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O Equador está em “conflito armado interno” contra “os terroristas”

AFP via Getty Images

O Equador está em “conflito armado interno” contra “os terroristas”

AFP via Getty Images

Portos dominados pelo tráfico e prisões onde os guardas não mandam. Como o Equador passou de oásis de segurança ao "paraíso dos gangues"

Um líder do narcotráfico em fuga, uma televisão invadida e o exército em "estado de guerra". Violência de gangues assolou o Equador, que há cinco anos era um dos países mais seguros da América Latina.

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“El Noticiero”, um dos noticiários mais vistos de todo o Equador, foi para o ar às 14h desta terça-feira, como é habitual. A emissão já seguia há cerca de meia hora quando um grupo de homens armados entrou pelo estúdio da TC Televisión. Perante as câmaras — durante 15 minutos o ataque foi transmitido pela televisão — espalharam o terror. Agrediram operadores de câmara, perseguiram os jornalistas que procuraram esconder-se e chegaram a colocar um pequeno bloco de dinamite no bolso do casaco de um dos pivôs. Um dos homens armados exigiu que lhe fosse colocado um microfone, para dar a conhecer ao país o que acontece “a quem se mete com a máfia”.

“Os delinquentes ameaçavam-nos como se aquilo fosse um espetáculo, com dinamite e granadas”, recordou à Associated Press a chefe de redação, Alina Manrique, já depois de a polícia ter tomado o controlo do edifício e detido os agressores. “Nunca tive tanto medo na vida.”

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Imagem da invasão do estúdio da TC Televisión, em direto

Anadolu via Getty Images

As cenas correram mundo. Rapidamente se percebeu que os responsáveis por aquele ato de violência eram membros de um dos gangues mais conhecidos do Equador, Los Tiguerones. E para Daniel Caballero, membro da iniciativa Diálogo Inter-Americano, conseguiram atingir o seu principal objetivo: “Incutir o terror na população”. “Este ato sem precedentes na História do Equador foi usado como tática deliberada para impor o medo e semear o caos, sinalizando a capacidade destes grupos criminosos de desencadearem uma violência sem precedentes”, comentou com o Observador o jurista equatoriano.

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Não foi o único episódio de violência a assolar o Equador ao longo desta semana. Tudo começou no passado domingo, com a notícia de que José Adolfo Macías tinha conseguido fugir da prisão. A fuga de “Fito”, alcunha pela qual é conhecido o líder do gangue Los Choneros, foi o sinal de partida para uma campanha de terror por parte dos vários gangues que existem no país, que já levou à morte de dez pessoas, ao sequestro de vários guardas prisionais e outros funcionários públicos e ao envio do Exército para as ruas. O Presidente, Daniel Noboa, declarou mesmo um “conflito armado interno” contra “os terroristas”: “Estamos em guerra e não podemos ceder”, decretou.

É uma situação “nova” e quase “nunca vista em toda a América Latina”, classifica ao Observador Ivan Briscoe, investigador do Crisis Group especializado no Equador. “É uma ofensiva de grupos criminosos com atos públicos muito simbólicos como o da ocupação da televisão com o objetivo de desafiar o Estado.”

“Hoje, infelizmente, o Equador tem uma das taxas de homicídio mais altas da região, muito pior do que a de países da América Central, do que a da Colômbia e do que a do México. E isto é o resultado direto do crescimento e consolidação de vários gangues e da presença de cartéis estrangeiros (a maioria colombianos e mexicanos) que operam livremente no Equador.”
José Vivanco, investigador para os Direitos Humanos especializado na América Latina do Council on Foreign Relations

“Podemos detetar paralelos impressionantes entre a atual situação no Equador e a violência que aconteceu em Medellín nos anos 80”, nota Caballero, referindo-se à campanha do narcotraficante Pablo Escobar na Colômbia. “Agora há diariamente assassinatos, raptos, extorsão e ataques à bomba.” Briscoe concorda: “Eles não são um grupo rebelde, aquilo que querem não é criar um poder formal; é manter o Estado ao largo, garantir que este os deixa em paz para continuarem a fazer o que querem, através do medo. E isso é semelhante ao que Escobar fez.”

