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"O que me impressionou foi ter a noção do quanto fingimos que está tudo bem. Sim, houve escravos, houve colonialismo, mas vai ficar tudo bem... Não, não vai", conta-nos David Geselson sobre o mergulho que deu na História na companhia de Nina Simone
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"O que me impressionou foi ter a noção do quanto fingimos que está tudo bem. Sim, houve escravos, houve colonialismo, mas vai ficar tudo bem... Não, não vai", conta-nos David Geselson sobre o mergulho que deu na História na companhia de Nina Simone

"O que me impressionou foi ter a noção do quanto fingimos que está tudo bem. Sim, houve escravos, houve colonialismo, mas vai ficar tudo bem... Não, não vai", conta-nos David Geselson sobre o mergulho que deu na História na companhia de Nina Simone

“O Silêncio e o Medo”: quanta História está guardada na vida de Nina Simone?

A figura, a música e a vida de Nina Simone protagonizam "O Silêncio e o Medo". Arte, política e revolução em cena no Teatro Nacional D. Maria II. Falámos com o encenador da peça, David Geselson.

Os processos criativos de David Geselson são sempre longos e complexos. A pesquisa demora anos e é organizada como um plano de estudos, com tempo definido para cada tema. Segue-se a escrita, a fase solitária, e depois o caos (mas o caos bom), quando o texto é partilhado com os atores e é reformulado consoante as sugestões de cada um. “O Silêncio e o Medo” ocupa o palco da Sala Garrett, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, entre quinta-feira, 6 de janeiro, e sábado, dia 8, e até chegar ao resultado que pode agora ser visto em cena foram necessários três anos e meio de trabalho.

Esta é a história de Nina Simone, mas não é apenas a história de Nina Simone. Através dela, e de cenas que retratam vários momentos da sua vida, viaja-se pela herança que a própria Eunice Waymon (o nome verdadeiro da cantora e compsotora) carrega. Tetraneta de um nativo americano e de uma escrava africana, Nina Simone é o exemplo de um mundo de desigualdades e exploração — uma bagagem tão pesada que acabaria por lhe dar a revolta necessária para assumir na primeira pessoa o ativismo social e político que também a definiu.

O encenador francês David Geselson junta neste espetáculo factos biográficos e históricos, gritos de raiva e reflexões solitárias. A realidade mistura-se com a ficção, tal como já vem sendo habitual no seu currículo — em “En Route-Kaddish”, de 2014, tinha um diálogo fictício com o avô judeu; em “Doreen”, de 2016, partiu do suicídio do filósofo André Gorz e da mulher. Esta é a primeira vez que não integra o elenco, mas isso até estava previsto acontecer em Lisboa, com o papel de Jean-Louis. Porém, a ideia ficou novamente adiada por ter atualmente outra peça em cena em Paris (“La Cerisaie”, com o português Tiago Rodrigues).

“O Silêncio e o Medo” tem atores franceses (Marina Keltchewsky, Samuel Achache) e norte-americanos (Dee Beasnael, Jared McNeill, Kim Sullivan). No D. Maria II haverá também legendas em português durante as quase duas horas de espetáculo. Antes da estreia ao vivo — em 2021 a peça fez parte do cartaz da sala online do teatro —, David Geselson falou com o Observador sobre o que mais o inquietou durante a pesquisa que fez e sobre a descoberta dos atores afro-americanos perfeitos para a peça, atores que encontrou durante um estágio que o levou até Nova Iorque.

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"Acho esta profissão tão difícil, é difícil fazer durar o prazer que nos dá e, por isso, é muito agradável fazer coisas complicadas porque demoram tempo a fabricar"

Porquê a Nina Simone?
Acabou por ser um acaso. Há muito que me interesso pela história e pela música afro-americanas e encontrei uma biografia [Nina Simone: The Biography] escrita por um jornalista francês, David Brun-Lambert, que é muito subjetiva. Descobri que ela não era apenas uma enorme cantora e artista, mas também uma ativista política muito empenhada, o que eu ignorava completamente.

Conhecia apenas a música de Nina Simone, um pouco como toda a gente?
Exatamente. Conhecia esse lado, mas não sabia que tinha sido uma ativista realmente envolvida no combate dos afro-americanos pelos seus direitos. Isso impressionou-me e apaixonou-me. Pensei que havia ali algo que podia fazer, não apenas contar a vida dela mas, através dessa mesma vida, contar igualmente a história afro-americana.

