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O início dos Rádio Macau: "Tudo o que aconteceu não é normal. Com que dinheiro? Não importa. Ainda hoje não sabemos"

Como se conheceram. A cassete que não puderam deixar na editora EMI. E as queixas que levaram Paulo de Carvalho a despedi-los de um bar. Xana e Flak contam como nasceram os “Rádio Macau” há 35 anos.

Julho de 1984. É editado o primeiro álbum dos Rádio Macau. São (muito) jovens, irreverentes, vêm dos arredores de Lisboa com a força do punk, do hard rock, mas com uma sensibilidade pop que marcaria os anos 1980 da música popular portuguesa. O formato é clássico: Flak na guitarra, Alexandre Cortez no baixo, Ramalho na bateria e Xana na voz. Xana tinha então dezoito anos e, por ser a vocalista, tornava-se num dos rostos de uma segunda fase do rock português, depois de uma primeira vaga com nomes como Rui Veloso, Xutos & Pontapés e GNR.

No álbum homónimo estão canções como “Bom Dia Lisboa”, “Até O Diabo Se Ria”, “É Tão Fácil”, “Um Dia A Mais” ou “A Noite”, que talvez nunca tenham ganho a popularidade de “Anzol” ou “Amanhã É Sempre Longe Demais”, mas que acarretam a energia e a urgência de uma geração. E, claro, de um grupo de amigos da linha de Sintra que queria fazer parte de um país em transformação. As canções de “Rádio Macau” ainda existem no nosso tempo, não porque pouco tenha mudado – como Xana diz, a brincar, a dado momento nesta entrevista – mas porque o rock, quando é urgente, fica urgente para sempre. E Rádio Macau, o álbum, era urgente. E existiu num tempo de urgência.

Trinta e cinco anos depois estivemos à conversa com Xana e Flak sobre como tudo aconteceu, desde os tempos em que se conheceram, passando pelo contrato com a EMI/Valentim de Carvalho: como foram os anos 80 com os Rádio Macau e para os Rádio Macau.

[“Bom Dia Lisboa”, os Rádio Macau em 1984:]

A Xana foi a primeira personalidade que via diariamente porque ambos vivíamos em Alcântara, ali no início dos anos 1990. Eu devia ter para aí sete, oito anos, e lembro-me de o meu irmão e os meus primos falarem da Xana dos Rádio Macau, que eu via na televisão…
Xana:
Nessa altura também vivia o Miguel Escada e o João Escada, que se tornaram técnicos de som dos Rádio Macau.

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Por causa dessa relação, foi das primeiras bandas a quem prestei atenção.
Xana: Mas com sete anos?

Sim, porque passava na televisão. Não havia muitas opções, o que passava ficava facilmente na memória. Claro que só mais tarde descobri que a “Amanhã É Sempre Longe Demais” era um original vosso. Conheci primeiro a versão dos Resistência.
Xana:
Houve uma altura que as pessoas pensavam que a música era dos Resistência.

Como muitas músicas dos Resistência.
Flak:
Também uma vez ouvi essa.

Como é que vocês se conheceram?
Xana:
Tu conheceste-me em casa… tinha eu oito, ou nove anos. Mas não me lembro muito bem de ti nessa altura.

Flak: Mas eu comecei a tocar primeiro com o Alexandre [Cortez]. Tínhamos uma banda, primeiro tocávamos rock’n’roll, rock progressivo.

E tinham que idade?
Flak:
Quinze, dezasseis anos. Tocávamos no liceu, por ali. A dada altura chamou-se Crânio, que foi ideia do Alex, que fez um cartaz, com uma caveira, um crânio… Ideias de miúdos de 15 anos. A Xana ainda cantou nos Crânio. A certa altura decidimos mudar de nome, porque as coisas começaram a evoluir. Foi na altura que fomos à EMI/Valentim de Carvalho mostrar as demos. Mudámos o nome para Rádio Macau um ano antes da gravação do primeiro disco. Fizemos uma festa no Teatro Experimental de Cascais para apresentar a banda com o novo nome, nova formação. Mas nessa altura mudámos muito. A base foi sempre eu, a Xana e o Alex. Até estabilizarmos, depois o Filipe Valentim entrou mais tarde. Mas nessa altura tínhamos outros guitarristas, outro baterista, ainda não tínhamos os teclados. Os Crânio tocaram muitas vezes em quarteto, bateria, baixo, guitarra, com a Xana a cantar. Antes da Xana tivemos muitas aventuras. Éramos miúdos.