Há menos de cinco anos, porém, ninguém diria que um cenário destes poderia acontecer no Equador. Até cerca de 2018, o país era aquilo que Briscoe e a colega Glaeldys González descreveram como “um oásis de paz na região”, com uma taxa de cinco homicídios por cada 100 mil habitantes.

Entre 2020 e 2022, contudo, essa taxa teve um aumento exponencial de 245%, onde se incluem homicídios de figuras como o candidato presidencial Fernando Villavicencio, um procurador e um autarca.

Equador. De jornalista a candidato presidencial morto: quem era Fernando Villavicencio?

“O Equador era um país que não produzia droga, não tinha um movimento de guerrilha e era relativamente pacífico”, resume o investigador do Crisis Group. “Isto é uma mudança radical.”

“Hoje, infelizmente, o Equador tem uma das taxas de homicídio mais altas da região, muito pior do que a de países da América Central, do que a da Colômbia e do que a do México”, declara ao Observador José Vivanco, investigador para os Direitos Humanos especializado na América Latina do Council on Foreign Relations. “E isto é o resultado direto do crescimento e consolidação de vários gangues e da presença de cartéis estrangeiros (a maioria colombianos e mexicanos) que operam livremente no Equador.”

Ao fim de quase uma semana com soldados nas ruas, a violência não dá sinais de abrandar. Mas como se explica que um país até há pouco tempo tão seguro tenha entrado numa espiral de violência tão intensa que chega até a ser transmitida em direto pela televisão?

Guayakill“, um dos portos essenciais para o novo tráfico de droga mundial

Se o que está a acontecer no Equador invoca imagens como as da Colômbia na década de 80, há, contudo, uma diferença grande face aos tempos de Escobar: agora o domínio não é de um único grupo organizado e está intrinsecamente ligado ao tráfico de droga internacional.

“A fronteira norte do Equador, perto das regiões de cultivo de coca na Colômbia de Nariño e Putumayo, é a principal porta de entrada da cocaína produzida na Colômbia no Equador.”
Último relatório da ONU sobre tráfico mundial de cocaína

Para compreender parte do problema é importante olhar para uma cidade: Guayaquil, também chamada nas redes sociais de “Guayakill” pelo nível de violência que ali se vive. Foi aqui que se registaram os episódios mais graves nos últimos dias, por esta cidade portuária ser um ponto nevrálgico do tráfico de droga controlado pelos vários gangues que se movimentam no país.

Isso mesmo explicam as Nações Unidas no seu último relatório sobre o tráfico mundial de cocaína: “A fronteira norte do Equador, perto das regiões de cultivo de coca na Colômbia de Nariño e Putumayo, é a principal porta de entrada da cocaína produzida na Colômbia no Equador”, explicam os investigadores. A maioria é depois “exportada em grandes quantidades através dos portos equatorianos como o de Guayaquil”, com destino à Europa e aos Estados Unidos.

Uma tendência que ilustra a mudança das rotas do narcotráfico mundial na América Latina, resume Briscoe: há 40 anos, Escobar controlava rotas que iam diretamente da Colômbia para os EUA; entretanto, essas rotas passaram a atravessar a América Central, deixando um rasto de violência em países como a Guatemala, as Honduras e o México. Agora, diz o especialista do Crisis Group, o tráfico de droga a partir da América Latina desenvolve-se sobretudo a partir dos portos do Pacífico, com navios a seguirem diretamente para os Estados Unidos e para países europeus como a Bélgica, Portugal e até Turquia.

Vários fatores explicam essa mudança. Por um lado, com o processo de paz na Colômbia que desmantelou as FARC, “o centro de gravidade do mercado da droga mudou”, ilustra Briscoe. Novos atores surgiram para tomar conta da antiga produção dos guerrilheiros das FARC. “Criou-se uma faixa ao longo da fronteira entre a Colômbia e o Equador que se tornou o principal centro de produção de coca de todo o mundo”, diz o investigador.