Começou a desenvolver o projeto em 2018?
Sim, exato.

Os atores franceses do elenco inicial [Elios Noël e Laure Mathis] já tinham trabalhado com o David. E os atores afro-americanos, como foi o processo de escolha?
Foi uma aventura. Fomos apoiados pelo Instituto Francês da Cultura e pudemos viajar até Nova Iorque, EUA, onde fizemos um estágio no teatro Harlem Stage. Eu e a minha equipa [os atores franceses] estivemos 15 dias lá a descobrir artistas e a trabalhar a partir do texto. No final, propusemos a três atores que se juntassem a nós. O problema veio depois: o sistema americano não é simples para os trabalhadores, existem os seguros de saúde ou de acidentes de trabalho que perdem quando vão para o estrangeiro. Parte dos atores que estavam connosco não puderam ficar até ao fim. Então voltámos aos EUA para fazer mais audições. Foi aí que conhecemos o Kim Sullivan, que interpreta o pai da Nina Simone. Foi um processo que durou um ano e meio.

O público português teve a oportunidade de ver “O Silêncio e o Medo” na sala online do D. Maria II em março de 2021. Ter agora o espetáculo em cena em Lisboa já estava previsto antes ou foi uma consequência dessa apresentação?
O Tiago Rodrigues [que era então diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II] convidou-me, o D. Maria II foi co-produtor do espetáculo desde o início. Estava previsto que fizéssemos a peça em Lisboa, essa apresentação foi adiada devido à pandemia e sugerimos a versão virtual. Mas o que contava para nós era fazer o espetáculo ao vivo. Por causa da pandemia tivemos de fazer alterações. Os dois atores franceses já não estavam disponíveis agora.

"Quando temos tantos elementos históricos e tantos documentos é difícil não fazermos apenas uma aula de História. E um espetáculo é tudo menos uma aula de História. É complicado mas, ao mesmo tempo, é isso que me permite criar, é encontrar no interior das coisas reais elementos que posso transformar em ficção."

Quais são as alterações?
O Elios Noël e a Laure Mathis, que faziam parte do elenco inicial, não estarão presentes [são substituídos por Samuel Achache e Marina Keltchewsky, respetivamente]. E o ator que interpretava Andy, o marido de Nina Simone, também não estava disponível e é substituído por outro ator americano [sai Craig Blake e entra Jared McNeill].

Desta vez o David não está em cena, como aconteceu nos seus espetáculos anteriores. Porquê?
Na verdade, era eu que devia atuar em Lisboa. O papel do Jean-Louis era para ser alternado entre mim, o Elios Noël e o Samuel, que retoma o papel agora. Mas não posso ir a Lisboa porque estou com “La Cerisaie” em cena em Paris, no Odéon, juntamente com o Tiago Rodrigues.

Às vezes é o David que interpreta o Jean-Louis?
Ainda não aconteceu. Devia ter sido no ano passado mas, com a pandemia e todos os adiamentos, não se proporcionou. Se calhar nem sequer é boa ideia mas, sim, o objetivo é interpretar a personagem a dada altura.

Li que, se não fosse encenador e ator, gostaria de ter sido historiador. É um bocadinho isso que já faz nos seus textos, junta sempre essas duas vertentes.
Acho que não seria capaz de ser historiador, já não vou a tempo, mas é verdade que coloco a minha paixão pela história nos meus espetáculos. Permite-me acreditar que não sou assim tão mau a História. Se fosse realmente estudante de História, isso revelaria que não sou lá muito bom. Permite-me esconder a verdade. Estou a brincar.

Este texto é complexo, tem elementos biográficos, históricos, culturais. Dá a ideia que seguir estruturas mais simples não é bem o que lhe interessa trabalhar…
Pois, é verdade.

"Pensei que havia ali algo que podia fazer, não apenas contar a vida da Nina Simone mas, através dessa mesma vida, contar igualmente a história afro-americana", diz-nos o encenador David Geselson

Quando prepara um espetáculo, por onde começa?
Começo por ler, tento entrar na matéria documental e histórica do meu protagonista. No caso da Nina Simone, li muitas biografias. Depois faço um longo trabalho de pesquisa e faço algo um pouco profano, se é que posso chamar-lhe isso, que é um plano de estudos. Quando criámos “Doreen” [peça de 2016 que recria os últimos momentos do filósofo André Gorz e da mulher, Dorine Keir, antes de se suicidarem juntos], por exemplo, estudei durante algum tempo a obra de André Gorz e trabalhei à volta da ecologia política. Desta vez, li tudo o que pude encontrar sobre a história afro-americana. A partir da pesquisa documental procuro situações que permitem tornar isso tudo teatral.