"Por vezes questiono-me como foi possível toda aquela sequência de eventos, a exigência que tínhamos de responder com aquela rapidez. Tudo o que se passou nesta época, em 1983 e em 1984, a gravação do disco, a vivência em Lisboa, era tudo inesperado, rápido. Era a vida num só dia a acontecer."
Xana

Xana: Mas onde nos conhecemos foi no liceu, na Portela de Sintra. Temos uma diferença de idade de quatro, cinco anos. Eu tinha treze anos. Tu e o Alex eram da mesma turma?

Flak: Não.

Xana: Mas eles andavam no décimo primeiro e eu no sétimo ano. Foi aí que nos conhecemos, através de uma amiga, a Bárbara. Falou comigo no intervalo, que era amiga do Flak e do Alex…

Flak: Era a namorada do Rui…

Xana: Era a namorada do Rui Hippie.

Flak: Que no princípio tocava connosco. Era o guitarrista da nossa banda.

Xana: Mas vocês estavam na Associação de Estudantes?

Flak: Não

Xana: Mas não eram bastante ativos politicamente? Tinha essa sensação…

Flak: Conheci o Alex na UEC, União dos Estudantes Comunistas. O Rui Hippie também parava lá.

Gosto que se lembrem que o Rui era o Rui Hippie. Gosto de como essas coisas do Secundário ficam.
Flak: Era a alcunha dele, o Rui Hippie.

Xana: Tínhamos só uma relação de amizade e foi o Flak que achou que deveria cantar. E pediu-me, experimenta cantar esta música, uma dos Beatles.

Qual dos Beatles?
Xana:
Uma das mais conhecidas, provavelmente a “Let It Be”. E cantei, nessa altura teria 15 anos. E depois há ali uma circunstância em que passamos a viver todos na mesma casa… O Flak fazia música, sempre gostou muito de fazer música, o Alex sempre gostou de realizar projetos. O Vitinha… houve uma altura em que o Vitinha cantou também.

Flak: Porque ele escrevia as letras.

Xana: Ele sofre de asma e tinha alguns problemas na interpretação das canções.

Flak e Xana fotografados em Lisboa em 2019 (foto de Francisco Romão Pereira/Observador)

FRANCISCO ROMÃO PEREIRA/OBSERVADOR

Flak: Só para colocar alguma sequência na história. Nessas primeiras bandas, eu tocava bateria, o Alex sempre tocou baixo, o Rui Hippie tocava guitarra e depois tivemos vários guitarristas. Só que entretanto eu fiquei sem bateria, é uma história longa. Tinha uns amigos que compram material e tal, tínhamos de pagar o material e nunca pagámos… e acabámos por nos separar. E comecei a tocar guitarra, principalmente porque gostava de compor canções, sempre quis fazê-lo e a bateria não dava muito jeito para compor. Precisava de qualquer coisa mais palpável para explicar o que pretendia. Comecei a tocar guitarra, o Alex continuou no baixo e foi nessa altura que perguntei à Xana se ela queria cantar. O nosso primeiro vocalista foi o Vitinha, que era um amigo nosso, nós éramos de Algueirão, ele era de Rio de Mouro, havia ali uma onda… por um lado havia em Algueirão/Mem Martins uma onda musical, havia muita gente a tocar. Farinha Master, Crise Total, havia várias bandas lá. Mas o pessoal de Rio de Mouro tinha uma onda de escrita. Porque havia um amigo deles, mais velho, tem hoje setenta e tal anos, que vive agora em Leiria, que foi para lá viver e era o poeta beat: começou a levar os livros do Ginsberg, do Kerouac, e pôs os miúdos todos a escrever no café. Havia um espírito literário em Rio de Mouro. Conhecemos o Vitinha e aquilo fazia sentido, a gente tocava e ele escrevia. Começámos a escrever canções a partir dos textos do Vitinha, do Pedro Malaquias, que era um amigo do Vitinha que tinha lá vivido, mas já não vivia. O Vitinha começou a cantar connosco, só que era asmático e não tinha jeito para cantar. E perguntámos à Xana se ela queria e ela disse: eu consigo.

Xana: Gostava de conviver. Em miúda nunca sonhei ser música. Foi algo que aconteceu.

Flak: Os nossos primeiros concertos tinham dois vocalistas, a Xana cantava e o Vitinha entrava no encore.

Xana: Não foi muitas vezes.