Já José Vivanco aponta outros fatores, que se consolidaram durante o governo de Rafael Correa (2007-2017): o fim da cooperação com o sistema judicial norte-americano, em particular a Drug Enforcement Agency (DEA); o desenvolvimento das infraestruturas do país; e a adoção do dólar como moeda. “Tudo isto facilitou o tráfico e a lavagem de dinheiro para os cartéis”, resume o especialista.

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As ruas de várias cidades do Equador têm ficado desertas ao longo dos últimos dias, com exceção dos militares

Getty Images

As lutas entre gangues para controlar estas rotas degeneram frequentemente em violência, fazendo subir em flecha a taxa de homicídios. E os reflexos chegam à população, com o aumento do consumo de droga e adesão de jovens aos gangues — já para não falar das balas perdidas. “Aqui as pessoas morrem assim. Tudo foi corrompido”, desabafava um morador aos investigadores do Crisis Group.

A situação social no país agravou-se particularmente com a pandemia de Covid-19, fazendo disparar o desemprego. A emigração (sobretudo em direção aos EUA) disparou em flecha. E, dos que ficam, muitos acabam de alguma forma enredados na teia do crime. Nos últimos dias, depois de Noboa decretar o estado de “conflito interno”, a população vive em pânico. “É horrível, as ruas estão muito vazias”, desabafou um habitante de Guayaquil à Reuters. “É um ambiente muito frio, como se tivesse voltado a haver Covid.”

As prisões onde os gangues até têm as chaves das celas

Se um dos pontos fulcrais para explicar esta onda de violência é o controlo de cidades portuárias pelos gangues, outro é o controlo das prisões.

Nos últimos dias, vídeos divulgados a partir de algumas das prisões equatorianas demonstraram como estas são completamente dominadas pelos grupos criminosos. Basta um, descrito pelo El País, para ilustrar a situação: três homens encapuçados dominam os guardas amarrados, de joelhos aos seus pés, enquanto exigem ao governo que dialogue com os gangues. “Se não houver estas conversações, vamos matar todos os funcionários, dentro e fora das prisões”, avisa um deles. De seguida, pega num dos guardas, amarra-o ao teto e enforca-o.

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Numa das prisões do Equador escreveram-se mensagens de apoio a "Fito", o traficante que fugiu da prisão

AFP via Getty Images

As prisões do Equador são hoje em dia totalmente dominadas pelos gangues — estima-se que 11 mil dos 32 mil presos do país pertençam a estes grupos criminosos. Um quarto das prisões do país serão controladas por estas organizações. Ainda assim, este sábado, o Presidente do Equador declarou que todos os reféns mantidos nas prisões tinham sido libertados. Mas não avançou qualquer número concreto, nem deu mais detalhes.

Um guarda relatou ao El País o que se passa na prisão Regional, em Guayaquil: “Os prisioneiros têm os seus próprios negócios lá dentro. No momento em que se entra, encontra-se frango assado e carrinhas a vender salchipapa e morocho. São negócios que alimentam a estrutura que eles criaram lá dentro”.

“Cada pavilhão das prisões funciona sob a alçada de um ‘gestor’ que reporta ao líder do gangue. O crime organizado dita como funcionam os serviços essenciais como a acomodação, a segurança, a comida e até controla o acesso às celas, com as suas próprias chaves.”
Daniel Caballero, jurista equatoriano da iniciativa Diálogo Inter-Americano

Daniel Caballero confirma ao Observador esta situação. “Cada pavilhão das prisões funciona sob a alçada de um ‘gestor’ que reporta ao líder do gangue. O crime organizado dita como funcionam os serviços essenciais como a acomodação, a segurança, a comida e até controla o acesso às celas, com as suas próprias chaves”, nota o jurista. “A corrupção altíssima facilita a entrada de contrabando, desde comida, a álcool, passando por armas e droga. Os gangues gerem não só as operações do dia-a-dia das prisões, como mantêm influência sobre o tráfico de droga e o crime organizado para lá dos muros da prisão.”

