Enviada especial do Observador em Munique, Alemanha
Entre os dias de Budapeste e a chegada a Munique, este quase interrail chamado Euro 2020 já começou há uma semana, altura em que deixámos para trás Portugal para seguir a Seleção que o representa na competição. Quer isto dizer que, entre os dias de Budapeste com muito goulash e uma chegada a Munique que envolveu um pouco típico prato asiático, há uma semana que a gastronomia portuguesa não faz parte das ementas do almoço ou do jantar. Por isso mesmo, a ideia de ir fazer uma refeição a um restaurante português, com o pretexto de uma reportagem, acabou por surgir naturalmente.
Esta quinta-feira, encontramos o Restaurante Portugal numa esquina de Munique, a cerca de 40 minutos a pé da Marienplatz, uma das principais praças da cidade alemã. Cá fora, a aproveitar o sol e o calor que ainda se fazem sentir apesar de a tarde já estar a terminar, muitos desfrutam da comprida esplanada do estabelecimento. Entramos, com passos pequeninos e cautelosos porque é preciso passar por duas salas iniciais antes de chegar à zona do balcão, e somos desde logo abordados por um sorriso e várias perguntas em alemão que interrompemos com um simples e clássico “português?”. “Ah, sim, claro, português! Estava só a perguntar se reservou uma mesa lá para fora, porque está tudo cheio”, diz-nos o anfitrião, que depressa percebemos que é o dono do restaurante. Respondemos que não e que só queremos jantar, lá dentro, a ver os últimos minutos do Dinamarca-Bélgica que ainda está a decorrer.
O espaço não podia ser mais português. Sentamo-nos na sala principal, junto ao balcão e a uma das televisões: existem cachecóis da Seleção alusivos ao Mundial do Brasil, algumas guitarras, quadros com o Palácio da Pena, o Castelo de São Jorge e o Padrão dos Descobrimentos, galos de Barcelos e até uma camisola antiga do Benfica, emoldurada. O elemento mais característico da sala, porém, era outro e estava bem à vista — uma arca frigorífica que continha apenas dois produtos, uma caixa de minis de cerveja e vários baldes enormes de tremoços.
A ementa demora segundos a chegar à mesa e a escolha também demora pouco. Afinal, a lista tinha um óbvio Bacalhau à Brás, aquele prato que não existe em qualquer outro lugar do mundo e que até é, curiosamente, a refeição preferida de Cristiano Ronaldo. Um pormenor que contamos, tanto aos três funcionários que estão atrás do balcão como a um outro português sentado numa mesa próxima, garantindo que é o prato preferido dos campeões. “Ele que coma muito para sábado, então!”, atira o português, sem tirar os olhos do telemóvel, onde tenta alterar uma aposta que havia feito antes do final do jogo da Dinamarca com a Bélgica.
Num restaurante português em Munique, a escolha da bebida é óbvia: uma cerveja, até porque continua a estar muito calor. Do lado de lá do balcão, vem o grito habitual sobre qual das duas principais marcas portuguesas de cerveja pretendemos. Optamos e o dono do restaurante, com um sorriso, garante que “a resposta está sempre certa desde que não seja cerveja alemã”.
Antes de precisarmos de perguntar o nome do anfitrião deste jantar português, as circunstâncias fazem questão de nos contar. Entram três homens, claramente já familiarizados com o espaço, e um deles atira: “Olá, senhor Manuel Monteiro!”. Do outro lado do balcão, o dono responde na mesma moeda: “Olá, senhor Manuel Monteiro!”. Uma espécie de “Sr. Feliz e Sr. Contente” que nos deixa confusos mas que Manuel Monteiro, o cliente, se apressa em explicar a alguém que não faz parte da prata da casa. “Temos o mesmo nome, por isso é que fazemos esta brincadeira”, revela. Os três homens sentam-se e pedem o jantar para levar para casa, para além de umas cervejas para matar o tempo.
É nesta altura que um dos funcionários de Manuel Monteiro, que percebemos entretanto ser filho do dono, chama o pai para lhe perguntar se estão mesmo completamente cheios para sábado — o dia do jogo entre Alemanha e Portugal, a contar para a segunda jornada da fase de grupos do Euro 2020, onde cada golo da Seleção Nacional significa uma cerveja grátis para todos os clientes. Manuel responde que sim mas pergunta quem é que está ao telefone.
