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A Fajã do Ouvidor, na ilha açoriana de São Jorge, é uma das regiões afetadas pela crise sísmica que começou a 19 de março
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A Fajã do Ouvidor, na ilha açoriana de São Jorge, é uma das regiões afetadas pela crise sísmica que começou a 19 de março

Martin Zwick/REDA&CO/Universal Images Group via Getty Images

A Fajã do Ouvidor, na ilha açoriana de São Jorge, é uma das regiões afetadas pela crise sísmica que começou a 19 de março

Martin Zwick/REDA&CO/Universal Images Group via Getty Images

O jogo de forças nas profundezas dos Açores que abala São Jorge há quatro dias e pode culminar numa erupção vulcânica

São Jorge está a ser sacudida por sismos com origem num intrincado choque de placas. No limite, um novo vulcão pode brotar da mesma falha que já destruiu parte da ilha. Açores pode ser La Palma.

A freguesia da Urzelina acordou mais cedo do que o normal para o Domingo do Bom Pastor. Ninguém tinha dormido descansado na madrugada de 1 de maio de 1808: ao longo da noite, a povoação na Ilha de São Jorge tinha sido sacudida por uma média de oito tremores de terra por hora — e estes eram apenas os que tinham intensidade suficiente para serem sentidos à superfície. Já o sol nascia quando eclodiu um sismo “tão grande que fez levantar o povo das camas”, contou o historiador açoriano João Duarte de Sousa num livro de apontamentos mais de seis décadas mais tarde.

Algumas horas mais tarde, entre as 11h e o meio-dia, a missa foi abruptamente interrompida por um terramoto que “fez fugir todo o povo da igreja”. Lá fora, à porta da popular Igreja de São Mateus, no pico do monte mais alto da freguesia da Urzelina, os crentes depararam-se com uma nuvem de fumo negro que se adensava sobre o céu da ilha. Das profundezas da Terra, brotava assim a última erupção vulcânica de São Jorge. Durante o mês de maio “nunca anoiteceu nesta ilha”: “Faltando a luz do sol”, vendada pelas nuvens vulcânicas, “ficava a do fogo”. A igreja de onde o povo fugiu acabou engolida pela lava. Só a torre sobreviveu e permanece de pé até hoje.

Um cenário como este ressurge agora da memória coletiva dos açorianos em São Jorge, cicatrizada no solo da ilha pelas Bocas de Fogo da Urzelina, para o campo das possibilidades. A crise sísmica que em 1808 revelou ser um sintoma da erupção vulcânica, volta agora a registar-se na ilha e com origem exatamente na mesma falha que rasga São Jorge, de onde surgiu a erupção que destruiu a freguesia da Urzelina — o sistema vulcânico de Manadas.

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Desde as 16h05 do último sábado, 19 de março, já se registaram mais de 1.800 sismos, todos com origem numa falha, que vai de noroeste para sudeste, no segmento entre Velas e Fajã do Ouvidor; e o mais forte dos quais com uma magnitude de 3,6 na escala de Richter. Entre as 22h de terça-feira e as 10h de quarta-feira, um intervalo de 12 horas, foram sentidos 20 sismos, contabiliza o Centro de Informação e Vigilância Sismovulcânica dos Açores (CIVISA) em comunicado. O mais forte, de magnitude 2,7, registou-se às 06h53 desta quarta-feira. Precisamente na Urzelina.

O jogo de forças na origem desta crise sísmica — quando se regista um número anormalmente maior de abalos num curto espaço de tempo — já é bem conhecido dos geólogos e vulcanólogos. E a Ilha de São Jorge só existe por causa dela. Os Açores estão assentes numa atribulada interação entre três placas tectónicas.

O jogo de forças na origem desta crise sísmica — quando se regista um número anormalmente maior de abalos num curto espaço de tempo — já é bem conhecido dos geólogos e vulcanólogos. E a Ilha de São Jorge só existe por causa dela. Os Açores estão assentes numa atribulada interação entre três placas tectónicas, peças da superfície terrestre que se movimentam em sintonia com o fluxo do manto, fonte da lava vulcânica: a placa americana a oeste da enorme cordilheira que atravessa o Oceano Atlântico, a Dorsal Mesoatlântica; a nordeste a placa euroasiática; e a suedeste a placa núbia, uma secção da placa africana.