Flak: No Rock Rendez-Vous, na Festa do Avante. Isto foi em 1983, não foi tão para trás. O Vitinha foi sendo afastado, depois passou a roadie [risos]

Xana: Mas continuou a escrever.

Flak: Era o nosso letrista principal.

Xana: Por vezes questiono-me como foi possível toda aquela sequência de eventos, a exigência a que tínhamos de responder com aquela rapidez. Abriu-se uma espécie… há uma abertura de um caminho, que por vezes percorremos em linha reta sem grandes sobressaltos, outras vezes aos trambolhões, outras vezes com alguma criatividade. Tudo o que se passou nesta época, em 1983 e em 1984, a gravação do disco, a vivência em Lisboa, era tudo inesperado, rápido. Era a vida num só dia a acontecer.

Flak: Uma coisa que fazíamos antes de 1983, antes de Rádio Macau solidificar, tocávamos só os dois em bares.

Em que bares em Lisboa?
Flak:
O Mosaico, que era no Largo da Graça. O Pintado de Fresco, que era do Paulo de Carvalho.

Xana: Só foram três sessões.

"A génese dos Rádio Macau foi juntar o que gostávamos de ouvir, rock, new wave, pós-punk com a música portuguesa. Nunca cantámos em inglês, nem sequer experimentámos. O que faz um bocado os Rádio Macau é essa mistura… da música portuguesa com o que gostávamos."
Flak

Flak: Aí fomos despedidos. Tocávamos em bares, para ganhar algum dinheiro, mas só tocávamos músicas nossas. Só nos bares que nos achavam piada, éramos miúdos, a Xana tinha 15, eu tinha 18, as nossas músicas eram um bocado fora. Quando entrámos para a EMI, normalizámos um bocado as canções, antes disso tínhamos canções fora e havia quem achasse piada a isso. Mas noutros a coisa não resultava. No Pintado de Fresco, o Paulo de Carvalho disse que gostava muito de nós, mas que tinham tido algumas queixas e tal.

Xana: No Mosaico estivemos uns quatro meses. O João Gobern, que era jornalista na altura, conheceu-nos aí. Ainda antes do primeiro disco.

Flak: Já tínhamos uns fãs antes dos primeiros discos.

Que era normal nessa altura, não? Tinha que se ver as bandas, para se conhecer…
Xana: Mas não havia espaços para tocar. Isto era uma forma de ganhar algum dinheiro. Eram os espaços que existiam, havia música ao vivo nos bares. Na altura não havia muitos espaços, daí o Rock Rendez-Vous…

Flak: E havia os concertos na ESBAL, fazíamos os concertos no pátio. Isso ainda foi antes do primeiro disco, quando conhecemos os Croix Sainte. Ficámos amigos do Luis San Payo, depois vínhamos a casa dele em Alvalade, ele tinha imensos vinis. Íamos sempre a casa de quem tinha mais discos, as novidades…

Já que estamos a falar disso: que música ouviam na altura e que música vos unia?
Xana:
Fazíamos escuta de discos literalmente. E com toda a atenção. Sentávamo-nos, um grupo de amigos, colocava-se o vinil e ouvia-se com atenção, ouviam-se as letras. Faziam-se sessões de escuta e discutiam-se os discos.

Flak: Comecei a ouvir música dos 1970, o que se ouvia na altura, as bandas de rock progressivo, os Gentle Giant, Yes, Genesis, Pink Floyd, depois aquelas coisas mais hard rock, os Led Zeppelin, os Deep Purple. Depois começou a aparecer o período punk… tínhamos uma relação distante com essa música, porque não era fácil ter esses discos.

Xana: O meu irmão ouvia Ramones. Lembro-me de ouvir coisas desse tipo…

Flak: Mas eram coisas que ouvíamos do programa do António Sérgio, os Clash, os Sex Pistols, era uma coisa vaga.

Xana: Mas era de Bowie e Lou Reed que eu gostava pessoalmente. Eu não tinha uma relação com o rock sinfónico, de fusão. Nunca me identifiquei muito. Achava graça a Gentle Giants. Gostava do rock mais de intervenção, Bowie, Lou Reed, Laurie Anderson. E mais tarde os Clash…

Xana em palco no início dos Rádio Macau (foto de Peter Machado)

Flak: Nesse período de new wave começámos a seguir essas novidades todas. O Horses, os Television…

Xana: O Boy dos U2.

