795kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Não há mulheres puras na história fotografada por Cindy Sherman

Os estereótipos femininos são o motor de um trabalho iniciado nos anos 70. a exposição “Metamorfoses”, em Serralves até 16 de abril, mostra a capacidade do autorretrato em simular outras identidades.

Ela própria era assim. Gostava de se disfarçar. Num único dia, podia vestir-se de maneiras tão distintas que quem a encontrasse mais do que uma vez não perceberia que estava a falar com a mesma pessoa. No estúdio, onde trabalha sozinha desde sempre e se fotografa até à exaustão na pele de mil e uma outras mulheres, diz quem sabe, que cada vez que se reconhece na imagem a destrói imediatamente. De facto, ao percorrermos toda a sua obra, o difícil não é encontrar as mulheres que fizeram a história, aquelas com que nos cruzamos na rua, as heroínas do cinema, as grandes individualidades sociais, as personagens da cultura ocidental, as mães e as filhas, ou mesmo nós mesmas.

O difícil, sim, é encontrar Cindy Sherman, ver-lhe o rosto, conhecer-lhe o sorriso – até porque nestas fotografias os modelos não sorriem –, o difícil é perceber onde está, em carne e osso, a mulher que revolucionou a fotografia quando, decorria ainda a década de 70 do século passado, decidiu ser ela própria outra pessoa e posar para a sua máquina fotográfica na pele das mulheres que conhecia da cultura de massas que lhe entrava pela porta adentro e pela porta adentro de todos nós, ocidentais, através da publicidade, do cinema, da imprensa, da televisão.

Era o seu modo de dizer não a essa gigantesca avalanche de imagens fabricadas a funcionarem a um só ritmo e a criarem a um só tom aquilo que o homem assimilaria como culturalmente seu. Contra essa homogeneização, Cindy Sherman tomou um dos papéis mais importantes da arte norte-americana, sobretudo enquanto mulher. E denotava, já nessa altura, uma capacidade de entender a fotografia como forma de luta contra uma massificação que chegava precisamente através dela, através do abuso da sua utilização. Pictures, assim se chamava o grupo artístico ao qual o seu nome ficou associado, ao lado de Sherrie Levine, Richard Prince, Robert Longo e Louise Lawler, começou por ser o ponto de partida para denunciar essa abundância fotográfica que definia o mundo.

Como corpo de trabalho inicial, Cindy Sherman foi buscar a mulher, já se sabe, primeiro a mulher banal e a banalidade do seu tipo social. A série “Bus Riders” (1976) bem o demonstra. São fotografias de tipos de mulheres que esperam o autocarro na paragem e que reconhecemos pela postura, a pose, o cruzar de pernas, o penteado, o casaco, a revista que leem, a mala que levam. A preto e branco, claro está, são o prenúncio do que virá e são, logo ali, o espelho social que aceitamos através da imagem.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Logo a seguir, outra série, “Film Stills” (1977-80) prossegue a tarefa e torna-se absolutamente incondicional na história da fotografia e da arte. Sherman fotografa-se a ela própria, mais uma vez e sempre, como se da personagem dos filmes de série B dos anos 50 e 60 se tratasse. O resultado é em cada fotografia sobressair o estereótipo feminino que tanta gente levava ao cinema. Pode ser a sedutora, a doméstica enigmática, a mulher da Nouvelle Vague, ou aquela personagem de Hitchcock.

As fotografias deram que falar, dão que falar ainda hoje, e Rosalind Krauss, a grande professora de história da arte moderna e contemporânea e crítica, deu-lhes um título, chamou-lhes “cópias sem originais”. Cópias, porque copiavam uma personagem cinematográfica tipo que todos reconheciam, e sem originais, porque não havia nelas a possibilidade de identificação ipsis verbis com o seu original, ou seja, nenhuma fotografia indicava por inteiro a personagem que copiava.

Estava lá o tipo, o espírito, o género, mas não estava lá a personagem exatamente como ela era. Essa é a mestria de Cindy Sherman que ficou intocável até aos dias de hoje. E essa é a mestria de Rosalind Krauss ao conseguir definir o que a fotógrafa fazia ainda antes de grande parte da sua produção ter acontecido.

Ora, estas mulheres impuras, porque não originais, e daí o título deste artigo, “Não há mulheres puras”, são um manancial de trabalho a desflorar na obra que Serralves agora mostra. Sem esta ordem cronológica a que a história obedece, a exposição põe em destaque a maneira como Cindy Sherman se soube metamorfosear ao longo de uma carreira com mais de 40 anos. E joga acima de tudo com a capacidade interpelativa das fotografias da norte-americana para com o público.