Enquanto a placa americana se está a afastar das outras duas, a interação entre a euroasiática e a núbia é mais complexa: elas chocam uma com a outra junto à costa de Portugal Continental, dando origem ao banco de Gorringe — a cordilheira submarina em que teve origem o terramoto de 1755 — mas deslizam ao longo da Falha da Glória quase até chegar aos Açores. Quase, porque a certa altura ela sofre um desvio, desdobra-se e abre alas a um planalto triangular na crosta terrestre, precisamente onde ficam os Açores.

No meio dessa plataforma, a que alguns cientistas chamam microplaca dos Açores (uma designação ainda debatida no seio da comunidade científica), há uma pluma que vem do manto, empurra os Açores para cima e força a subida do magma. À conta do limite entre a microplaca dos Açores e a placa euroasiática, as rochas que compõem a microplaca deformam-se e sofrem uma torção que acaba por fraturá-las, abrindo fissuras na superfície da Terra. Uma delas é a falha em que estes sismos se têm registado, explicou ao Observador o geólogo José Carlos Kullberg, da Universidade Nova de Lisboa. E é a partir dela que o magma em ascensão pode escapar.

Mas "esta crise parece resultar da deformação dos materiais da crosta”, não de um movimento magmático, apontou o cientista, confirmando a teoria que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera também partilhou esta quarta-feira. O magma deve estar a subir por fendas verticais, formando uma espécie de lâmina que atravessa as camadas horizontais na crosta terrestre (dique magmático).

De resto, as crises sísmicas são uma assinatura normal da atividade tectónica neste canto do planeta: são frequentes, embora imprevisíveis. Os terramotos podem registar-se aos milhares e durar meses, podem cessar ao fim de apenas alguns dias, ou podem servir de introdução a um grande sismo. E estes pequenos sismos tanto podem ser um sinal de alívio, como se a Terra fosse libertando pequenas quantidades de energia evitando um grande terramoto, como simplesmente sinais de aviso.

Ninguém sabe, nem mesmo os cientistas. Mas “esta crise parece resultar da deformação dos materiais da crosta”, não de um movimento magmático, apontou o cientista, confirmando a teoria que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera também partilhou esta quarta-feira. O magma deve estar a subir por fendas verticais, formando uma espécie de lâmina que atravessa as camadas horizontais na crosta terrestre (dique magmático). As rochas em profundidade vão-se deformando em resposta à energia que acumulam, como as molas ou os elásticos quando sujeitos a tensões. Quando atingem o limite da energia que conseguem suportar, as rochas fragmentam-se, a energia liberta-se e dá-se um sismo.

A grande questão é se o magma chegará mesmo à superfície, tal como chegou há quase 214 anos. “Só vamos saber em cima da hora”, alerta José Carlos Kullberg, mas o planeta pode dar sinais de que algo está na iminência de acontecer: se houver cada vez mais sismos num intervalo de tempo curto, se os níveis de dióxido de carbono aumentarem, se o hipocentro — o ponto na crosta em profundidade, paralelo ao epicentro, de onde deflagrou o terramoto — for progressivamente mais superficial; ou se surgirem à superfície deformações no solo, uma erupção vulcânica torna-se uma possibilidade cada vez mais real.

Ao início da tarde de quarta-feira, a Terra parecia ter dado tréguas aos açorianos em São Jorge. Depois de quatro dias com sismos espaçados por apenas alguns minutos, embora nem todos fortes o suficiente para serem percecionados pela população, houve um intervalo de uma hora, 40 minutos e 34 segundos em que os sismógrafos dos Açores não registaram qualquer abalo com magnitude superior a 2 na escala de Richter — sensivelmente entre as 12h47 e as 14h28, horas locais.

Desde que a crise sísmica começou, com um terramoto de magnitude 2,2 às 16h11 de 19 de março e origem a oito quilómetros de profundidade, o período mais longo de acalmia tinha sido na manhã de 20 de março, com 64 minutos sem sismos. Mas foi sol de pouca dura: desde as 14h28 até às 18h55 de quarta-feira, houve sete sismos na Ilha de São Jorge. Embora a atividade sísmica continue acima do normal, a frequência dos terramotos está a manter-se, não a aumentar. E não há sinais de novas deformações no solo.