Flak: Toda a gente detestava o rock progressivo na altura, começou a aparecer aquela música mais sofisticada, os Joy Division, U2, Echo & The Bunnymen, que eram bandas mais naïve, de música mais simples. A gente também se identificou com essa música. Primeiro, porque era o ar dos tempos e depois porque eram coisas que conseguíamos fazer. Mas por outro lado, sempre tivemos uma ligação forte à música portuguesa, Zeca Afonso, Sérgio Godinho.

Xana: O José Mário Branco.

Flak: E a génese dos Rádio Macau foi juntar o que gostávamos de ouvir, rock, new wave, pós-punk com a música portuguesa. Nunca cantámos em inglês, nem sequer experimentámos. O que faz um bocado os Rádio Macau é essa mistura… da música portuguesa com o que gostávamos. Era um pouco de reação à música pós-25 de Abril, o Sérgio Godinho, o Zeca Afonso, o José Mário Branco, começaram a fazer música mais básica, de mensagem mais imediata, e a gente também não se identificava com isso.

Xana: Mas era essa ideia, cantar na língua em que se pensava.

Mas a vossa música acaba por ser música de quotidiano. Do que vocês viviam. É muito marcada por aquilo que vocês eram, a idade que tinham…
Xana:
As experiências que tínhamos.

No outro dia estava a ouvir o disco e, para mim, é imediato o pós-punk, por causa do baixo. De que forma é que o pós-punk contagiou a vossa música?
Xana:
O que interpretas como pós-punk?

Quando oiço aquele baixo penso no Unknown Pleasures. Mas não queria ir pelos JoyDivision…
Flak: Gang Of Four, Psychedelic Furs… eram coisas que ouvíamos na altura.

Onde eu queria pegar era no que o baixo me faz lembrar. Faz-me pensar em urgência, em imediatismo, que remete exatamente para o que entendo como “música do quotidiano” naquela altura.
Xana: O Alexandre fazia as linhas de baixo, o Flak as guitarras e eu as linhas de voz. Era um projeto onde todos estávamos na composição e personalizávamos. Há baixos do Alexandre que são incríveis, que têm muito a ver com a sensibilidade dele. Havia escolhas, entre todos, ouvíamos a mesma música, as mesmas coisas, mas interiormente escolhíamos nós as nossas referências.

"Se a Madonna disse há pouco tempo que Lisboa parecia Nova Iorque de 1987, imagina o que era Lisboa em 1983 e todo o país. A ditadura foi algo muito castrador. Não é que sentíssemos a responsabilidade de mudar, mas as coisas estavam a mudar e queríamos contribuir para isso. E com vinte anos, não é uma atitude difícil em cada um de nós."
Xana

Mas sem pensar nas referências, o que vos queria perguntar era: o que queriam dizer na altura? Como jovens adultos, que se mudaram de Sintra para Lisboa, que têm uma banda rock…
Xana:
Há a questão do imprevisível que foi aceite por todos. É aceite quando somos muito novos, fomos mais abertos ao inesperado do que quando crescemos. Interiorizámos isso de uma forma muito autêntica. E queríamos fazer acontecer, isso era qualquer coisa que acontecia, não só nos Rádio Macau, mas com os outros grupos, o movimento que existiu naquela década, em Lisboa, em que se sentia que todas as pessoas queriam fazer acontecer coisas. Penso que tinha a ver com o período que estávamos a viver em Portugal. O 25 de Abril tinha acontecido há menos de dez anos. Não eram só os músicos, mas pintores, cineastas, toda a cultura no país estava a querer exprimir-se. Todos queriam contribuir e queríamos contribuir para outro país. Se a Madonna disse há pouco tempo que Lisboa parece Nova Iorque de 1987, imaginem o que era Lisboa em 1983 e todo o país. A ditadura foi algo muito castrador. Não é que sentíssemos a responsabilidade de mudar, mas as coisas estavam a mudar e queríamos contribuir para isso. E com vinte anos, não é uma atitude difícil em cada um de nós.

Flak: E foi seguir essa energia que havia na altura. Lisboa era o sítio onde as pessoas estavam a fazer tudo.

Xana: O concerto da ESBAL foi um concerto organizado pelas pessoas da ESBAL, da universidade. Estava o Luís San Payo envolvido, o Alexandre estava também a fazer a licenciatura em arquitetura. As universidades na altura tiveram um papel importante, a fazer concertos acontecer. Mas isso em todo o país.