Quanto tempo demora tudo isso?
Anos. “O Silêncio e o Medo” precisou de três anos e meio de trabalho. Há pouco referia que não faço as coisas simples e é verdade. Acho esta profissão tão difícil, é difícil fazer durar o prazer que nos dá e, por isso, é muito agradável fazer coisas complicadas porque demoram tempo a fabricar. Há uma fase de pesquisa, a escrita, depois mostro o texto aos atores e voltamos a trabalhá-lo.

Não fica assoberbado com tanta informação?
Quando temos tantos elementos históricos e tantos documentos é difícil não fazermos apenas uma aula de História. E um espetáculo é tudo menos uma aula de História. É complicado mas, ao mesmo tempo, é isso que me permite criar, é encontrar no interior das coisas reais elementos que posso transformar em ficção. A triagem e a escolha acaba por ser a fase mais demorada. Por outro lado, isso acaba por criar um inconsciente coletivo, um conhecimento que pode não servir para nada específico, mas que deixa lá a semente, mesmo que ligeira. Permite depois fazer escolhas de encenação em equipa. As escolhas não partem apenas de mim, cada membro da equipa pode servir-se de coisas que vimos, estudamos ou aprendemos juntos.

De tudo o que descobriu sobre a Nina Simone, o colonialismo e a cultura afro-americana, o que é que o surpreendeu mais?
Acho que, no quotidiano, familiarizamo-nos com a violência e temos a sensação de que não foi assim tão terrível. Quando mergulhamos nos detalhes, percebemos que não podemos de forma alguma familiarizar-nos com a violência e que as sequências de violência e opressão são extremamente longas. O que me impressionou foi ter a noção do quanto fingimos que está tudo bem. Sim, houve escravos, houve colonialismo, mas vai ficar tudo bem… Não, não vai.

"12 milhões de pessoas massacradas durante quatro ou cinco séculos, isso tem consequências para as famílias, tem consequências na atualidade até, consequências que são terríveis. Se as ignoramos, colocamos às costas do sistema atual as causas. Mas temos de perceber de onde vem esse sistema."

A indiferença vem do facto dessa realidade já estar muito distante para nós?
Acho que não, as sociedades constroem-se a partir de memórias que nos permitem avançar, mas há certas coisas mais difíceis de expor no espaço público porque têm consequências concretas, nas desigualdades sociais, estruturais e culturais que vêm frequentemente das desigualdades históricas. Por vezes, é mais fácil não sermos confrontados com elas, penso eu, porque isso implicaria um questionamento profundo sobre muitas coisas. No entanto, há um trabalho que consiste em lembrarmo-nos do local de onde vimos, não para ficarmos na nostalgia ou na culpa, mas simplesmente para termos a consciência de que as relações entre classes, os relacionamentos que temos agora, vêm de algum lado. Quando sabemos de onde isso vem, acho que não nos vemos uns aos outros da mesma forma. Penso que a arte e a cultura podem oferecer um outro olhar.

Que olhar é esse?
Um olhar indireto sobre o passado para nos vermos uns aos outros de forma mais consciente. Não quer dizer que resolva as coisas, mas eu, por exemplo, já não vejo as desigualdades sociais da mesma forma depois de ter lido e descoberto que a história do comércio de escravos fala de 12 milhões de homens e mulheres africanos deportados e massacrados. 12 milhões de pessoas massacradas durante quatro ou cinco séculos, isso tem consequências para as famílias, tem consequências na atualidade até, consequências que são terríveis. Se as ignoramos, colocamos às costas do sistema atual as causas. Mas temos de perceber de onde vem esse sistema. Não sabia até que ponto uma parte dos impérios europeus construiu a riqueza e desenvolvimento económico através do trabalho forçado de homens e mulheres africanos explorados durante séculos. Claro que ouvimos enquanto sociedade, aprendemos na escola, mas no final de contas não sabemos assim tanta coisa. O nosso conhecimento fica à superfície.

“O Silêncio e o Medo” estará em cena na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II entre 6 e 8 de janeiro. O espetáculo é falado em francês e inglês, com legendas em português. As sessões acontecem às 19 horas e os bilhetes custam entre 9€ e 16€. Estão disponíveis nas bilheteiras online ou no local.

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