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Perseguem, assediam e intimidam pessoas que consideram “excêntricas”. Entre os principais alvos do fórum Kiwi Farms está a comunidade transgénero. Há cerca de uma década que moradas e dados pessoais das vítimas escolhidas são partilhados online.
Não está claro como é que obtêm informações sobre as vítimas, mas, por várias vezes, os membros do fórum conseguem fazer com que a perseguição deixe o universo online e passe para a vida real. Por isso, de acordo com o The Guardian, o site foi associado aos suicídios de três pessoas que não aguentaram a “dor” provocada pelos ataques.
É o caso do programador David Ginder, que foi perseguido por se identificar como não binário. Em junho de 2021, um dia antes de tirar a própria vida, trocou emails com Joshua Moon, fundador e proprietário do Kiwi Farms. Ofereceu 120 mil dólares para que as ameaças parassem, uma vez que, afirmou, não conseguia suportá-las. Do outro lado, a resposta chegou apenas com uma recusa em parar e a garantia de que não aceitaria ser “extorquido”.
A internet não é um jogo. É a vida real. Eu sou uma pessoa real. Isto dói muito. É tarde demais para mim, mas rezo para que alguém, em algum momento, faça alguma coisa” contra este site, escreveu David Ginder no Twitter, citado pelo The Hill.
Foi em meados do ano passado, após ter sido retirado do leque de clientes da empresa de cibersegurança internacional Cloudflare, que o Kiwi Farms teve que começar a lutar pela sua sobrevivência. Para isso, recorreu à ajuda de uma firma portuguesa, a DiamWall, mas essa solução revelou ser eficaz apenas durante algumas horas.
A empresa portuguesa que colocou a Kiwi Farms online durante “quatro ou cinco” horas
Foi em agosto do ano passado, depois de ter sido retirado da lista de clientes da Cloudflare e com dificuldades em encontrar um novo serviço que lhe permitisse continuar a funcionar, que o Kiwi Farms contratou a DiamWall. Na altura, a empresa portuguesa de cibersegurança tinha começado a operar há cerca de quatro meses e, ainda hoje, não sabe bem como é que Joshua Moon chegou até eles.
O site passou por “dezenas de outras CDN [Content Delivery Network, em português “rede de distribuição de conteúdo”]”, mas só conseguiu ficar online com a da DiamWall. Foi após a subscrição do serviço “business”, que custa 200 euros por mês, que o Kiwi Farms voltou a estar ativo. Mas apenas por “quatro, cinco horas”. “Nós começámos a receber centenas de reports e de emails porque o fórum ficou online. Depois, passadas cerca de seis, sete horas, tivemos de fazer um texto” a explicar que os “expulsámos da nossa rede”, conta Hugo Carvalho, sócio e CEO da empresa, ao Observador.
A empresa tinha aberto há pouco tempo e [manter o Kiwi Farms na rede] ia levantar muitos problemas para o nosso lado. Problemas que nós não queríamos ter”, principalmente sendo uma “empresa tão recente”.
Até hoje, o Kiwi Farms foi o primeiro e único cliente que a DiamWall retirou da sua plataforma. Em declarações ao Observador, Hugo Carvalho, que também é programador, afirma que a empresa não era “obrigada” a remover o fórum online, mas que decidiu fazê-lo porque achou que “o conteúdo não fazia parte daquilo” que acredita que deve estar na internet.
“Nós não somos, de todo, responsáveis pelo conteúdo que os sites que estão na nossa rede apresentam. Não somos nós que os hospedamos, só fazemos um filtro e protegemos os sites”, explica. O problema com o fórum gerido por Joshua Moon residia no facto de ter “desde leaks relacionados com figuras públicas [como divulgação de moradas]” a “outras coisas um bocadinho mais sombrias, como zoofilia (relações sexuais com animais)”.
Quando foi contratado pelo Kiwi Farms, que precisava de proteção contra ataques de DDoS (Denial of Service ou “negação de serviço”), Hugo Carvalho não sabia qual era o conteúdo desse site. Algo que acontece com todos os outros que são seus clientes. “Nós não verificamos nenhuma plataforma que entre no nosso sistema. Toda a gente tem o direito de ter um website online, toda a gente tem o direito a ser protegida e nós nunca somos responsabilizados” pelas publicações dessas páginas. Porém, se “houver algum report” é necessária fazer uma “revisão do conteúdo”.