Flak: Nós éramos muitos seletivos com as letras e textos que usávamos. Tínhamos vários amigos, o Vitinha, o Pedro Malaquias, que escreviam bem. Mas havia muitos textos deles que não tinham a ver com o que queríamos transmitir. Quando estás a falar do quotidiano, eles tinham textos humorísticos, de intervenção, nós recusávamos isso tudo. Queríamos ter aquela estética, os Rádio Macau foram pensados assim-assim: as canções como “Bom Dia Lisboa”, “No Cenário Habitual”.

Xana: Que eram vivências de todos, comuns, com as quais nos identificávamos.

Flak: Por vezes, apresentavam letras mais humorísticas, que cabiam mais nos Ena Pá 2000. Mas não queríamos ir por aí. Queríamos ter um som próprio, que demorou tempo a definir. Quando chegámos ao primeiro disco, já tínhamos escrito muitas canções. Quando gravámos o primeiro disco, as canções eram mais pop.

Xana: Há pouco quando falei no inesperado, não era no sentido de que as coisas não fossem pensadas. Mas no sentido de não ter medo para nos abrirmos às transformações que sentíamos que estavam a acontecer. Quando somos mais velhos, temos mais receios em abrirmo-nos ao desconhecido. Na época… até o facto de irmos viver sozinhos, tudo o que aconteceu não é muito normal. Com que dinheiro? Não importa. Ainda hoje não sabemos.

Uma foto promocional

Quando oiço as vossas canções agora, sinto-as no presente. Sinto-as como música do presente.
Xana:
Significa que o nosso quotidiano ainda é muito parecido, não mudou assim tanto.

Sinto mais que vocês apanharam uma forma muito especial de o traduzir…
Xana:
Vivências que são comuns a todos.

Daqui, neste caso.
Flak:
Sempre teve a ver muito com Lisboa, a nossa vivência. Começámos a tocar porque não tínhamos muitas aulas para ir, havia greves, passagens administrativas. Foi o caos… e foi no final dos anos 1970, 1980, que se começou a construir qualquer coisa, a termos acesso a mais informação, a saber o que se passava no mundo. Não fomos só nós. Eu e o Alex vínhamos a Lisboa ver os primeiros concertos punk, os GNR, o Vítor Rua saiu para fazer os Telectu. Desde o lado mais pop ao mais experimental, foi aí que tudo se começou a formar. Ali começou-se a criar um espírito novo. Apanhámos isso, esse ambiente, a vontade de construir uma coisa nova.

Como era para si, Xana, ser mulher e ser a vocalista de uma banda como os Rádio Macau?
Xana:
Sempre senti que houve um reconhecimento mútuo entre nós. A questão do género não se colocava.

Não tanto na questão do género. Mas da sua voz. Na altura, não havendo muitas referências no rock português, como é que sentia que a sua se adequava ao que eles tocavam.
Xana:
Eu tinha imensos problemas com a minha voz, nunca me considerei uma grande cantora.

Flak: O que é facto é que havia muito poucas cantoras…

Xana: Deixa-me acabar. Nunca me considerei uma grande cantora mas gostava da energia de cantar. E isso prendeu-me ao canto. Fiz um esforço para ter aulas, melhorar a voz. O canto tem algo que não encontrei em mais lado nenhum, uma energia, possibilidade, oportunidade de trabalhar uma dada energia que não se tem… porque se trabalha com o nosso corpo. É um instrumento. Isso prende-me ao canto e à voz. Essa energia.

Flak: Quando vejo os poucos vídeos que há da altura, a Xana tinha uma energia fora do comum. Ela estava à frente do palco e levava tudo à frente. Além disso, sempre foi uma pessoa com iniciativa e sentido prático. Se os Rádio Macau existem, tem muito a ver com essa energia especial. A Xana começou a cantar connosco com 14 anos, nós tínhamos 18. Nós não sentíamos isso, porque estávamos sempre juntos. Mas quem nos via sentia uma energia especial. Porque as bandas eram mais coisas de rapazes, iam para a sala de ensaios tocar. Mas nós nunca sentimos isso.

"Saímos da estação do Rossio, e fomos à EMI. Era num segundo andar, subimos, dissemos à senhora que estava lá a atender: temos aqui uma cassete, gostávamos que vocês ouvissem. E ela disse para deixarmos a cassete, eles depois ouviam. Nós dissemos que não, só tínhamos aquela cassete, tínhamos de ir a mais editoras, não podíamos deixá-la."
Flak

Xana: Eu acho que é uma sinergia. O Alex adora projetos, ele tinha a capacidade de organizar, de mover os projetos. E o Flak é o mais músico de nós todos. Podia não ter um sentido prático tão grande como eu, ou de levar projetos para a frente como o Alex, mas os Rádio Macau existem por esta união. O Flak sempre quis ser músico e é o melhor músico de todos nós.

