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ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Pré-publicação. Assim começa "Sinopse de Amor e Guerra", o novo romance de Afonso Cruz

Em "Sinopse de Amor e Guerra", o escritor conta a história de Theobald e Bluma, apaixonados na Berlim do pós-segunda guerra mundial, quando o muro começa a ser construído. Revelamos um excerto.

Quando em 2018 lançou “Princípio de Karenina”, Afonso Cruz levou o leitor até ao Vietname e ao Camboja. Uma história de família, de relações, como são corroídas, como podem ser (ou tentar ser) reconstruídas, reatadas. O que aproxima e afasta um pai e uma filha. Tudo num cenário distante, para dar início a uma série de livros que teriam como tema as “Geografias”. Três anos depois, regressa ao mesmo campeonato, agora com “Sinopse de Amor e Guerra”.

O espaço é Berlim, o tempo é o pós-guerra. As personagens são Theobald e Bluma, que vivem aquilo que o fado poético tende a descrever como “amor predestinado”. Um romance que começa na literatura, nas páginas que partilham nas leituras que fazem, e que continua por todas as dimensões que a vida permita concretizar. Mas a vida parece querer permitir pouco, quando “o mais famoso dos muros” separa a cidade e separa os dois amantes.

A parir daqui, a história de “Sinopse de Amor e Guerra” não é apenas a história destes apaixonados. Quer ser uma história mais universal, quer ser um espelho da importância das relações para quem quer que leia. Onde começam, como e quando podem acabar, que importância têm, que herança deixam e que limites podem apresentar (e serão esses limites ultrapassáveis?).

O livro é publicado na próxima terça-feira, dia 7 de dezembro, com o carimbo da Companhia das Letras. Nesta pré-publicação, o Observador revela o início de “Sinopse de Amor e Guerra”.

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A capa de "Sinopse de Amor e Guerra", de Afonso Cruz, que chega às livrarias a 7 de dezembro (Companhia das Letras)

Encontrei-me com Christian Uhl na estação de Wannsee, para falarmos do Muro e da sua vida em Berlim Oriental, em especial nos primeiros anos da década de 60, o que me ajudaria a contextualizar a história que queria contar. Ele esperava-me na plataforma da estação de comboios, com um sorriso que se adivinhava debaixo da máscara.

— Significa coruja.
— Perdão?
— O meu apelido significa coruja.

O céu estava cinzento e pesado e chovia a espaços. Era Outono.

Almoçámos num restaurante junto à floresta. Comemos salada e peixe frito. Christian começou por tirar dois mapas da mala, um de Berlim Oriental e outro de Berlim Ocidental. No de Berlim Oriental, a parte ocidental era uma mancha branca. No de Berlim Ocidental, a parte oriental era uma mancha branca, facto que ele comentou com ironia.

Abriu ainda um terceiro mapa, de fotografia aérea. Precisámos de afastar copos e pratos para o pousar na mesa, ficando ainda muito território fora dela. Quando o empregado chegou com a comida, Christian teve de voltar a dobrar o mapa, reabrindo-o mal terminámos a refeição, para apontar o exclave de Steinstücken, lugar que visitaríamos de seguida.

— Tenho de lidar com falta de visão espacial — começou por dizer mal entrámos no seu carro. — Fiquei cego de um olho quando nasci e, por esse motivo, tropeço com frequência ou vou de encontro a todo o tipo de objectos, o que, fatalmente, acaba por me enviar para o hospital mais próximo com o pulso ou o queixo partidos. E o resto do corpo não está em melhores condições, uma vez que nasci em Dresden, dez dias depois dos trágicos e infernais bombardeamentos que destruíram a cidade. Vim à luz entre escombros, cinza e poeira, malnutrido e muito abaixo do peso. No meio daquela abominável falta de higiene e medicamentos, acabei por contrair doenças de toda a sorte: difteria, tosse convulsa, rubéola e tudo o que mais havia. A minha mãe partiu pouco depois para a Bavária com outros refugiados, e só quando o Muro caiu eu soube que ela tinha morrido havia dois anos. E que eu tinha mais dois irmãos.

Christian é um homem sorridente e bem-disposto, não a pessoa cinzenta que poderia ter surgido das agruras do passado.

— Nunca fiz desporto — disse ele. — O meu desporto sempre foi sobreviver.

Como nas lendas infantis, o destino opalescente parece já suficientemente opaco, material, carnal. Para ligar aquelas bocas, dirá quem olha o retrato, falta apenas a consumação do tempo. Um ou dois centímetros as separam. Nesse momento, ninguém imaginava quão certeiro seria o fatalismo da fotografia nem que haveria de erguer-se entre as duas bocas um abismo sólido.

Tornou-se intérprete e tradutor, foi professor de línguas durante quarenta e três anos numa universidade de Berlim, aprendeu húngaro e, mais tarde, já depois da reforma, também português, cujo interesse nasceu durante uma viagem à ilha da Madeira, que, desde então, tem sido um destino recorrente.

— Escrevi vários poemas. Um deles, em português, tornou-se a letra de uma canção de um grupo de música tradicional madeirense.