Em grande, porque grandiosamente e com imagens de grande formato, a exposição, com curadoria do diretor da casa, Philippe Vergne, a partir da coleção de obras da autora pertencente à The Broad Art Foundation, de Los Angeles, começa por instigar ao desafio, colocando o espectador perante aquilo a que Sherman chamou de Retratos Históricos, nada mais nada menos do que cópias incompletas, ou cópias alternativas, ou ainda cópias misturadas, de pinturas famosas da História da Arte, situadas sensivelmente entre os séculos XVI e XIX.

A imagem inicial está lá, mas destorcida quer pelos acessórios errados, quer pelos objetos a mais, quer pela semelhança disruptiva dos materiais utilizados. O espectador, convidado a adivinhar quem é quem, interage com cada imagem e com a sua própria bagagem artística, esquecendo, por momentos, que está perante o mesmo modelo fotográfico e perante uma sucessão de autorretratos.

De Rafael a Fouquet, de Caravaggio a Ingres, estão lá as obras dos Velhos Mestres e é para elas que o olhar vai. No entanto, o que é de salientar está inscrito no rigor da composição, no pormenor, no detalhe, na ínfima atenção à luz, que fazem de Cindy Sherman uma fotógrafa de monta. A série reporta ao final dos anos 80, início dos 90, altura em que Cindy Sherman vivia em Roma e lidava tu cá, tu lá com a história da pintura, e, mais precisamente com a história da representação na História da Arte. Quem era representado, como era representado, que poses adquiria e que significado tinham elas? Da religião à aristocracia, que individualidades tinham o privilégio da representação?

E é daí que Sherman passa para toda uma panóplia de caracteres sociais à escala do seu poder, financeiro, cultural, social, para se espraiar em todas as classes da pirâmide no tempo atual. Que mulher posso eu ser? O que caracteriza cada mulher? Que subterfúgios usa ela para ser esta ou aquela mulher? Qual a relação entre o ser e o parecer? A realidade e a ficção? Não vivemos todos entre esses dois mundos? E não é a nossa imagem a mãe de todas as metamorfoses? E ao mesmo tempo a maior de todas, a vaidade? A mesma com que tiramos selfies atrás de selfies e as colocamos nas redes sociais, quais museus modernos, ecrãs de publicidade e palcos de poder? É esta a atualidade de Cindy Sherman nos dias de hoje. A forma como se antecipou a esta realidade foi pura ficção, mas agarrou todo o Zeitgeist das últimas décadas.

Em Serralves, estão um centena de trabalhos, divididos por várias salas, que acompanham todos os estádios da obra da fotógrafa, a culminar num mural inédito, feito de propósito para a exposição do Porto. Quatro metros de altura que exibem cinco personagens de todos os tempos, mas que já não conseguimos olhar nos olhos, de tão agigantadas se apresentarem. Elas olham o Parque e nós olhamo-las com todas as teorias da imagem na bagagem. Sabemos cada vez mais que a palavra é vã, e percebemos, ao longo desta visita, que a projeção da imagem será cada vez maior.

Já descodificámos máscaras e mascarilhas, personagens de todos os tempos, já esquecemos que o mundo pode ser a preto e branco e já voltámos a lembrarmo-nos, misturámos cabeleiras, maquilhagem, lenços, próteses, vestidos, sapatos, cintos, óculos, descobrimos as mulheres poderosas do pós I Guerra Mundial, negámos o olhar direto dos perturbados e perturbadores “Palhaços” (2003-2005), experimentámos o passar do tempo sem ler Oscar Wilde e o seu Retrato de Dorian Gray, espreitámos o outro lado da fotografia de moda, vimos o que ela pode e não pode ser.

E, ao sair, reparamos nas palavras de Agustina Bessa-Luís estampadas na parede: “Elas estão continuamente sujeitas a metamorfoses, a que chamaremos ficção, mas que é o próprio instrumento da realidade…” E saímos com a imagem de Andy Warhol na cabeça. Foi ele quem venceu a guerra. A da realidade contra a ficção e vice-versa.

Assine o Observador a partir de 0,18€/ dia

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Vivemos tempos interessantes e importantes

Se 1% dos nossos leitores assinasse o Observador, conseguiríamos aumentar ainda mais o nosso investimento no escrutínio dos poderes públicos e na capacidade de explicarmos todas as crises – as nacionais e as internacionais. Hoje como nunca é essencial apoiar o jornalismo independente para estar bem informado. Torne-se assinante a partir de 0,18€/ dia.

Ver planos