos álbuns conceptuais, pelos discos como longas-metragens”, refere ainda.

"Só mais tarde descobri a música de dança porque no início não a conseguia compreender. Se calhar numa me tinha apaixonado numa pista, nunca tinha percebido o poder transformativo e o exercício terapêutico do loop, da música repetitiva."
Moullinex

Nos primeiros anos enquanto ouvinte de música mais interessado e atento, como melómano, a música de dança e a eletrónica não eram ainda uma paixão assolapada. “Só mais tarde descobri a música de dança porque no início não a conseguia compreender”, diz. “Se calhar numa me tinha apaixonado numa pista, nunca tinha percebido o poder transformativo e o exercício terapêutico do loop, da música repetitiva. Hoje acho que tenho esses dois paralelos: por um lado gosto de canções num contexto de um álbum, por outro também gosto do Do It Yourself e da ideia funcional da música de dança, que me faz lembrar a cultura punk porque é muito imediata”.

Foi na música de dança, porém, que Moullinex acabou por construir uma carreira musical. E foi também este o setor musical mais afetado pela pandemia que chegou há um ano: se os concertos já voltaram ainda que a meio gás (e puderam regressar também no ano passado, no verão, com restrições), grande parte dos clubes noturnos e as discotecas estão de portas fechadas desde março de 2020. “O nosso setor foi o primeiro a fechar e há-de ser dos últimos a reabrir em pleno. Estou certo que para lá do impacto económico no setor, que já é frágil, todo o ecossistema está posto em causa”, diz Luís.

O ecossistema que Moullinex vê “posto em causa” tem muita gente: “músicos, DJs, programadores e trabalhadores das salas, técnicos, pessoas que fazem as comunicações à imprensa, aqueles que trabalham em agências”. Quando se fala sobretudo em “estruturas independentes”, em salas e clubes com programação musical regular “para 200 a 500 pessoas” de lotação, fala-se “quase em negócios de família”, nota o produtor e músico. “O impacto vai sentir-se por muito tempo. E também me assusta muito o impacto emocional e psicológico numa geração de músicos a começar, miúdos que gostavam de tentar a sua sorte a fazer música e se calhar vão desistir. Esta pandemia vem destruir muitos sonhos”.

Apesar das dificuldades inevitáveis para quem ficou com a agenda de concertos e DJ sets parados, de quem ficou sem poder trabalhar, Moullinex reconhece que há quem esteja ainda pior — e significativamente pior — no seu setor. “Houve situações que me foram relatadas de fome. Falo mesmo de problemas de fome sentidos por técnicos do setor. E há colegas meus DJs que tiveram de mudar de cidade, que abandonaram a casa porque não podiam pagar a renda…”, começa por dizer. Faz uma pausa e retoma: “Para mim isto é especialmente emocional. É-o para toda a gente que vive com muita paixão a cultura da música de dança como algo que para além do nosso sustento é também uma fonte de bem estar. E ainda há toda a gente que procura essa fonte de bem estar, que sai à noite e encontra o escape para o dia-a-dia na pista de dança. Acaba por ser o nosso ritual espiritual semanal”.

Moullinex confessa-se até “enraivecido” por “sentir que mais uma vez a cultura é vista como algo supérfluo e acessório, num país que está tão virado para o turismo e para os serviços”. E o que o turismo externo procura em Portugal, defende ele, é muita coisa, “incluindo toda a cultura que temos a oferecer, a oferta patrimonial, cultural”. Continuará a ser assim depois da Covid-19? Enquanto houver uma pista de dança por ocupar e canções eletrónicas como estas — novinhas em folha — por dançar, valerá a pena resistir. E se não houver, só resta uma solução: construir o mundo todo outra vez.

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