Antes de entrarmos no seu carro, Christian tirou do porta-bagagens um boneco de pasta de papel. Era a sua imagem, feita por alguém da tal banda.

A falta de visão de um olho enquadra-se simbolicamente no apagamento de metade dos mapas. O Muro impedia a visão global, e a própria limitação física de Christian era uma profecia e, ao mesmo tempo, uma metáfora.

O nascimento de um beijo

Walden e Rosamund Thomas organizaram um lanche com alguns doces, vinho generoso e café servidos numa bandeja de prata, numa mesa coberta por uma toalha bordada e colocada no jardim, num dia em que o sol se espalhava prodigamente pela tarde num tapete de luz amarela (a guerra ainda não tinha começado, a luz ainda podia ter tonalidades humanas).

A casa tinha dois pisos, um espaço exterior à frente e outro nas traseiras, com um baloiço e um pequeno lago. A ocasião servia para apresentar o filho recém-nascido dos Thomas aos seus amigos mais próximos, Paula e Uwe Baumann, e, mais importante ainda, para garantir que essa apresentação se estendia à filha de ambos, nascida dois anos antes, Bluma Baumann. A amizade entre os dois casais era tão forte, que queriam garantir que continuaria ao longo de gerações, assumindo esses laços de amizade os contornos que o destino naturalmente lhes desse (a guerra ainda não tinha começado, a amizade ainda tinha futuro).

Uwe, marido de Paula, tirou uma fotografia das duas crianças, que muitos anos mais tarde iria parar aos arquivos da Stasi. Uwe morreria em 1945, em consequência dos ferimentos sofridos numa explosão.

As duas crianças estão nessa fotografia vestidas de branco, com arbustos ao fundo, nas traseiras da casa dos Thomas, num tempo em que a guerra ainda não tinha começado e a luz da tarde pacificamente recortava a amizade.

Há uma melodia estranha no retrato, vestígios de uma canção que se imiscuem na imagem e a impregnam. De facto, se tomarmos atenção a essa fotografia de tons sépia, no canto superior direito há um gira-discos, que talvez seja responsável pela sensação musical despertada no observador. As duas crianças, um recém-nascido e uma menina de dois anos, têm as bocas quase a tocarem-se. Seguram-nas ao colo, respectivamente, o pai e a mãe, e aquele espaço entre as bocas das duas crianças forma um pequeno abismo que o observador interpreta como a vertigem de alguma coisa tremendamente importante que está para acontecer. Como nas lendas infantis, o destino opalescente parece já suficientemente opaco, material, carnal. Para ligar aquelas bocas, dirá quem olha o retrato, falta apenas a consumação do tempo. Um ou dois centímetros as separam. Nesse momento, ninguém imaginava quão certeiro seria o fatalismo da fotografia nem que haveria de erguer-se entre as duas bocas um abismo sólido.

Afonso Cruz nasceu na Figueira da Foz em 1971. Escritor, realizador, ilustrador e músico. Publicou o primeiro romance, "A Carne de Deus", em 2008

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

A primeira palavra

Descendo do piso superior da casa de seus pais, Theobald Thomas, com o seu feitio vacilante que se espelhava na forma de andar, teve alguma dificuldade em lidar com as escadas de nogueira pintadas com tinta índigo que começava a lascar. Especialmente os degraus, que se apresentavam como desafios infinitos. Foi com um gesto inútil para se agarrar ao corrimão, numa última tentativa de salvação, que viu à sua frente, pela primeira vez, o abismo. Estava de fraldas.

O pequeno Theobald, três anos de idade, caiu das escadas que desembocavam na sala e, ao amparar a queda com as mãos, ainda sem saber falar, soltou uma palavra relativamente bem pronunciada que deixou os pais incrédulos, não pelo facto de ter falado pela primeira vez, mas pelo que aquela palavra significava.

Máquina de revelações

Quem me contou a história de Theobald Thomas e Bluma Baumann foi o meu pai. Telefonei-lhe enquanto estive em Berlim, numa residência literária, para que me relembrasse todos os pormenores. A minha casa era luminosa, tanto quanto Berlim o permitia, com grandes janelas para uma das ruas de Mitte. O bairro, naquela zona específica, era relativamente austero, sem as árvores que caracterizam outras ruas. Havia vários supermercados nas proximidades e uma loja de conveniência mesmo ao lado do edifício onde eu estava instalado, o que me resolvia alguns apuros.

Quando perguntei ao meu pai, por telefone, como era a mãe de Theobald, pois recordava-me de o ter ouvido dizer que era «a mulher mais meticulosa do mundo», respondeu-me que sim.