Não é de admirar, por isso, que em setembro passado “Fito” — o narcotraficante que fugiu na semana passada e deu azo a esta onda de violência — tenha protagonizado um videoclipe a partir da prisão. O grupo musical Mariachi Bravo divulgou um narcorrido (um estilo musical popular no México associado frequentemente ao tráfico de droga) intitulado “El Corrido del Léon”, como contou o Washington Post. A letra da música elogia “Fito”, um homem “de caráter e boa pessoa”, que protege os seus. A estrela do videoclipe é o próprio traficante, filmado dentro da prisão.

https://www.youtube.com/watch?v=vg98ylLkPp8 

A resposta violenta de Noboa, que pode redundar numa verdadeira “guerra”

Perante o caos da última semana, o Presidente David Noboa decretou o estado de “conflito interno” e declarou guerra a vários grupos de crime organizado como os Choneros de “Fito” e os “Tiguerones” que ocuparam a TC Televisión, bem como a muitos outros, como os “Águilas”, os “Latin Kings” e os “Patrones”.

No âmbito político, Noboa conta com apoio aparente de quase todas as fações. O antigo Presidente Correa anunciou a união perante os grupos criminosos e a antiga adversária do atual chefe de Estado nas últimas eleições, Luisa González, fez o mesmo.

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O Presidente Noboa declarou estado de "conflito interno" e enviou os militares para as ruas

AFP via Getty Images

Mas se a maioria dos políticos apoia a decisão de enviar militares para as ruas, é menos claro se todas as outras medidas propostas pelo atual Presidente contarão com o mesmo respaldo. Entre elas estão a proposta de realizar um referendo sobre medidas como a possibilidade de extraditar cidadãos equatorianos que cometeram crimes noutras jurisdições ou de construir mais prisões de alta segurança.

Até mesmo a ideia de declarar “guerra” ao crime organizado não é unanimemente elogiada pelos especialistas. “Isto é uma receita para o desastre”, avisa Jorge Vivanco. “O que isto faz é dar ‘carta branca’ aos militares para matarem a tiro qualquer pessoa que possa ser percecionada como membro de um gangue, mesmo que não o seja.” Em vez disso, o especialista do Council of Foreign Relations diz que o governo do país deveria estar focado em desenvolver um sistema de informações capaz de se infiltrar no crime organizado e na criação de um esquema de proteção de testemunhas — a “força bruta”, diz, não vai funcionar e o Equador continuará a ser um “paraíso dos gangues” se não se focar em medidas mais profundas.

“Os gangues podem dizer que, de agora em diante, a polícia e o exército são alvos legítimos. Podemos estar perante uma verdadeira ‘guerra’.”
Ivan Briscoe, especialista no Equador do Crisis Group

A todos estes problemas juntam-se a questão da corrupção — evidente nas prisões, mas não só. Isso mesmo detetou o próprio governo que antecedeu o de Noboa, de Guillermo Lasso: um documento interno, noticiado pelo El País, dá conta dos elevados níveis de corrupção entre a polícia e os serviços do Estado, que alimentam o narcotráfico. Daniel Caballero aponta para essa questão, bem como o combate aos problemas estruturais das populações como o desemprego e a pobreza, que se interligam com o crime organizado: “É necessária uma política de segurança de longo-prazo, que incorpora não só medidas punitivas, mas também um sistema judicial sem corrupção e intervenção social que lida com a origem da violência.”

Ivan Briscoe, investigador do Crisis Group que passou anos a estudar o Equador, está ainda mais desanimado. Diz que a presença militar é uma resposta ao medo das populações, mas não só não resolve os problemas de longo-prazo, como pode potenciar ainda mais violência: “Os gangues podem dizer que, de agora em diante, a polícia e o exército são alvos legítimos. Podemos estar perante uma verdadeira ‘guerra’.”

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