A profundidade dos tremores de terra — outra bandeira vermelha que pode indiciar a iminência de uma erupção vulcânica — também não está a aumentar. Pelo contrário: o hipocentro dos terramotos detetados nas primeiras 24 horas da crise sísmica variou entre apenas um quilómetro e 17 quilómetros de profundidade, com a maioria a não passar dos 10. Já os sismos registados desde a meia-noite desta quarta-feira nunca foram mais superficiais que os oito quilómetros de profundidade e chegaram a eclodir a 19 quilómetros no máximo.

O enxame de sismos que se registou na Ilha de São Jorge, nos Açores, no último mês até às 20h15 desta quarta-feira, 23 de março

Instituto Português do Mar e da Atmosfera

A maioria já é registada a profundidades superiores aos 10 quilómetros, mas não fundo o suficiente para indiciarem que os sismos resultaram de movimentações dramáticas no manto da Terra (que começa a cerca de 30 quilómetros de profundidade), algo que assinalaria o início de uma erupção. E os níveis de dióxido de carbono na ilha, um gás normalmente emanado pelo material vulcânico, continuam normais.

Os próximos seis meses serão cruciais para determinar o futuro vulcânico da Ilha de São Jorge. A crise sísmica pode simplesmente diluir-se com o tempo, depois de as rochas se ajustarem à nova subida de magma e se adaptarem; ou então pode intensificar-se até que se repitam os fenómenos de 1808.

Segundo o geólogo, pelo menos por enquanto, não há evidências de que uma erupção vulcânica esteja prestes a ocorrer nos Açores. Mas o Centro de Informação e Vigilância Sismovulcânica dos Açores (CIVISA) já elevou o nível de alerta vulcânico na ilha de São Jorge para o segundo maior nível de alerta (o quarto em cinco possíveis), o que, para o Governo regional, significa uma "possibilidade real de erupção".

A registar-se uma erupção vulcânica, José Carlos Kullberg antecipa um panorama semelhante ao que se registou nas Canárias, com o vulcão de La Palma: o novo cone vulcânico iria cuspir piroclastos — fragmentos de rocha magmática já solidificada —, mas também libertar rios de lava que arriscam chegar ao mar e provocar explosões à conta do contacto entre o magma escaldante e a água fria do Atlântico, tal como aconteceu em 1580 e em 1808. Pode durar quatro meses.

Segundo o geólogo, pelo menos por enquanto, não há evidências de que uma erupção vulcânica esteja prestes a ocorrer nos Açores. Mas o Centro de Informação e Vigilância Sismovulcânica dos Açores (CIVISA) já elevou o nível de alerta vulcânico na ilha de São Jorge para o segundo maior nível de alerta (o quarto em cinco possíveis), o que, para o Governo regional, significa uma “possibilidade real de erupção”.

Na dúvida, as autoridades estão a preparar-se para o pior cenário possível e já aconselham a população a fazer o mesmo. A Proteção Civil dos Açores está a preparar um pacote de medidas a ser acionado caso a ilha registe um sismo de maior magnitude ou uma erupção vulcânica. E o próprio Governo regional também está a postos para a retirada de população caso a crise se intensifique: os internados no Centro de Saúde das Velas, próximo dos epicentros dos sismos, estão a ser transferidos para o Centro de Saúde da Calheta para “precaver qualquer situação que torne mais difícil a movimentação, a mobilidade e alguma evacuação”.

Entretanto, a população deve precaver-se, apelou Luís Silveira: “Que as pessoas possam ter a sua mochila preparada com os mínimos, nomeadamente com uma muda de roupa, com os seus medicamentos, com algum alimento base”.

Luís Silveira, presidente da Câmara Municipal das Velas, acrescentou já esta tarde que os sinos das igrejas soarão caso haja necessidade de evacuar a ilha. “Está definido como é que as pessoas vão ser avisadas e informadas em termos de evacuação”, garantiu o autarca, explicando que a comunicação inicial será feita pelas redes sociais e pela comunicação social. Mas, se esse plano falhar, o aviso para evacuação “será feito — e não será feito só em alternativa, será feito em simultâneo — o repicar dos sinos nas freguesias”.

O presidente da Câmara avançou também que os meios aéreos e marítimos alocados à Ilha de São Jorge estão a ser reforçados para garantir uma resposta robusta em caso de desastre: a Base das Lajes recebeu mais um helicóptero e um avião; e há um navio da Marinha a caminho da ilha. Entretanto, a população deve precaver-se, apelou Luís Silveira: “Que as pessoas possam ter a sua mochila preparada com os mínimos, nomeadamente com uma muda de roupa, com os seus medicamentos, com algum alimento base”.

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