É o outro filho, que pede uma mesa para assistir à partida com alguns amigos. “Não dá, filho. Não tenho mesmo espaço, estamos cheios, até já escrevi no Facebook que estamos cheios. Se ainda fosses só tu, ficavas aqui ao balcão, mas assim não dá. Agora, tenho sempre espaço para vires trabalhar…”, brinca Manuel, provocando uma gargalhada a todos os que estavam presentes na sala. O Bacalhau à Brás chega, servido numa dose avantajada, e aproxima-se a hora do início do Países Baixos-Áustria. O apito inicial do encontro, associado também ao facto de muitas pessoas terem entrado entretanto para jantar, leva o dono do restaurante a ligar o projetor que permite ver os jogos num ecrã gigante numa parede inteira. Uma espécie de ensaio geral para sábado.
Os outros três homens, nos quais se inclui o outro Manuel Monteiro, acabam por decidir ficar e jantam diretamente das caixas de take-away que já estavam prontas. Foi o início do jogo dos Países Baixos que os fez mudar de ideias e de lugar, já que todos passaram para a frente da televisão. “Vivemos em Amesterdão. Só estamos aqui em Munique durante umas semanas porque temos cá um trabalho. Torço por Portugal, também gosto muito de França porque a minha mãe falava francês em casa mas gosto sempre de quando os Países Baixos ganham”, conta-nos Manuel, que torce vivamente pela “Laranja Mecânica” e vibra com o golo de Depay, de grande penalidade, que abre o marcador contra a Áustria. É angolano, natural de Luanda, mas chegou a viver em Portugal antes de rumar a outros países.
“Saí de Angola em 1998 e fui para Lisboa, vivi na Margem Sul. Mudei-me para Londres dois anos depois, em 2000. 25 de agosto de 2000, lembro-me como se fosse hoje. Mas só estive lá uns tempos e depois fui logo para a Holanda, fazer este trabalho que faço agora. Faço bom dinheiro mas não compensa, estou cansado. Vou agora a Portugal em agosto, porque tenho lá uma casa, mas a Luanda só consigo ir assim um dia de cada vez”, revela, detalhando depois que é especialista na insonorização de edifícios e que é precisamente isso que está a fazer em Munique, nos três prédios imediatamente depois do Restaurante Portugal. “Estamos aqui há três meses e normalmente vimos aqui comer, sempre é comida portuguesa. Não é comida de casa, nunca é a mesma coisa, mas é comida portuguesa”, acrescenta, antes de nos explicar que um dos colegas que o acompanha é, na verdade, venezuelano.
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Um venezuelano que torce apaixonadamente pelos Países Baixos e que não tem qualquer receio em explicar porquê. “Este país já fez mais por mim do que o meu próprio país”, atira Carlos, com um sorriso que não deixa de camuflar muita tristeza. Com o jogo já na segunda parte e a vantagem holandesa a manter-se, Manuel Monteiro decide pedir um prato de tremoços para terminar a cerveja. Carlos, totalmente confuso, pergunta o que é aquilo: “Vem do mar, é isso?”, questiona, provocando uma nova gargalhada geral. Ultrapassada a dificuldade de perceber como comer o tremoço, o venezuelano garante que até gostou, mas decide não voltar a provar.
Entretanto, em Amesterdão e já depois de um novo golo de Dumfries, soa o apito final. Os Países Baixos vencem a Áustria e estão apurados para os oitavos de final do Euro 2020. Manuel Monteiro festeja, assim como os restantes colegas de profissão. Pedimos a conta, que ainda traz uma conversa sobre as discrepâncias no processo de vacinação de Portugal e Alemanha, já que um dos funcionários já está imunizado e ainda não tem 30 anos. Despedimo-nos e prometemos voltar antes de voltarmos a partir para Budapeste. Só não pode ser no sábado — o dia em que o dono do Restaurante Portugal tem o estabelecimento tão cheio para ver o jogo entre a Alemanha e Portugal que nem conseguiu arranjar uma mesa para o filho.