Como uma streamer da Twitch lutou pela retirada do Kiwi Farms da Cloudflare
O movimento para derrubar o Kiwi Farms começou oficialmente no verão do ano passado. Durante vários meses, Clara Sorrenti, streamer transgénero que na Twitch é conhecida por “Keffals”, foi perseguida por utilizadores do fórum que não gostavam que utilizasse as suas redes sociais para discutir leis aprovadas por estados norte-americanos para impedir, entre outras coisas, que os estudantes transgénero utilizem os pronomes com que se identificam.
A perseguição de que foi alvo, que a levou a começar a campanha #DropKiwiFarms, atingiu uma nova dimensão quando, segundo a revista Wired, em agosto de 2022, a polícia apareceu em sua casa após uma denúncia — por parte de um membro do fórum que nunca foi identificado — que alegava que Sorrenti tinha matado a sua mãe e que planeava deslocar-se à Câmara Municipal de London, em Ontário (Canadá), para disparar contra todos os cidadãos cisgénero que encontrasse.
Clara Sorrenti foi detida e interrogada, antes de as autoridades perceberem que se tratou de uma denúncia infundada. Depois, após ser libertada, refugiou-se num hotel. Para garantir aos seguidores que se encontrava bem, publicou nas redes sociais uma fotografia do seu gato na cama. Foi assim, através da imagem dos lençóis do hotel, que os utilizadores do Kiwi Farms conseguiram descobrir onde estava a streamer e começar a enviar-lhe pizzas com o seu nome de batismo (aquele que utilizava antes da transformação).
A ativista, que também teve a sua conta de Uber Eats hackeada e que recebeu ameaças de morte juntamente com a família, disse, numa videochamada com a NBC, que a perseguição foi “um pesadelo”. “Eu tenho constantemente este pensamento na minha cabeça: ‘O que é que estão a fazer? Estarão a planear alguma coisa?'”.
Após a localização do hotel em que estava ter sido descoberta, Clara Sorrenti tomou a decisão de deixar o Canadá e mudou-se para Belfast, na Irlanda do Norte. Foi aí que começou o movimento #DropKiwiFarms, que tinha como objetivo que a Cloudflare parasse de proteger o site contra possíveis ataques DDoS.
Inicialmente, a empresa mostrou-se relutante em expulsar o Kiwi Farms da sua rede de clientes. Contudo, acabou por deixar de oferecer os seus serviços. O The Guardian (que descreve o fórum como o “pior sítio da internet”) nota que, apesar de recusar que a mudança de posição tenha acontecido por causa dos esforços da ativista, a Cloudflare entrou em ação depois de as ameaças dos membros do fórum começarem a abranger os seus clientes, que se mostraram desconfortáveis com o facto de a firma de cibersegurança continuar a proteger o Kiwi Farms.
Numa publicação partilhada no blog da Cloudflare, o CEO Matthew Price sublinhou que a decisão de expulsar o site foi “extraordinária” e admitiu não se sentir “confortável” com ela. Ainda assim, foi tomada porque “as ameaças específicas e direcionadas aumentaram nas últimas 48 horas, a ponto de acreditarmos que há uma emergência sem precedentes e uma ameaça imediata à vida humana”.
Sentido-se atacados, os utilizadores do Kiwi Farms tornaram-se ainda mais agressivos”, escreveu no post, que data de setembro do ano passado, garantindo que as possíveis ameaças foram relatadas às autoridades.
Quando estava prestes a fazer um ano da tomada desta decisão, a Electronic Frontier Foundation (EFF), uma organização sem fins lucrativos, publicou um artigo de opinião no qual argumentava que fornecedores de acesso à internet não deveriam ceder à pressão de abandonar o Kiwi Farms, considerando que isso é um “passo perigoso” em direção à censura. “Se o site em questão fosse o Reddit ou o Planned Parenthood ou mesmo o da EFF, a internet estaria em pé de guerra. Não está e não é difícil perceber porquê. O site afetado é um fórum quase universalmente desprezado por propagar discursos de ódio e planear ataques cruéis contra pessoas vulneráveis”, admite a EFF.