Flak: Pondo as coisas assim: se não fosse eu, eles nunca teriam sido músicos.

Xana: Eu, pelo menos.

E se não fosse a Xana, não teria tido uma banda.
Xana:
Teria…

Estou a brincar.
Xana:
Mas não eram os Rádio Macau.

Flak: Este trio, cada um com a sua qualidade, dividíamos as funções de maneira a que as coisas acontecessem.

Xana: É isso que acontece em todas as bandas.

Flak: Somos diferentes mas com qualidades especificas.

Xana: Se calhar houve a sorte de isso ter acontecido, de as pessoas se completarem sem grande esforço.

Flak: Éramos tão convictos que o nosso contrato com a EMI/VC foi assim: gravámos uma cassete na sala de ensaios, só com um gravador de cassetes. Era só uma gravação de ensaio. E tínhamos duas músicas naquela cassete.

Xana: E o Flak a insistir sempre muito que devíamos levar aquilo a uma editora mas não se mexia. E aí entrou o sentido prático, eu fui às Páginas Amarelas, editoras…

Flak: E vimos EMI/VC, Rua Nova do Almada, como vínhamos do Algueirão.

Xana: E havia a Sassetti.

Flak: E havia a Polygram, mas era em Benfica, era mais longe.

Xana: Tirámos três para mostrar a cassete nessa tarde.

No Rock Rendez Vous (foto de Peter Machado)

Flak: Saímos da estação do Rossio e fomos à EMI. Era num segundo andar, subimos, dissemos à senhora que estava lá a atender: temos aqui uma cassete, gostávamos que vocês ouvissem. E ela disse para deixarmos a cassete, eles depois ouviam. Nós dissemos que não, só tínhamos aquela cassete, tínhamos de ir a mais editoras, não podíamos deixá-la.

Fizeram-se difíceis, sem saberem.
Flak: Ingenuamente, só tínhamos aquela cassete. Íamos a descer as escadas, vimos um tipo que veio à porta e disse… vocês têm uma cassete para ouvir, é? Então subam lá. Subimos e ele ouviu a cassete, era o Francisco Vasconcelos, não sabíamos quem era. Ele devia ter mais 3 ou 4 anos que nós, um tipo de cabelo comprido, de T-shirt: “Só têm essas duas músicas? Gosto mais da primeira do que da segunda, têm mais na onda da primeira?” Claro que sim.

Que canções eram?
Flak:
Era “Olhos de Água” e era “A Malta Está Fixe”. E ele disse-nos: “Quando tiverem mais canções, venham cá”. A gente saiu, não vale a pena ir a mais lado nenhum. Ele gostou mesmo, o melhor é fazermos mais canções e voltar. Apanhámos o comboio, fomos para casa. Nessa altura começámos a tocar com o Ramalho, que foi o nosso baterista nos dois primeiros discos. Ele tocava com os Street Kids na altura, tinha um estúdio, podia fazer uma demo com melhores condições. Fomos ao Estoril, à sala de ensaios dos Street Kids fazer uma demo. E gravámos “A Noite” e “Drugstore”. E voltámos à Rua Nova do Almada, quando estávamos a descer, vimos esse tal tipo a entrar. Temos aqui outra cassete, mais duas canções. Ele disse-nos: “Então esperem aí um bocadinho, vou ter uma reunião, depois oiço a cassete, apareçam daqui a uma hora.” Quando subimos, estavam todos com um grande sorriso e pensámos: está feito, eles gostaram mesmo. E uns tempos depois assinámos o primeiro contrato, fomos para estúdio.

Xana: Foi tudo muito rápido. Connosco foi tudo muito imediato.

Flak: Só fomos à EMI. Estivemos lá até 1990, nunca conhecemos outra editora até 1990.