— Meticulosa, bastante meticulosa — disse o meu pai —, obcecada pela organização e pela simetria e pelo asseio, tirava os borbotos dos casacos dela e dos outros, entrávamos em sua casa e começava naquilo, a tirar borbotos dos nossos casacos, até que nos pedia que os entregássemos, aos casacos, não aos borbotos, para serem devidamente pendurados nuns cabides canónicos que ficavam todos precisamente à mesma distância, e depois alisava as sobrancelhas, alisava constantemente as sobrancelhas, por vezes também as nossas, não fosse haver um pêlo rebelde, sem que se apercebesse de que o fazia, endireitava-te os colarinhos se saíam do pulôver sem mangas com impudente assimetria, soprava para a tua cara ou para a tua roupa para expulsar a caspa, o pó ou a cinza, um grão de poeira ou simplesmente porque sim, essas coisas, preciosista, daquelas de endireitar quadros vezes sem conta… Mas estás a adiantar-te, não faz mais sentido começar do princípio? Para mim faz, que a memória é um caminho, uma pessoa quando decora um poema não sabe qual é a sétima letra do décimo quarto verso da terceira estrofe, tem de ir do princípio, com embalo, ou se não for do princípio pelo menos de um começo qualquer, um começo de um verso, chegar à tal letra e, aí sim, poder-se-á com segurança dizer qual é.

— Sim, podes começar do princípio.
— Começou tudo no estúdio e loja de fotografia do teu avô, Rua Cândido dos Reis, Figueira da Foz, lembras-te do edifício? Pedra negra até meio, sim, lembras-te com certeza, agora é um shopping abandonado, ali mesmo no centro, que ninguém tem coragem de demolir, com medo de fazer ruir toda a vizinhança. Foi lá que começaste a trabalhar e foi lá que eu comecei a trabalhar, e não há como esquecer os começos. Eu passava muito tempo no laboratório, na câmara escura. Um dia, uma pessoa da Agfa, chamava-se Hans, era isso, era Hans, Hans Helmut, entrou para falar com o teu avô pois queria vender-lhe uma máquina de revelação automática. Lembro-me muito bem desse dia, era Fevereiro e chovia torrencialmente. O Hans calçava sandálias, os estereótipos são tenazes e atravessam décadas. O teu avô disse-lhe: «Não precisamos de máquina nenhuma, fazemos cerca de seiscentas ampliações numa manhã.» E o outro: «Como, como seiscentas ampliações?» E o teu avô: «Tem de ver o meu filho a trabalhar.» E levou-o à câmara escura. O Hans ficou tão impressionado, que, no dia seguinte, voltou à loja com uma proposta: queria que eu fosse para Leverkusen tirar um curso de fotografia a cores na Agfa.

E assim foi.

Para não incomodar o coração com coisas desnecessárias, Rosamund Thomas esticava as pregas dos lençóis até não haver nem uma ruga, fechava todas as portas ou abria todas as portas, nunca as deixando entreabertas, alinhava milimetricamente os sapatos descalçados, endireitava as pontas dos tapetes, nivelava os quadros, garantindo assim que esses pormenores não a incomodariam quando tarefas importantes se avizinhassem.

Para não incomodar o coração com rugas desnecessárias

Para não incomodar o coração com coisas desnecessárias, Rosamund Thomas esticava as pregas dos lençóis até não haver nem uma ruga, fechava todas as portas ou abria todas as portas, nunca as deixando entreabertas, alinhava milimetricamente os sapatos descalçados, endireitava as pontas dos tapetes, nivelava os quadros, garantindo assim que esses pormenores não a incomodariam quando tarefas importantes se avizinhassem. Como um soldado, preparava o campo de batalha para o porvir e, rodeada de perfeição, poderia entregar-se resolutamente a qualquer batalha que exigisse toda a sua atenção, suor e força.

Theobald Thomas não chorou, não soluçou, não gemeu depois de cair das escadas e ter atirado para o ar uma palavra inesperada. A mãe passou-lhe as mãos pelo corpo para certificar-se de que não se tinha magoado. O pai fez o mesmo.

A cabeça da criança estava pousada no ombro da mãe, que lhe dava umas leves palmadas nas costas enquanto baloiçava o corpo para trás e para a frente.

— Ele disse o que acabei de ouvir?
— Antes de papá? — perguntou Walden.
— Antes de mamã? — perguntou Rosamund.

Palmadas mais intensas.

— Foi o nome dela.
— Theo, diz mamã — murmurou ela ao ouvido do filho —, diz mamã, ma-mã, ma-mã, ma-mã. — Virando-se para o marido:
— Não sei, foi como se o nome dela o protegesse da queda.
— Que parvoíce.
— Não se magoou, pois não?
— Pode ter dito outra palavra qualquer.
— É como se o nome dela o protegesse. Acho que, no fundo, é bonito.
— Que disparate. Ele não fala. Soou ao nome dela por coincidência, foi uma exclamação de dor.
— E ouvimos os dois a mesma coisa? — Rosamund baloiçando o corpo, dando palmadinhas nas costas do filho.
— Diz mamã, ma-mã, ma-mã, ma-mã. Não poderíamos ter ouvido os dois a mesma coisa se fosse apenas uma exclamação de dor, pois não?
— Foi um gemido qualquer parecido com o nome da Bluma.
— Mas, então, se foi uma exclamação de dor, achas que ele se magoou?
— É uma maneira de dizer.
— De dizer o quê? Só há duas maneiras de compreender isto: ou o nome dela o protege ou o nome dela significa dor.
— Vou dormir.

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