Ainda assim, para a organização sem fins lucrativos, “mesmo quando os factos são horríveis”, os sites não devem ser eliminados. E sugeriu que as autoridades devem trabalhar “para proteger as vítimas do Kiwi Farms e perseguir os perpetradores com todas as ferramentas legais à sua disposição”. Além disso, considerou que a “aplicação sólida das leis existentes é algo que tem faltado em termos de assédio e abuso online”, sendo “uma das razões pelas quais as pessoas recorrem a estratégias de censura”.
Ao Observador, a Electronic Frontier Foundation mostrou-se indisponível para dar mais esclarecimentos sobre o tema além dos que estão presentes no artigo de opinião que partilhou no passado mês de agosto e que está disponível online.
O Kiwi Farms ainda está disponível?
É sob anonimato que os membros do Kiwi Farms espalham discursos que incitam ao ódio, divulgam informações pessoais sobre os alvos escolhidos, incentivam a automutilação e fazem perseguição não só online como offline. A revista norte-americana Mother Jones indica que os utilizadores atacam principalmente membros da comunidade transgénero e outras pessoas mais vulneráveis, como deficientes, ao utilizarem informações que podem ser verdadeiras ou não.
Às vítimas atribuíram o nome de “lolcows”, uma mistura entre “lol” e a palavra “cows” (vacas em inglês), expressão que utilizam para descrever qualquer pessoa que seja alvo de gozo, e que pode ou não ter consciência de que tal está a acontecer.
Após ficar sem a proteção da Cloudflare (e de outras empresas como a portuguesa DiamWall), Joshua Moon continuou empenhado em manter o seu site a funcionar. Tornou-se no seu próprio fornecedor de serviços de internet e adquiriu o seu próprio hardware e endereços IP, o que, segundo o The Washington Post, faz com que seja mais difícil de desalojar.
Ao Observador, Hugo Carvalho detalha que Moon tentou “criar uma proteção para não ter de utilizar empresas externas”, uma vez que “percebeu que nenhuma empresa iria querê-lo com o conteúdo que tinha no website”. Contudo, apesar de ambicionar “tratar de tudo a 100% e ser dono de tudo a 100%”, não é só “com uma pessoa que se faz esse trabalho e, como é óbvio, ele não vai conseguir avançar com isso assim”.
Quanto à possibilidade de o site ser colocado offline permanentemente, o programador português indica que “nunca há 100% de certeza da capacidade de o retirar porque, desde que o dono tenha o conteúdo, se alguma empresa o expulsar, vai para outra” e eventualmente conseguirá alguma que o proteja para que consiga “ficar online algum tempo”. “Só que, na minha opinião, ele [Joshua Moon] já esgotou todas as empresas que, de facto, conseguiam protegê-lo minimamente [de ataques informáticos]. Daqui para a frente só piora.”
Desde que foi retirado da rede da Cloudflare, Joshua Moon utiliza a plataforma Telegram para dar atualizações do estado do site aos seus utilizadores. A 6 de setembro deste ano informou que estava a decorrer um ataque DDoS pelo terceiro dia consecutivo. No dia seguinte voltou a escrever que o fórum estava sob ataque, mas mais tarde atualizou essa publicação para indicar que “aparentemente” o problema tinha sido resolvido.
Questionado pelo Observador sobre se acredita que os ataques acontecem ou se podem ser uma forma de o site mostrar que consegue sobreviver apesar de ameaças externas, Hugo Carvalho diz que não se trata de uma “jogada comercial”. “Estão mesmo a ser atacados”. Recorda ainda que no dia em que foi seu cliente, o Kiwi Farms recebia “números completamente absurdos” de tentativas de ataques, dos quais a DiamWall teve que protegê-lo.
Neste momento, o Kiwi Farms não se encontra disponível na “internet normal”, como descreve Hugo Carvalho, até porque alguns dos seus domínios “foram suspensos”. Através do navegador Tor e de um link que Joshua Moon disponibilizou no Telegram ainda é possível aceder a uma versão do site, onde são discutidos tópicos como, por exemplo, “ódio às mulheres — tudo o que tu podes fazes, os homens podem fazer melhor”.
O Observador questionou o Kiwi Farms para perceber quantos utilizadores tem, nomeadamente em Portugal, e qual é o servidor que o protege e que permite que permaneça online, mas não obteve qualquer resposta até à data da publicação deste artigo.