"Tenho para mim que só somos exemplos para nós próprios. Não gosto muito que me considerem exemplo para nada. Os Rádio Macau são exemplo para nós próprios. A única coisa que posso dizer é que nos divertimos imenso, foi uma época importante para a nossa formação e penso que contribuímos para aquele período da cultura portuguesa."
Xana

Como foi a gravação do primeiro disco?
Flak:
Fomos para os estúdios da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos. O produtor foi o Francisco Vasconcelos e o técnico de som era o irmão, Pedro Vasconcelos, que nessa altura gravaram uma série de discos, tinham produzido o Jorge Palma também nesse ano. E puseram-nos algumas restrições ao som, porque queriam uma coisa mais pop, e nós tínhamos um lado mais sujo, mais underground. Não ficámos muito satisfeitos com o resultado final porque sentimos que eles nos limparam um bocado o som, tornaram o som mais radio friendly. Eles não gostavam do Ramalho a tocar bateria. E então quando chegámos ao estúdio, o Ramalho tinha um set de bateria só com uma tarola, um prato de choques e dois pratos e o Ramalho: onde é que estão os timbalões? Gravas depois. Já estavam a restringir. Mas foi engraçado. Era assim, nessa altura. Naquela altura para termos um disco numa editora grande, tínhamos mesmo de gravar naquele estúdio e ceder a exigências da produção.

Xana: A rapidez das coisas… tudo o que falávamos do quotidiano, final de 82/83 e em 84 estamos a gravar um disco. Nessa altura fiz 18 anos, em estúdio. A tal abertura aos acontecimentos, a rapidez dos mesmos, tem a ver com isso. Foi tudo em um ano e meio, dois anos.

Flak: E foi tudo rápido a seguir. Meses depois gravámos o maxi single, “A Vida Num Só Dia”.

Xana: E seguiu-se uma década de intenso trabalho.

Em estúdio já tinham as canções todas preparadas?
Xana: Sim, nem havia outra forma. Tínhamos de gravar as coisas todas naquele período. Claro que havia sempre negociações…

Flak: Normalmente era um mês. O estúdio à hora era caríssimo. Davam um mês de estúdio, com tudo.

Xana: Havia a semana das guitarras, das vozes. O trabalho de ensaio, de experimentação, teve de ser feito antes.

Flak: E chegaram a pagar estúdios mais pequenos para fazermos demos. Que fomos mostrando, já depois de termos o contrato. Ainda chegámos a tocar com o Luís San Payo, mas depois ele queria era tocar com os Croix Sainte, tinha medo de se comprometer com os concertos. E voltou o Ramalho.

Xana: E depois o Filipe Valentim, que ficou até ao fim.

Flak: Que era amigo do Ramalho. Até veio viver connosco.

Como chegaram ao nome Rádio Macau? Aliás, como passaram de Crânio…
Xana: Eu não gostava de Crânio, insurgi-me um pouco contra o nome.

Flak: Queres que conte a história?

Xana: Conta. O Flak adora contar histórias.

Flak: Crânio era uma banda meio hardámos a tocar músicas dos Stones, versões rock’n’roll, coisas mais blues.

Xana: Isto sem mim.

"Os Rádio Macau são exemplo para nós próprios", diz Xana

Flak: Sim, quando ainda tocava bateria. Depois fui para a guitarra, começámos a ter um som mais pós-punk. Foi nessa altura que a Xana entrou para a banda. Nessa altura, que estávamos a tentar fazer o contrato com a EMI, percebemos que Crânio não tinha a ver com a música que estávamos a fazer. Fizemos uma lista de como nos íamos chamar. E nós tínhamos uns amigos nossos, que eram dois irmãos…

Xana: Os Santana.

Flak: Que eram uns hippies, tinham imensa música e compravam as músicas da altura. Eram mais velhos do que nós, mas gostávamos de estar com eles, estavam sempre a dizer: queres ouvir isto? E um dos irmãos foi viver para Macau, porque o pai foi trabalhar para lá, e teve um programa na Rádio Macau. E nós estávamos no café, uma vez, a pensar no nome e vemos o Tó Zé Santana que vinha de férias de Macau. E vimo-lo com uma T-shirt com uns símbolos chineses a dizer Rádio Macau. A gente olhou e disse… a T-shirt era gira, o nome era giro, o nome pareceu-nos sonante.

Naquela altura a crítica importava. Podia-vos afetar imenso ou, pelo contrário, podia beneficiar-vos. Como foi a receção na altura?
Xana:
Foi boa.

Flak: Havia programas de rádio que tocavam demos. Nós já tínhamos enviado “A Noite”, a tal demo que tínhamos mostrado à EMI, e estava nos tops. E tocávamos no Rock Rendez-Vous e tínhamos críticas incríveis do João Gobern…

Xana: A escrita na época era muito… aliás, a rádio e os jornais contribuíram muito para a divulgação da música moderna portuguesa. Todos os jornalistas contribuíram para essa transformação de que se estava a falar.

Flak: Tivemos muito apoio da crítica na altura. Antes do primeiro disco já tínhamos dado entrevistas para o Expresso, A Capital, Música e Som, toda a gente queria fazer-nos entrevistas e ainda nem tínhamos o disco. E tinha a ver com aquela altura, nós aparecemos numa segunda fase do rock português, a seguir ao Rui Veloso, GNR, Xutos & Pontapés.

Sentem-se como uma imagem, algo representativo dos anos 1980 portugueses? Nasci em 1983, quando penso nos Rádio Macau, a primeira imagem é sempre a Xana, pálida…
Xana: Não apanhava muito sol.

"Agora toco com músicos mais novos e noto que há mais gente a tocar, naquela altura éramos muito poucos. Por isso é natural que os símbolos surjam de forma mais forte, significativa. De alguma forma fomos pioneiros… na altura tinhas sete ou oito bandas top. Hoje não, tens 50, 60, 100. As coisas estão mais dispersas."
Flak

Sentem-se como parte da imagética dos anos 1980 portugueses ou da memória dessa década? Musical, sim, mas não só.

Xana: Tenho para mim que só somos exemplos para nós próprios. Não gosto muito que me considerem exemplo para nada. Somos exemplo de cada um de nós. Agora pertencer… pensar no nosso contributo em termos de imagem, numa fotografia, com certeza que estamos naquela fotografia. Se isso é representativo dos anos 1980? Em termos de símbolo… nunca foi premeditado, nenhum de nós tem essa atitude perante as coisas, a vida. Os Rádio Macau são exemplo para nós próprios. A única coisa que posso dizer é que nos divertimos imenso, foi uma época importante para a nossa formação e penso que contribuímos para aquele período da cultura portuguesa.

Eu estou deste lado. Quando penso no rock português ali num certo período, a Xana é das primeiras imagens que me surgem. É uma imagem muito marcante. Era a Xana que eu via nos videoclips, ou nos vídeos ao vivo, era a Xana que estava em destaque.
Flak:
Há muita gente que diz o mesmo. Agora toco com músicos mais novos e noto que há mais gente a tocar, naquela altura éramos muito poucos. Por isso é natural que os símbolos surjam de forma mais forte, significativa. De alguma forma fomos pioneiros… na altura tinhas sete ou oito bandas top. Hoje não, tens 50, 60, 100. As coisas estão mais dispersas.

Xana: Todos esses poucos sobressaem muito. Para mim é muito difícil falar de mim, não tenho o culto de mim própria. Isto é natural e não vou deixar de ser assim. É difícil para mim falar em termos de imagem. Imagens são as santas que estão na igreja. E quero ser assim até ao resto da vida. Uma questão é a do poder para ser, enquanto liberdade, quero o poder da liberdade e de ser. Mas agora o poder… o outro poder acaba por se virar contra nós. E por isso não me consigo ver como imagem. Se houve esse contributo, não nego, não me faz impressão. Mas não consigo falar dele.

"No ano do 'Elevador da Glória', fizemos cerca de 60 concertos. Fazíamos os discos mas estávamos sempre na estrada", lembra Flak

Pensando só nos vossos anos 1980, vocês gravam 4 álbuns em cinco anos.
Xana:
Mais um maxi single.

Esqueço-me sempre de como os maxi singles eram importantes para as bandas na altura.
Xana: Eram,

Flak: Para passares nas discotecas…

Quando agora penso num maxi single, penso como um complemento, entre um álbum e outro.
Flak:
Os Heróis do Mar, os sucessos, eram todos maxi singles. Era isso que fazia o sucesso, era a diferença. Passar na rádio e passar nas discotecas.

Voltando à pergunta: o tempo passou a correr?
Xana: Tem a ver com o que disse no início, ainda hoje me interrogo como é que foi possível toda aquela sucessão de acontecimentos, a velocidade com que tudo aconteceu. Aconteceu tudo depressa. Orgulho-me muito, tivemos capacidade para responder a todas as exigências com rapidez. E não nos saímos mal.

Flak: E tocámos imenso ao vivo. A gente chegava a fazer 50 concertos por ano. No ano do “Elevador da Glória”, fizemos cerca de 60 concertos. Fazíamos os discos mas estávamos sempre na estrada.

Xana: E entrevistas, composição, promoção contínua. A música era a nossa vida.

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